Alimentação

Taxar alimentos ultraprocessados pode significar mais recursos para políticas sociais

Sociedade civil tem expectativa de que o novo governo coloque o tema em debate e defende mudanças tributárias
Com pouco incentivo na produção, produtos in natura dão lugar aos ultraprocessados na dieta brasileira. Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado
Ouça aqui!

Por Nara Lacerda
Do Brasil de Fato

A taxação de produtos alimentícios ultraprocessados tem papel essencial no combate à fome e à desnutrição e pode financiar políticas públicas. Essa é a defesa de pesquisadores e pesquisadoras do Brasil, que defendem uma reforma tributária pensada para incentivar a produção e o consumo de alimentos menos industrializados ou in natura.

Dados reunidos pela ACT Promoção da Saúde indicam que os ultraprocessados causam fortes impactos na saúde da população. Em 2019, eles foram responsáveis por 57 mil mortes prematuras em adultos, 10,5% do total de óbitos que poderiam ser evitados.

Esses produtos estão ligados à ocorrência de obesidade. Atualmente, 6 em cada 10 adultos e 1 em cada 3 crianças apresentam excesso de peso no Brasil.

A produção dos ultraprocessados também causa impactos ambientais, aumenta a emissão de poluentes e modifica modos de vida em comunidades que vão das grandes cidades às populações mais afastadas do país.

No documento Propostas para uma Política Tributária de Combate à Fome, Promoção da Saúde e do Meio Ambiente, a ACT traça o cenário e apresenta soluções.

O objetivo central é buscar saídas que mudem a lógica de políticas fiscais e econômicas voltadas à produção de commodities e industrializados. No lugar dela, é preciso incentivar a produção de alimentos saudáveis.

As distorções da desigualdade tributária estão por toda a parte. Nos exemplos, a ACT cita a alíquota zero de PIS/Cofins para achocolatados e macarrão instantâneo. Em sucos integrais de fruta, minimamente processados, esse mesmo imposto pode chegar a 9,25%.

Refrigerantes têm a mesma alíquota de IPI que a água mineral e ainda podem conseguir redução de 25 a 50% no tributo se forem feitos a base de frutas, como o guaraná e o açaí. O setor das bebidas gaseificadas deixa de pagar de R$ 3 a 4 bilhões em impostos anualmente, porque a maior parte da produção ocorre na Zona Franca de Manaus.

Alimentos saudáveis e tradicionais da dieta brasileira como o arroz e o feijão carregam a mesma porcentagem de impostos que produtos como a salsicha e o macarrão instantâneo em alguns estados. “Não existe uma política tributária que favoreça os alimentos orgânicos ou agroecológicos”, enfatiza o documento.

Em entrevista ao programa Bem Viver, da Rádio Brasil de Fato, a diretora executiva da ACT, Paula Johns, afirma que é possível mudar essa realidade, mas o processo passa por vontade política. “Claro que tem jeito. Porque, na verdade, o nosso sistema tributário é fruto de escolhas políticas de modelos de tributação.”

Confira os principais trechos abaixo e ouça o áudio na íntegra no tocador abaixo do título desta matéria.

Brasil de Fato: No ano passado a ACT lançou a publicação “O papel da tributação como propulsora da desnutrição, obesidade e mudanças climáticas no Brasil”. A principal conclusão do documento é de que o sistema tributário do Basil privilegia o consumo de ultraprocessados. Como isso acontece?

Paula Johns: Toda a cadeia produtiva acaba valorizando os processos industriais. Para dar escala, baratear o acesso, esse é o grande argumento por trás disso, que vem sendo construído há muito tempo. Então, à medida que você industrializa, você vai agregando valor.

Tem uma lógica da industrialização por trás, que eu não vou nem entrar no mérito. Acho que não necessariamente está errado. Mas precisamos falar de que tipo de produto estamos falando e fazer esse cruzamento com o impacto na saúde, com impacto ao meio ambiente.

A lógica de privilegiar a industrialização não leva em consideração os aspectos da saúde. Só que, nos últimos 10 ou 12 anos, começou com a hipótese da categorização, de classificação nova por grau de processamento dos produtos. Começamos a olhar um pouco mais de perto e colocar uma lupa no que tem nesses alimentos ultraprocessados.

Então sabemos que os alimentos integrais nutrem mais e reduzimos boa parte dos alimentos que estão disponíveis nessa categoria. Há uma mistura de sal, açúcar, gordura e farinha, com uma série de aditivos, uma série de saborizantes, que tem impactos também no nosso organismo.

Tem todo um processo em paralelo a esse processo de construção de um sistema tributário que também vem de longa data. Precisamos olhar para esse sistema tributário. Ele acabou, possibilitando que, quanto mais industrializado o produto, quanto mais longe do produtor, menos imposto ele paga.

Ele vai recebendo créditos tributários à medida que caminha na cadeia de produção. Se você olhar para o produto in natura, ele não paga imposto quando sai da roça. Mas, ao longo da cadeia, ele passa a pagar imposto porque ele não recebe nenhum crédito tributário, ao contrário do que acontece com o produto industrializado ao longo da cadeia.

Chegamos ao fim da cadeia com uma situação bizarra e totalmente antisaúde, em que o refrigerante paga menos imposto do que 1 quilo de abóbora orgânica.

É possível responsabilizar mais as empresas pela produção e comercialização desses produtos nocivos à saúde?  

Tem um elemento que vale para o Brasil e vale pro mundo. Aqui temos distorções ainda mais graves, como é o caso da tributação de refrigerante, que recebe subsídio. Em linhas gerais, temos que chegar em um modelo tributário em um mundo globalizado. Porque esses produtos circulam o mundo.

Que se chegue a um preço final que leve em consideração os danos à saúde, os danos ao meio ambiente, que vão de trabalho escravo a poluição. Se colocarmos no preço final, o que faz mal até se tornaria inviável e o que faz bem se tornaria acessível.

Claro que essa é uma fala simplificando. É um problema complexo. Mas é para dizer que tem solução. Uma delas é tributar o que faz mal à saúde, para mitigar um pouco esse problema de que o preço final não corresponde ao dano. É uma ação de mitigação.

Então essa tributação serviria, por exemplo, para financiar políticas sociais, políticas públicas de saúde que dessem conta desse prejuízo?

Exatamente. A ideia é essa. Inclusive, quando discutimos o tema do tabaco, esse debate está mais avançado no sentido da compreensão de que produtos de tabaco devem ter sobretaxa. Já há até acordos internacionais para que os impostos da tributação desses produtos nocivos à saúde fomentem um modelo de desenvolvimento mais sustentável, mais solidário e mais saudável.

Por isso estamos compondo com outras organizações uma discussão sobre o que a apelidamos de Reforma Tributária 3S. Ela tem que ser solidária, saudável e sustentável. Requer uma mudança estrutural mais ampla, que precisamos. Não vai ser da noite para o dia, mas temos que começar por algum lugar. Um desses lugares é sobretaxando esse tipo de produto. Aí entra cigarro, produtos alcoólicos e produtos ultraprocessados.

Como responder às críticas à criação de impostos e às afirmações de que o poder público deve interferir menos no mercado?

Temos que começar desconstruindo esse mito do livre mercado. Não existe livre mercado nem no país mais liberal. Não existe nenhum produto na cadeia agrícola que não receba subsídio. O dinheiro público tem sido injetado em diferentes partes dessa cadeia produtiva. Então podemos fazer escolhas de para onde vai esse dinheiro público.

No caso do Brasil, temos um potencial de produção de alimentos de base limpa fantástico. Temos 4 milhões e meio de agricultores familiares. Imagina a quantidade de comida que você pode produzir numa área pequena, de base limpa, em que você ainda presta um serviço ambiental de proteção?

Nós não utilizamos isso. Para onde está indo todo o recurso? No caso do Brasil, para financiamento do agronegócio. Qual é a principal agenda da bancada ruralista no Congresso? Uma delas é perdão de dívida.

Não dá para dizer que o agronegócio se sustenta, porque se você olhar, fizer a conta na ponta do lápis, ele também recebe fortes subsídios. São essas distorções que precisamos começar a corrigir. Precisamos de políticas públicas que fomentem a produção de alimentos de base limpa.

Hoje, um agricultor super talentoso, que tem a própria semente, que produz as próprias caldas, que tem uma lavoura linda, diversificada, maravilhosa, que é tudo de bom para a saúde e para meio ambiente, ele mal consegue sobreviver da forma que o sistema está colocado.

A receita para fazer isso nós temos, mas esbarramos na questão dos lobbys, fica cada um querendo defender o seu quinhão. Se você tem um setor que já é privilegiado por conta de um desenho de política pública, ele não vai querer que isso mude.

Eu diria que esse é o maior obstáculo. Não é falta de saber o que é preciso ser feito. É como você lida com essas resistências a essa mudança que precisa acontecer. Para que tenhamos uma comida limpa, justa, boa e barata, acessível para todo mundo.

Esses pontos foram apresentados ao novo governo? Quais são as expectativas para a gestão de Lula (PT)? 

A sociedade civil já está pronta há muito tempo. Nós passamos os últimos anos nos preparando para poder dialogar. Claro que entendendo que tem todas as reestruturações que estão acontecendo na composição dos novos ministérios com os quais vamos conversar.

Mas já temos feito conversas entre as organizações, discutindo, por exemplo, esse tema da Reforma Tributária 3S. Para fazer essa incidência desse diálogo com o novo governo. Pelo menos temos uma esperança de fato de que, apesar dos obstáculos – porque o governo vai ser pressionado de todas as formas possíveis, por muitas pessoas e todos os atores -, temos mais espaço para fazer esse debate público também.

É importante que a população entenda o porquê. Se tudo virar uma questão de que isso é de direita e isso é de esquerda, vamos perder o foco. Porque ninguém discorda que a gente precisa de políticas públicas que sejam boas e promotoras da saúde, da sustentabilidade, da justiça social.

A discordância está em como vamos fazer para chegar a esse lugar. Para isso, tem que fazer muito debate mesmo.

Edição: Nicolau Soares/ Brasil de Fato