Reforma Agrária Popular

“CPT e MST lutam pela terra, por educação do campo e pelo fim do trabalho escravo”

Artigo de Gilvander Moreira ressalta a atuação da CPT e do MST em priorizar a educação popular, segundo a pedagogia libertadora de Paulo Freire
Foto: MST em SP

Por Gilvander Moreira*
Do IHU

Após abraçarem a luta pelo rompimento das cercas do latifúndio, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), desde 1975, e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), desde 1984, perceberam que lutar por educação pública de qualidade, especificamente Educação do/no Campo, e com base nele, também era, é e será sempre imprescindível, pois sem conhecimento crítico e criativo não acontece emancipação. O MST e a CPT buscam na sua atuação prática e coletiva a conjugação de forças que sejam de fato uma ecologia de saberes, baseada no reconhecimento da pluralidade de conhecimentos heterogêneos, sendo a ciência moderna apenas um deles, em interações sustentáveis e dinâmicas.

“A Ecologia de Saberes baseia-se na ideia de que o conhecimento é interconhecimento”, diz Boaventura de Souza Santos (SANTOS, 2010, p. 53). Assim, o conhecimento científico, que Boaventura Souza chama de Pensamento Abissal, é apenas uma das formas de conhecimento e, pior, atrelado aos poderes econômicos e políticos, desqualifica outros conhecimentos conquistados graças à interação construída na luta coletiva pela conquista da terra.

Gradativamente, a atuação da CPT e do MST passou a priorizar a educação popular, segundo a pedagogia libertadora de Paulo Freire, como ferramenta que faz avançar a luta por emancipação humana. Importante recordar que a educação popular e a pedagogia de Paulo Freire – de todas as freireanas e todos os freireanos – nasceram e se desenvolveram nas entranhas da luta pela terra em relação estreita com as camponesas e os camponeses exploradas/os e expropriados/as pelo latifúndio e pelo capitalismo. Na organização interna e nas lutas concretas pela terra, luta por território, pelas relações de protagonismo que se estabelecem, um significativo processo pedagógico passa a ser tecido.

Processo que busca romper as cercas do latifúndio, da ignorância e da privatização do conhecimento e, por outro lado, democratizar a terra e o conhecimento, afirmando assim a centralidade da luta pela terra e do trabalho coletivo nas lutas da CPT e do MST. No livro Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire se refere constantemente à terra como matriz pedagógica que tem um grande potencial emancipatório.

A concepção que fez nascer a CPT afirma que a terra é dom (dávida) de Deus, pertence a Deus. Esta noção vem da Bíblia e está ali presente em diversas passagens. A Campanha da Fraternidade de 1986, com o tema “Fraternidade e terra” e o lema “Terra de Deus, terra de irmãos,” contribuiu para legitimar a atuação da CPT, do MST recém-criado, para fomentar o nascimento de centenas de movimentos populares camponeses e fortaleceu a mobilização popular para inscrever na Constituição de 1988 a prescrição de desapropriação de latifúndios que não cumprem a função social para fins de reforma agrária.

Mesmo pertencendo a Deus, a terra, expropriada do campesinato nas sociedades capitalistas, só se torna dos camponeses e das camponesas – sem dinheiro para comprá-la -, se for conquistada na luta coletiva. Assim se deu com os povos da Bíblia, em todos os povos do mundo e acontece atualmente no Brasil na luta dos Movimentos Populares do campo. Para resgatar seus territórios invadidos por ‘brancos’ capitalistas, os indígenas lutam desde antes de Sepé Tiaruju até hoje; os negros lutam pela terra desde antes de Zumbi dos Palmares e Dandara, por meio dos quilombos, até aos quilombolas de hoje; os camponeses expulsos da terra lutam pelo resgate de suas terras desde antes de Antônio Conselheiro e Canudos, passando pelo Contestado, Ligas Camponesas, até hoje com o MST e tantos outros movimentos camponeses.

“A terra é de quem nela trabalha”, eis uma concepção defendida pela CPT desde sua origem há 48 anos. Na diversidade de visões sobre a terra podemos encontrar coincidências: com uma ou outra visão, mas as identidades serão diferentes. A terra é espaço disputado e é lócus sobre o qual se afirmam ou se destroem identidades.

Estima-se que cerca de sete milhões de pessoas negras foram arrancadas da África – pátria de origem, terra de liberdade -, e em navios negreiros trazidos à força para nosso país. Vendidos como mercadoria, ‘peça por peça’, foram usados e abusados como força de trabalho nos engenhos de açúcar, sobrevivendo nas senzalas, depois na mineração e ainda hoje perduram milhares de trabalhadores submetidos a situações análogas à escravidão. No final do ano de 2014 o Brasil tinha 155,3 mil pessoas em situação análoga à escravidão, segundo o relatório Índice de Escravidão Global 2014, da Fundação Walk Free, divulgado dia 17/11/2014. De acordo com a organização, 0,078% dos brasileiros estão nesta condição. Pela primeira vez, segundo o levantamento, o número de pessoas resgatadas em situação de trabalho forçado no setor da construção civil (38% dos casos) foi maior que no setor rural do país.

De acordo com a Fundação Walk Free, o Brasil atraiu bilhões de dólares em investimentos para a execução da Copa do Mundo de 2014, o que propiciou o aumento do número de casos em áreas urbanas. O relatório também destaca que a exploração sexual concentrou um grande número de pessoas em situação de trabalho forçado por causa do grande fluxo de turismo nas doze cidades-sede da Copa do Mundo. O relatório da Fundação Walk Free ressaltou que a cidade de Fortaleza concentrou boa parte dos casos de abuso sexual de crianças por turistas. O documento ressalta que ainda há muitas crianças trabalhando como empregadas domésticas. Em 2013, segundo a organização, 258 mil pessoas entre 10 e 17 anos estavam trabalhando como trabalhadoras domésticas no Brasil.

Segundo um dos autores do relatório Kevin Bales, também há preocupação com a participação de crianças no tráfico de drogas. De acordo com a Fundação Walk Free, outro dado relevante no país é o fato de muitos bolivianos e peruanos serem explorados na indústria têxtil. Mais da metade dos 100 mil imigrantes bolivianos que entraram no Brasil de forma irregular e são facilmente manipulados por meio da violência, das ameaças de deportação e da servidão por dívida, segundo a pesquisa. Lamentavelmente, a chaga do trabalho escravo contemporâneo continua aberta, conforme atesta a Campanha Permanente pela erradicação do trabalho escravo. E o estado de Minas Gerais está sendo nos últimos anos o estado campeão em trabalho escravo, o que é uma vergonha brutal para o povo mineiro.

*Gilvander Moreira é frei e padre da Ordem dos Carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia Bíblica no Serviço de Animação Bíblica, em Belo Horizonte.