Entrevista Exclusiva
“Trabalho de base nunca vai ser completo se não abarcar a cultura”, afirma Julian Boal
Por Solange Engelmann
Da Página do MST
Nesta quinta-feira (16), comemoramos o marco dos 92 anos de nascimento do dramaturgo brasileiro, fundador do Teatro do Oprimido e uma das maiores figuras do teatro contemporâneo internacional, Augusto Boal. Em celebração, seu filho, Julian Boal, chama atenção para a importância da cultura, a partir do Teatro do Oprimido, no trabalho de base dos movimentos sociais, junto à população brasileira.
“… Hoje talvez o aspecto cultural do trabalho de base não esteja sendo valorizado na medida em que deveria ser. O Teatro do Oprimido, seu arsenal de técnicas, de jogos, de exercícios tem um trabalho fundamental, porque se a gente sabe que o Bolsonaro perdeu, mas sabe que o bolsonarismo ainda está vivo, e pra ganhar os corações e mentes da população vai precisar de muito trabalho”, explica.
Boal foi companheiro da luta do MST com a criação de diversos grupos de teatro em acampamentos e assentamentos; e teve importante contribuição na criação da Brigada Nacional de Teatro do MST Patativa do Assaré, em 2001, juntamente com o Centro do Teatro do Oprimido. O dramaturgo faleceu em 2 de maio de 2009, no Rio de Janeiro, aos 78 anos, devido a uma leucemia.
Julian também fala sobre a trajetória do pai, a relação com o MST e em como homenagear Boal. Confira a entrevista completa:
Que elementos da história e construção social de Augusto Boal e de questões marcantes em sua trajetória são importantes para entendermos ele?
Acho que um dos elementos é, por exemplo, na infância, o fato do pai dele ser padeiro. Ele mesmo, enquanto moleque, vai trabalhar na padaria do pai e vê muitos trabalhadores, isso na periferia do Rio de Janeiro, na Penha. E começa a ter contato com os trabalhadores das fábricas que moravam ali do lado, desde cedo trabalhando no balcão da padaria do pai.
Também vai ser importante o contato com Nelson Rodrigues, que o apoia muito a escrever peças, e apresenta ele a críticos. Vai ser importante o contato com Abdias Nascimento, que vai pedir pro meu pai escrever peças muito cedo; vai ser importante a formação dele nos Estados Unidos, em que ele vai aprender tanto dramaturgia como frequentar os seminários de atuação no Actors Studio, onde ele vai ver técnicas inspiradas do Stanislavsk (Constantin Stanislavski foi um ator, diretor e escritor russo que viveu entre 1863 e 1938 em Moscou e um dos fundadores do Teatro de Artes de Moscou) e ser uma das pessoas que vai introduzir o Stanislavski no Brasil.
Ele era muito jovem quando entrou pro teatro de arena e é onde faz a primeira peça, a Revolução na América do Sul, em que expões inquietações que eram as do Brecht [Bertolt Brecht: dramaturgo, romancista e poeta alemão, criador do teatro épico anti-aristotélico]. E para formação do teatro do oprimido, a coisa mais importante é obviamente a ditadura, no que se entende o Teatro do Oprimido não só como uma invenção de um artista genial, mas como também uma cristalização de inquietações, de táticas de luta contra a ditadura que existiram naquele momento.
O Teatro do Oprimido como uma tentativa de organizar a população numa luta pela democracia, através das técnicas de teatros mais críticas possíveis”
Qual a importância do Teatro do Oprimido para a luta social da época e no Brasil de hoje?
Um pesquisador, ligado ao MST, aliás, Eduardo Campos Lima, viu que a primeira técnica do Teatro do Oprimido, é o Teatro Jornal, que é fazer teatro com recorte de jornal e um jeito de driblar a censura, visto que o textos já eram liberados pela censura. Através dessas técnicas os textos eram totalmente retrabalhados pra tentar fazer com que a verdade, que tinha sido excluída possa reaparecer. Então, é cruzando, por exemplo artigos de jornais – um sobre a economia que está melhorando, outro sobre um trabalhador que teve o sangue cozido por ter que entrar dentro de um forno de tijolo, ainda não apagado, obrigado pelo patrão e morreu por o sangue coser nas próprias veias. Então, colocar em relação essas duas notícias mostrava que sim, a economia poderia estar subindo, mas que essa economia estava decolando nas costas dos trabalhadores.
O Eduardo Campos Lima, nas suas pesquisas encontrou 70 grupos clandestinos atuando na época da ditadura, um número impressionante, massivo. Essa multiplicação dos grupos se dá antes da repressão atingir seu ápice. E com ela cai, muitos grupos se desfazem, atores e atrizes desaparecem.
Hoje, eu acho que ele é de uma importância fundamental. E talvez não utilizada no seu pleno potencial. Hoje muito se fala de trabalho de base, no entanto, esse trabalho de base nunca vai ser completo se ele não abarcar a cultura. A gente vê que um dos movimentos sociais mais importantes que o Brasil já conheceu, as CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), utilizavam muito a cultura, como modo de se aproximar da população, modo de fazer com que a população pudesse se engajar dentro de processos que decidiam seu próprio destino. E hoje, talvez o aspecto cultural do trabalho de base não esteja sendo valorizado na medida em que deveria ser. O Teatro do Oprimido, seu arsenal de técnicas, de jogos, de exercícios tem um trabalho fundamental, porque se a gente sabe que o Bolsonaro perdeu, sabe que o bolsonarismo ainda está vivo, e que pra ganhar os corações e mentes da população vai precisar de muito trabalho. E nisso o teatro do oprimido pode ser uma ferramenta.
Qual a relação entre o Teatro do Oprimido e o Movimento Sem Terra?
Há mais de 20 anos o Movimento Sem Terra teve uma política consciente de tentar sistematizar, fazer com que as atividades culturais que apareciam de modo mais espontâneo, fossem pensadas de formas mais orgânicas. Nesse esforço, o MST buscou junto ao meu pai, ao centro do Teatro do Oprimido aprender de maneira sistemática essa técnica de teatro. Nesse período mais de 30 grupos de Teatro do Oprimido, de teatro fórum vão surgir dentro do Movimento. Hoje talvez não existam tantos grupos, mas é porque talvez, justamente isso tenha ganho uma capilarização tamanha, que não precisa de grupos, já que uma técnica, uma dinâmica, uma peça curta vão ser formadas de maneira mais orgânica, sem a necessidade de grupos especializados pra puxar esse processo.
Eu lembro de um militante, que me disse que o Teatro do Oprimido funcionava como o MST, no sentido que colocava problemas pras pessoas, e que depois cabia às próprias pessoas encontrar as melhores maneiras de resolver esses problemas. De inventar as maneiras pra resolver esses problemas de forma coletiva. Eu achei uma definição muito bonita, porque é isso mesmo, no teatro fórum a gente coloca um problema pro público e a gente vê várias alternativas sendo postas em cena e depois analisadas criticamente pelo público.
De certa forma, o MST também faz isso, ocupa-se a terra, mas isso é só o começo de um processo de resolução de um bando de problemas que vão aparecer com essa ocupação. E é a resolução desses problemas que vai fortalecer o povo“
O que o legado de Augusto Boal representa para os artistas da atualidade?
Eu acho que tem vários legados, que são contraditórios entre eles. Tem o legado do grande herói que nos engrandece a todos, que é: meu pai participou da luta contra a ditadura, em função disso ele foi preso, torturado, exilado, viu vários dos seus companheiros serem torturados, alguns serem mortos e esse legado, ás vezes, da uma carta de nobreza pra classe artística como um todo, como se bastasse fazer teatro pra ser crítico à sociedade. E isso, infelizmente não é verdade. A gente sabe que tem muito teatro, televisão, cinema que só fazem repetir os valores dominantes dessa sociedade que a gente tenta mudar.
Eu acho interessante quando o legado do meu pai se torna um problema sobre como ser crítico à sociedade, como tentar organizar as pessoas, como tentar imaginar futuros possíveis, desejáveis nessa situação que é tão ruim como a de hoje”.
E também tem o legado do teatro de arena, que é muitas vezes um problema em si mesmo. Muita gente vê no arena um modelo a ser repetido hoje e não reinventado, segundo os problemas que estão colocados pela nossa conjuntura atual. Então, toda a solidariedade, admiração às pessoas que tentam reinventar o legado que seja de arena, que seja no teatro do oprimido e respeito também as pessoas que tentam repetir, mas acredito que os problemas de hoje precisam de soluções de hoje, e isso a gente pode se inspirar, e muito no meu pai, mas não pode simplesmente repetir.
Qual a melhor forma dos movimentos populares brasileiros homenagearem ao seu pai na atualidade?
Se apoderando da cultura como ferramenta pra fazer um trabalho de base, que abarque toda as dimensões que ele pode conter de fato.”
A gente sabe, viu historicamente o trabalho de base com a cultura vai mais fundo, mais denso, contribui até mesmo pra formação política das pessoas. Então, eu acho que isso é um ponto.
Tem uma entrevista do meu pai dá pra um jornal francês, em que ele diz: o teatro fórum, como uma forma de teatro do oprimido pode ensinar muito.
Um teatro fórum sobre uma greve pode ensinar muito, mas a greve vai ensinar mais. Então, eu acho que a melhor maneira de homenagear quem fez tantas revoluções dentro do palco é talvez ensaiar os processos que deram revoluções fora dele.
*Editado por Fernanda Alcântara