Fome
Retomar o pacto nacional de combate à fome é um dos maiores desafios do país, aponta presidente do Consea-RS
Por Arthur Romanzini Lazzarotto
Do Instituto Humanitas Unisinos – IHU
“Nos últimos anos, enquanto aumentaram significativamente as lavouras de soja e milho, diminuíram drasticamente as lavouras de feijão, arroz, batata, mandioca e outros alimentos que vão para a mesa das pessoas”, diz Juliano Ferreira de Sá, presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul – Consea-RS, Juliano Ferreira de Sá.
As transformações na produção agrícola brasileira, segundo ele, também geram consequências em um dos maiores problemas do país: o aumento da fome e da insegurança alimentar entre os brasileiros.
Ao relembrar os dados amplamente divulgados desde a pandemia de covid-19, de que mais de 33 milhões de pessoas passam fome no Brasil, ele acrescenta que se “consideramos a situação de quem não tem três refeições por dia, ou seja, de pessoas que convivem com a fome diariamente, esse número passa para 65 milhões no Brasil. Mesmo que a região Sul seja a menos afetada, comparada com a região Norte, que é a que mais sofre com a fome, o quadro não é nada agradável. Pelo menos metade da população gaúcha, em torno de 48% da população, vive algum grau de insegurança alimentar e nutricional. A situação é ainda mais grave em lares com crianças de 0 a 10 anos: em 3 de cada 10 casas falta comida”.
Na última terça-feira, (28/02), o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea foi recriado pelo governo federal, iniciativa vista como fundamental para o enfrentamento da fome nos âmbitos nacional, estadual e municipal. Mas, de acordo com Sá, um dos principais desafios no momento é “combinar as políticas públicas estruturais e ações emergenciais”. Nesse sentido, menciona, o Consea-RS sugeriu formalmente ao governo a necessidade de reconhecer espaços populares de soberania e solidariedade alimentar como um elemento central no enfrentamento da fome nas comunidades. “A ideia é que as hortas e cozinhas comunitárias também possam oferecer, para os governos federal, estaduais e municipais, alimentos e produtos para as compras institucionais. Seria uma forma de reconhecer e retirar da invisibilidade e da informalidade essas iniciativas que são de grande relevância no combate à fome. Isso daria a perspectiva de o governo federal criar editais públicos que possam estruturar essas cozinhas com equipamentos, utensílios e condições mais dignas de ofertar um alimento adequado e saudável, com condições de dignidade para as pessoas que mais precisam”, resume.
Juliano Ferreira de Sá é graduado em Gestão Ambiental pela Universidade do Norte do Paraná – Unopar e mestre em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Compõe o Colegiado Executivo do Fórum Estadual de Segurança Alimentar e Nutricional Sustentável do Rio Grande do Sul – Fesans-RS, é assessor parlamentar e secretário executivo da Frente Parlamentar Gaúcha em Defesa da Alimentação Saudável da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, coordenador da Feira Orgânica da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul e membro do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos.
Confira a entrevista.
IHU – Como receberam a notícia da retomada do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – Consea no novo governo Lula? O que o retorno do Conselho significa?
Juliano Ferreira de Sá – Nós, do Consea-RS, recebemos com muita alegria a notícia de reinstalação do Conselho nacional, segundo decreto assinado pelo presidente Lula na posse presidencial, reestabelecendo o Consea como instrumento de controle social no referente ao direito humano à alimentação adequada e saudável e à segurança alimentar e nutricional.
A volta do Consea significa a retomada do Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional – Sisan, instituído em 2006 pela lei orgânica de segurança alimentar e nutricional, que identifica o Consea como um dos alicerces desse sistema. A retomada do Conselho nos traz esperança no que diz respeito à retomada do sistema como um todo e em termos de perspectivas para enfrentar o quadro de insegurança alimentar e nutricional.
Nos últimos quatro anos sem a atuação do Consea nacional, as unidades municipais e estaduais do órgão atuaram como resistência, ou seja, foram os guardiões do sistema de segurança alimentar e nutricional. No governo de transição, no qual representei o Consea, apontamos, como prioridade, para a retomada das políticas públicas, pela retomada do Consea nacional. O presidente Lula, no período eleitoral de campanha, tinha assumido esse compromisso da reinstalação do Consea nacional e, portanto, no seu primeiro ato institucional, deu uma resposta ao que foi o primeiro ato institucional do ex-presidente Bolsonaro, de desconstituição do Consea nacional.
IHU – Como o Consea se posiciona frente ao quadro de fome, insegurança alimentar e mudança no rumo das políticas públicas?
Juliano Ferreira de Sá – Estamos analisando o atual quadro da fome embasados na ciência e nas pesquisas. Temos como referência o Vigisan, Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, que apresenta o quadro gravíssimo de mais de 33 milhões de pessoas passando fome no país, isto é, pessoas que não têm nada para comer. Quando consideramos a situação de quem não tem três refeições por dia, ou seja, de pessoas que convivem com a fome diariamente, esse número passa para 65 milhões de pessoas no Brasil. Mesmo que a região Sul seja a menos afetada, comparada com a região Norte, que é a que mais sofre com a fome, o quadro do Rio Grande do Sul não é nada agradável. Pelo menos metade da população gaúcha, em torno de 48% da população, vive algum grau de insegurança alimentar e nutricional. A situação é ainda mais grave em lares com crianças de 0 a 10 anos: em 3 de cada 10 casas falta comida.
O retorno desse cenário é consequência do desmonte das políticas públicas. O relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura – FAO, publicado em 2014, quando reconheceu que o Brasil saiu do mapa da fome, foi categórico ao afirmar que o país saiu do mapa da fome graças à combinação de políticas públicas estruturais e estruturantes em várias áreas ao mesmo tempo, combinada com o controle social. Nesse sentido, o Consea teve um papel muito importante. Então, não temos dúvida de que só vamos enfrentar a fome com o retorno das políticas públicas, sobretudo no caso das pessoas que mais sofrem com a fome, que são as mulheres negras e mães solo. Ou seja, a fome é mais severa onde tem crianças, onde os lares são chefiados por mulheres e pessoas negras.
Há também um quadro muito grave com os povos originários e indígenas, comunidades quilombolas, povos de matriz africana, populações de periferias, em geral, e migrantes. Todos estão sofrendo muito com a fome.
É preciso haver políticas públicas transversais para enfrentar a fome, o que deve acontecer com a valorização do salário-mínimo e com a criação de programas de transferência de renda para a população – Juliano Ferreira de Sá
É assustadora também a questão da proporcionalidade da fome nos lares da agricultura familiar, que produzem alimentos: mais de 32% dos agricultores familiares estão convivendo diariamente com a fome. Isso é resultado do desmonte das políticas públicas, seja por conta da extinção ou diminuição das compras institucionais a partir dos programas de aquisição de alimentos, seja em decorrência dos programas de aquisição da alimentação escolar, que prevê uma compra mínima da agricultura familiar, bem como da expansão de soja e milho para a exportação.
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA mostram que nos últimos anos, enquanto aumentaram significativamente as lavouras de soja e milho, diminuíram drasticamente as lavouras de feijão, arroz, batata, mandioca e outros alimentos que vão para a mesa das pessoas. Baseado em todos esses dados, entendemos que, primeiro, é preciso haver políticas públicas transversais para enfrentar a fome, o que deve acontecer com a valorização do salário-mínimo e com a criação de programas de transferência de renda para a população.
Ficamos esperançosos com a notícia da volta do programa Bolsa Família, principalmente com valor aditivo para as famílias com crianças de 0 a 6 anos. Também é importante a retomada do Programa de Aquisição de Alimentos – PAA, assim como o fortalecimento e a atualização dos valores do Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE. As políticas transversais, combinadas com o controle social, são uma esperança para enfrentarmos a fome.
É possível reverter o quadro da fome no estado, mas isto precisa estar conectado com o novo contexto brasileiro, de retorno das políticas públicas – Juliano Ferreira de Sá
O anúncio do governo federal, de que teremos, em 2023, no mínimo 500 milhões para retomar o PAA é muito importante. Já temos 6,6 bilhões de reais para atualizar os valores repassados pelo PNAE, bem como outras políticas estratégicas e políticas emergenciais para o enfrentamento da fome. Somado a isso, a reinstalação do Consea em 28 de fevereiro, em Brasília, nos dá a esperança de que teremos condições de enfrentar, mais uma vez, a fome no país.
IHU – Quais os principais pontos que precisam ser retomados em relação às políticas públicas?
Juliano Ferreira de Sá – É muito importante que as políticas sejam formuladas à luz da ciência. Quando os dados científicos mostram que a fome está concentrada entre mulheres e mães solo, precisamos de políticas articuladas de combate ao racismo e ao machismo estrutural. Temos visto relatos assustadores, inclusive no Rio Grande do Sul, de trabalhadores e trabalhadoras em situação análoga à escravidão. Então, precisamos de políticas de combate aos preconceitos, precisamos elevar a renda da população e, nesse sentido, a notícia do aumento do salário-mínimo traz a esperança de promover transferência de renda para quem precisa.
O Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome está fazendo um pente fino na lista de quem recebe benefícios. Há a indicação de que cinco milhões de pessoas estão recebendo o benefício de forma indevida e imoral, por não estarem enquadradas no perfil das pessoas que necessitam. Esse ajuste para repassar a renda para quem precisa nos traz uma perspectiva boa.
É assustadora também a questão da proporcionalidade da fome nos lares da agricultura familiar, que produzem alimentos: mais de 32% dos agricultores familiares convivem diariamente com a fome – Juliano Ferreira de Sá
IHU – Qual o maior desafio hoje para a superação da fome no Brasil?
Juliano Ferreira de Sá – Hoje, nosso grande desafio em relação à fome é a retomada de um grande pacto nacional contra a fome. O perfil das pessoas que passam fome hoje é diferente daquele das pessoas que passavam fome na década de 1990, onde víamos imagens de pessoas esqueléticas e que tinham uma expressão de fome. Hoje, há uma fome camuflada em função da má alimentação, a fome travestida nas pessoas que acabam não tendo acesso a alimentos saudáveis e ficam reféns somente de ultraprocessados, indivíduos que acabam sofrendo de obesidade e sem um quadro alimentar saudável.
Tem também o problema das pessoas que estão no trabalho informal, como motoristas de aplicativos e entregadores de alimentos, que passam por problemas de insegurança alimentar e nutricional grave. Precisamos identificar onde estão essas pessoas.
Um dos desafios que temos é combinar políticas públicas estruturais – para isso, é preciso de investimento para colocar a população pobre e de baixa renda no orçamento público – e ações emergenciais. Nesse campo, nosso grande desafio é, como o Consea-RS sugeriu formalmente ao governo federal, reconhecer as cozinhas e hortas comunitárias, assim como outras iniciativas e experiências de solidariedade, como pontos populares de soberania e solidariedade alimentar. Estamos fazendo esse pedido de reconhecimento porque essas cozinhas, hortas e espaços comunitários estão promovendo solidariedade nas comunidades. No entanto são, majoritariamente, espaços que funcionam na marginalidade, funcionam nas casas das pessoas, sem CNPJ, sem ser uma ONG ou uma associação regularizada. Então, primeiro, precisamos retirá-las da informalidade, com esse reconhecimento, sem precisar da burocratização.
Com o mapeamento do Consea a respeito desses espaços, podemos oferecer para o governo federal, para os governos estaduais e municipais, pontos populares de soberania e segurança alimentar e nutricional, como locais aptos a receber a política pública. Com esse reconhecimento, seria possível que os conselhos municipais e estaduais referenciassem tais locais para receber alimentos do PAA, promovendo a agricultura familiar, colocando nessas cozinhas alimentos saudáveis, além de dar uma regularidade de oferta de alimentos.
Outra ideia é que as hortas e cozinhas também possam oferecer, para os governos federal, estaduais e municipais, alimentos e produtos para as compras institucionais. Seria uma forma de reconhecer e retirar da invisibilidade e da informalidade essas iniciativas que são de grande relevância no combate à fome. Isso daria a perspectiva de o governo federal criar editais públicos que possam estruturar essas cozinhas com equipamentos, utensílios e condições mais dignas de ofertar um alimento adequado e saudável, com condições de dignidade para as pessoas que mais precisam.
A solidariedade está sendo promovida pela sociedade civil, mas ela não basta para enfrentar a fome; é preciso haver políticas públicas estruturais e estruturantes – Juliano Ferreira de Sá
IHU – Como o Rio Grande do Sul tem se posicionado frente à realidade brasileira da fome e desnutrição?
Juliano Ferreira de Sá – Estamos dialogando com o estado do Rio Grande do Sul. Tivemos muita dificuldade de diálogo no primeiro mandato do governo Eduardo Leite. Muitas vezes, falamos sozinhos, enquanto sociedade civil, mas, no ano passado, durante as eleições, realizamos uma conferência estadual e apresentamos, ao governo 93, diretrizes para o enfrentamento da fome.
No final da gestão passada e no início desta, estamos conversando de forma próxima com o secretário estadual, que atua na área de assistência social. Estamos defendendo, junto ao secretário Beto Fantinel, que seja instalado um departamento de segurança alimentar, nutricional e de combate à fome no estado, justamente para pensarmos as políticas de modo articulado. O compromisso que o governo estadual está assumindo conosco é de utilizar essas diretrizes para elaborar um novo plano estadual de segurança alimentar e nutricional. O último plano venceu em 2019 e, desde então, estamos sem um plano.
Se em 2023 conseguirmos estabelecer um plano estadual e colocá-lo na pauta do plano plurianual, teremos uma boa perspectiva. O Consea vai estar à disposição do governo para fazer o diálogo tanto com as comunidades quanto com as organizações da sociedade civil, porque enfrentar a fome não é uma tarefa só do Estado, mas da sociedade civil. Precisamos saber qual é o papel de cada um.
A solidariedade está sendo promovida pela sociedade civil, mas ela não basta para enfrentar a fome; é preciso haver políticas públicas estruturais e estruturantes. No momento em que o Estado aceita a perspectiva de pensar um plano, isso nos dá uma boa esperança.
No momento, temos travado um bom diálogo com o governo de Eduardo Leite, para que possamos, nos próximos meses, construir a retomada do plano estadual de segurança alimentar, bem como a inclusão das diretrizes no plano plurianual dos próximos quatro anos da administração pública gaúcha.
IHU – É possível reverter esse quadro de fome e insegurança alimentar no estado? Quais ações estão sendo feitas neste sentido?
Juliano Ferreira de Sá – É possível reverter quadro atual, mas não é algo que vai acontecer isoladamente no Rio Grande do Sul. O impulsionador das políticas públicas é o governo federal. Na posse, quando Lula assumiu o compromisso de combate à fome e anunciou um conjunto de medidas e a retomada de programas, além da criação de ministérios voltados à questão, ele nos deu uma nova perspectiva. Tudo isso só tem sentido com a retomada do Consea nacional, que gera um efeito cascata para estados e municípios, porque as políticas anunciadas precisam ser executadas nos territórios.
Consequentemente, o Rio Grande do Sul vai receber políticas públicas federais, mas, para aplicá-las, o governo estadual precisa estar com a casa organizada e ter estrutura. Por isso, louvamos a iniciativa do secretário Beto Fantinel, de criar um departamento de segurança alimentar e combate à fome. Reconhecemos o quanto isso é importante para que possamos ter não só pessoas de referência no governo, mas equipes com capacidade técnica, administrativa e de articulação para executar as políticas públicas. Isso fará com que o governo contribua com a contrapartida econômica no sentido de colocar a questão da fome dentro do orçamento do Estado.
Nesse novo cenário, precisamos rever certas coisas, entre elas a questão da segurança hídrica. Por isso, é preciso dialogar com o Estado para rever a privatização da Companhia Riograndense de Saneamento – Corsan, principalmente nesse contexto de sucessivas estiagens, consequência das mudanças climáticas. A seca não é algo pontual no estado; é algo consolidado em consequência das mudanças climáticas e do avanço da monocultura.
No Pampa gaúcho, vemos o quanto a expansão da monocultura vem destruindo o bioma. Nesse sentido, precisamos rever a privatização de bens públicos e o uso de agrotóxicos porque o Rio Grande do Sul precisa ter um maior controle dos agrotóxicos. O estado precisa fazer sua parte e propor políticas enfrentem os problemas da região. É possível reverter o quadro da fome no estado, mas isto precisa estar conectado com o novo contexto brasileiro, de retorno das políticas públicas. Quando vemos a fome aumentar, é porque o Estado não está cumprindo a sua parte.
Edição Patricia Fachin