Alimentação

“O debate sobre alimentação passa pela estrutura fundiária e econômica”, afirma Felipe Campelo

ONU aponta que 18,4% da população da América Latina não tem dinheiro para comprar alimentos saudáveis
Felipe Campelo, da Escola Popular Egídio Brunetto, afirma que não há escassez de alimentos, mas concentração de terra e de riquezas. Foto: Arquivo pessoal

Por Vânia Dias
Do Brasil de Fato/Salvador

O biscoitinho recheado está logo ali na prateleira. O salgadinho, a salsicha enlatada, o macarrão instantâneo, o suco em caixinha. Os refrigerantes também estão na lista de fácil consumo. Geralmente, a preços muito mais baratos do que frutas, legumes e outros itens com valor nutricional. O fato é que a alimentação de qualidade pesa muito mais no bolso, inclusive, existe pesquisa que aponta que os brasileiros não têm dinheiro para comprar alimentos saudáveis. 
O novo relatório das Nações Unidas Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional 2022 garante que 22,5% das pessoas na América Latina e no Caribe não têm meios suficientes para acessar uma alimentação saudável. Só no Caribe, 52% da população foi afetada por esta situação e na América do Sul, 18,4%. A publicação informa que 131,3 milhões de pessoas na região não puderam pagar por uma alimentação saudável em 2020. Isso representa um aumento de 8 milhões em relação a 2019, e se deve ao maior custo médio diário desses produtos.

Os números não são esperançosos, e o desafio para superar esta realidade é imenso. Felipe Campelo, integrante da direção estadual do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST) da Bahia e da Escola Popular de Agroecologia e Agrofloresta Egídio Brunetto, assentado da reforma agrária, nos explica que não há escassez de produtos, mas uma histórica concentração de terra que não pode ser desconsiderada no entendimento de tudo isso.

Campelo explica que menos de 1% das propriedades com mil hectares ocupam quase 50% das terras agricultáveis no Brasil. Por outro lado, 40% das propriedades com 10 hectares, ocupam em torno de 2,3% das terras agricultáveis. “A grande quantidade da terra está nas mãos dos grandes latifúndios. E esses latifúndios produzem commodities para exportação para Europa, Ásia, EUA: soja, milho, algodão, eucalipto”, explica. Felipe afirma ainda que a fome na América Latina tem a sua raiz na história de apropriação da terra feita pelo grande capital financeiro.

Um outro elemento importante que Campelo destaca na realidade brasileira é que grande parte da população, hoje, reside na zona urbana. “Se pegarmos os dados recentes da Organização das Nações Unidas (ONU) a projeção é de que, até 2050, 70% da população vai residir na zona urbana. E o que vemos em todos os indicadores é que a tendência desse problema é de se agravar”, afirma Felipe.

Para ele, esses elementos conjuntos explicam essa porcentagem de pessoas que não têm acesso à alimentação nem saudável e nem mínima para sobrevivência. Outro destaque muito importante e que Campelo não nos deixa esquecer é que o Brasil passou nos últimos seis anos por governos que acabaram com todas as políticas de organização da alimentação e outras políticas públicas que contribuíssem para que as pessoas tivessem acessos ao alimento.

“O grande debate sobre alimentação passa sobre a estrutura fundiária e pela estrutura econômica deste país que não permite que as pessoas tenham o mínimo de acesso ao trabalho, de acesso à terra, de acesso à produção e ao alimento”, acrescenta Felipe.


A alimentação está na mesa de negociação das grandes empresas de alimentos e bebidas. Imagem: CEE Fiocruz

O diferencial da Bahia

A Bahia tem um diferencial por ser o estado com o maior porcentual de agricultores familiares do Brasil. “Isso permite não só a produção, como o acesso de muitas famílias às feiras livres, na compra do alimento mais saudável direto do produtor, a partir dos circuitos curtos de comercialização que é construído nos diversos municípios do nosso estado”, comemora o integrante do MST. Ele aponta isso como uma prova de que no estado não falta produção de bons alimentos e sim uma rede ampliada de distribuição.

Assim como em outros estados, hoje, na Bahia, 10 milhões de pessoas moram nas cidades. “Isso equivale a dizer que aproximadamente 72% da população baiana é urbana”, afirma Felipe ao explicar a gravidade do problema e ao comprovar que essa é uma conta que não fecha.

“Nos dados da fome de 2022, a Bahia está com 11% da sua população em estado de insegurança alimentar. Ou seja, 1,7 milhão de pessoas estão nesse estágio”, acrescenta Campelo. “Nós vimos os desmontes nas estruturas de distribuição e garantia de acesso ao alimento, em vários níveis. Basicamente, foram as quebras das estruturas que permitiram isso”, conclui.

Os impactos na saúde


A médica Dheise Zimmerman explica os impactos do consumo de ultraprocessados para a saúde coletiva. Foto: Arquivo pessoal

Muitas são as doenças geradas por uma alimentação inadequada e por alimentos ultraprocessados é o que explica Dheise Zimmerman, médica, especialista em saúde coletiva e militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). “Em poucas palavras, ultraprocessados são alimentos processados industrialmente, diversas vezes com conservantes, corantes e outros ingredientes para chegar aos atrativos daquele biscoitinho recheado que você vê lá nas prateleiras do mercado, por exemplo”, explica a médica que também se mostra preocupada com a situação.

“E por que esses produtos viciam tanto? Porque foram colocados aditivos no sabor e, a longo prazo, a pessoa vai ter preferência por aquele alimento ao alimento in natura, mais natural e sem essas manipulações”, declara a médica ao dimensionar que além de fazer mal, esses produtos causam também dependência.
Em atendimento direto à população nas Unidades Básicas de Saúde, Dheise nos apresenta também outras consequências dessa alimentação e afirma que muitas doenças são geradas desse consumo desbalanceado. “A exemplo, da hipertensão, colesterol alto, diabetes, doenças cardíacas, gastrite, insônia, apneia do sono e diversos transtornos alimentares são alguns desse desdobramentos no corpo”, reforça Dheise que além de médica é também educadora popular com formação no Centro Memorial Martin Luther King, em Cuba.

Ela nos alerta de que esse é um problema sério e de saúde coletiva, principalmente, na infância, quando as crianças ainda estão terminando de formar as papilas gustativas. Dheise atende no consultório todos os dias e afirma que é muito comum chegarem crianças obesas por má alimentação. “Quando a gente vai investigar a alimentação da criança, ela não come uma fruta. Não come legumes, verduras. A alimentação dessa criança são comidas rápidas, macarrão instantâneo, são suquinhos prontos, salgadinhos. Quando a gente verifica o exame laboratorial dessa criança, a gente encontra números de colesterol alto até para um adulto. Isso é muito preocupante”, declara a médica ao falar das repercussões dessa má alimentação ao longo da vida.

“Colesterol é um tipo de gordura que vai se acumulando nas artérias. Elas se parecem com as veias, saem do coração e vão levar o sangue diretamente para o nosso corpo. O colesterol vai grudando, acumulando gordura nas paredes dessas artérias. Uma criança com níveis de colesterol alto pode ter vários desdobramentos”, explica a médica.

Além da escolha pessoal e da conscientização, um outro componente pesa na decisão pelo consumo de tantos ultraprocessados. “Meu paciente chega no consultório, eu verifico os exames de laboratório e digo o senhor precisa fazer uma alimentação correta e o paciente me pergunta: ‘Como doutora?’”, relembra a médica que já perdeu as contas de quantas vezes ouviu esse “como”.

“É infinitamente mais barato comprar uma caixa com 30 sucos de caixinha que dará para o mês todo, do que comprar frutas para fazer o suco. Quem tá na ponta da atenção, do cuidado do paciente, passar um aconselhamento de dieta, neste caso, é muito triste, muito frustrante”, desabafa a médica ao se sentir impotente diante do problema.

Com um olhar bem realista da situação, a médica nos aleta de que a população está condicionada a se alimentar mal e a ter um estilo de vida e de saúde ruins. “Pelas próprias políticas alimentares que a gente tem no país. O paciente, por mais que queira, não vai conseguir ter uma vida com mais qualidade e mais saudável”, afirma no entendimento de que essa realidade é um problema grave.

“Eu preciso fazer o controle da pressão do paciente que está sendo medicado corretamente, mas não tá conseguindo se alimentar bem. E aí, como a gente avança nesse tratamento?”, pergunta Dheise que segue sem resposta para essa questão.

Edição: Gabriela Amorim