Aromas de Março
Corpos-território(s): lugar de gozo e resistência
Por Adriana Novais*
Da Página do MST
O corpo feminino é um lugar onde recaem as correntes das muitas opressões do capital, do racismo e do patriarcado. Mas é também a partir do corpo que subvertemos e confrontamos tais ordens dominantes.
É a partir do controle do corpo e da sexualidade das mulheres que a ordem patriarcal se realiza. É importante termos em conta que a fragilização das mulheres se relaciona com um projeto de poder. Com a descoberta da ultrassonografia, antes mesmo de sair da barriga, a fragilização e o processo de dependência entram em curso: a escolha das roupas, dos brinquedos, dos destinos imaginados para seu papel de mulher começam a ser arquitetados.
E quando nascemos, se leva a cabo o longo processo de educação, de formatação que define o Ser Mulher: “é assim que se senta, é assim que se fala, é assim que uma mulher ‘correta’ deve agir”. Um longo, opressivo e denso protocolo vai nos assujeitando e podando os nossos desejos, conformando nosso sentir e nosso olhar sobre nós e sobre o mundo.
Como parte desta moldura, busca-se a beleza fetichizada pelos homens, define-se o recatamento que convém à propriedade privada, são prescritas as múltipla funções de cuidado que devemos cumprir para garantir a acumulação do capital. Papéis que foram e ainda são enaltecidos como um ideal de Ser Mulher. E todas estas características têm como contraponto o Ser Homem, para quem o protocolo reserva o espaço público, a razão, a política, o controle, o monopólio da violência.
A organização das sociedades humanas coincide com a posse da mulher. Com um controle que só pôde ser feito as custas de muita violência, mas também de ideologias que organizam as camadas mais profundas de nossa subjetividade. Um processo que nunca se interrompeu e vai, com o passar do tempo, adquirindo novas maquiagens, disfarces, mas sempre sobre as bases patriarcais.
Como, por exemplo, o olhar que temos sobre nosso corpo. Corpo-objeto, que na modernidade é designado para a reprodução dos filhos, da geração da nova força de trabalho; para o trabalho reprodutivo e invisibilizado do lar; para o trabalho produtivo precarizado e para a satisfação do bel prazer dos homens – corpo-mãe / corpo-fogão / corpo-máquina / corpo-buceta.
Em grande medida este é um corpo que coincide com o corpo-escravizado das mulheres do continente africano e dos povos originários das Américas. Mulheres-objetos que serviam para a reprodução da força de trabalho, desde o processo de acumulação primitiva e do capital, e logo, sua contínua reprodução. Serviam também para gerar mais força de trabalho. São esses os corpos também estuprados. Os estupros com uma tecnologia de controle e de reprodução de força de trabalho. Estupro também resultante da incapacidade de lidar com o desejo marcado pela diferença: escravizadas e senhores. O estupro como reafirmação do imperativo da propriedade privada e do patriarcado.
E como mulher-mercadoria este corpo deve dar dividendos. Com o passar dos séculos, o corpo feminino passa a ser importante para a sociedade capitalista como destino de consumo. Em nome de padrões de comportamento burgueses, mascarados como universais, e de um ideal de beleza calcado na branquitude, que busca a juventude eterna, o corpo feminino passa a ser o desague de mercadorias – procedimentos estéticos que nos sacrificam e movimentam bilhões ao mesmo tempo, bombardeamento de produtos que controlam nossas escolhas e desejos – fortes amarras para a emancipação. Tudo isso bem organizado ideologicamente, a partir dos aparelhos privados de hegemonia, tais como a escolas, as igrejas, o entretenimento, as artes e as grandes mídias.
Contra essas formas de dominação, são incontáveis os levantes nas cidades, as marchas permanentes e confrontos diários em defesa da vida no campo, nas águas e nas florestas.
Nosso corpo é corpo-coletivo, um corpo-território, pois se a tentativa de dominação das mulheres integra um projeto de poder, a contestação da ordem vigente somente se dá a partir deste corpo-coletivo que se organiza para o combate. Com esse corpo-coletivo reivindicamos o soterramento do capital, o fim da propriedade, o fim da expropriação do trabalho e, sobretudo, reivindicamos a felicidade como projeto político. Esse corpo-coletivo, de punho em riste, também é o corpo-prazer, o corpo-sensual que busca a dança, o gozo, a alegria, a liberdade.
Nosso corpo-luta busca aniquilar os senhores da guerra e mostrar ao mundo a vida plena.
Nosso corpo-coletivo resiste aos genocídios e luta.
Ainda que contra nós armem fogueiras.
Ainda que envenenem nossos rios e ataquem nossas florestas.
Ainda que tentem verter sobre nós os 563 tipos de agrotóxicos liberados.
Ainda que negociem nossos corpos por gramas de ouro.
Ainda que existam 25 mil garimpeiros e tantos outros disseminadores da morte.
Ainda que a fome nos assole e que 570 crianças yanomamis tenham sido mortas…
Ainda que… ou por isso mesmo, em luta, nosso corpo-coletivo buscam amparar “a queda do céu”.
Nossos corpos-mulher, linhagem direta das que se ergueram das florestas e dos tambores, seguem em combate, cultivando as mudas e as sementes da emancipação humana, que virá!
*Adriana Novais é militante do MST em SP e escreveu este texto em colaboração com Lizandra Guedes, militante do Setor de Gênero do MST no MA.
*Editado por Fernanda Alcântara