Direitos Indígenas
Quatro decisões de reintegração de posse ameaçam povo Pataxó no extremo sul da Bahia
Por Tiago Miotto
Do CIMI
Quatro decisões recentes de reintegração de posse ameaçam três comunidades do povo Pataxó nas Terras Indígenas (TIs) Comexatibá e Barra Velha do Monte Pascoal, no extremo sul da Bahia. Os Pataxó e a Defensoria Pública da União (DPU) recorreram à Justiça contra as sentenças, que podem intensificar ainda mais a violência contra os indígenas na região, deflagrada desde o ano passado.
Três das decisões foram emitidas na última sexta-feira (17), num intervalo de meia hora, pelo juiz Raimundo Bezerra Mariano Neto, da Justiça Federal de Teixeira de Freitas (BA). A outra decisão foi proferida pela Justiça Estadual da Bahia em agosto de 2022, mas só chegou ao conhecimento da comunidade nesta semana.
As determinações judiciais ocorrem em meio a uma ofensiva midiática contra o povo Pataxó, que luta pela demarcação de suas terras e tem solicitado ao governo federal o envio da Força Nacional para a região, como medida de controle da violência.
Em quatro meses, três jovens e uma criança do povo Pataxó foram assassinados em meio aos conflitos pela terra na região. Em setembro de 2022, Gustavo Pataxó, de apenas 14 anos, foi assassinado durante um ataque de pistoleiros contra a comunidade Vale do Rio Cahy.
Em outubro, o corpo do Pataxó Carlone Gonçalves da Silva, de 26 anos, foi encontrado na região, um mês depois de ter desaparecido na TI Barra Velha. Em janeiro deste ano, Samuel Cristiano do Amor Divino, de 25 anos, e o adolescente Nauí Brito de Jesus, de 16 anos, foram perseguidos e executados próximos à TI Barra Velha por pistoleiros que atuam para fazendeiros da região.
Além do potencial agravamento dos conflitos, as decisões judiciais contrariam determinação do Supremo Tribunal Federal (STF), aponta a assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Leste, Lethicia Reis.
“Não se sabe se o Judiciário foi influenciado pela mídia ou pelo contexto de criminalização dos movimentos de luta pela terra e pela reforma agrária. O fato é que, durante essa semana, chegaram ao conhecimento das comunidades essas quatro decisões de reintegração de posse, que contradizem a decisão do STF que suspendeu todos os processos relacionados a direitos indígenas”, explica a advogada.
A decisão do STF ocorreu no âmbito do processo de repercussão geral sobre demarcações de terras indígenas, cujo julgamento foi interrompido em setembro de 2021. Nesta semana, a presidente da Corte, ministra Rosa Weber, prometeu que o caso deve voltar à pauta do Supremo ainda neste semestre.
Essa argumentação [do juiz] contradiz não só o indigenato, os direitos originários dos povos sobre seus territórios, como também a jurisprudência do Supremo”
TI Comexatibá
Em decisão assinada digitalmente às 9h47 da manhã do dia 17 de março, o juiz Raimundo Bezerra Mariano Neto determinou uma reintegração de posse contra a aldeia Alegria Nova, localizada na TI Comexatibá. A decisão atende ao pedido dos proprietários da Fazenda Santa Rita III, sobreposta ao território Pataxó e retomada pelos indígenas em junho de 2022.
Com caráter liminar, a decisão estabelece um prazo de 72 horas a partir da notificação da comunidade indígena para a desocupação da área.
Nesta semana, a DPU entrou com uma reclamação constitucional contra a decisão junto ao STF – instrumento utilizado quando há desobediência de determinações do Supremo por algum juiz subordinado a ele.
TI Barra Velha do Monte Pascoal
Na TI Barra Velha do Monte Pascoal, três decisões de reintegração de posse afetam duas comunidades indígenas. A primeira delas, assinada pelo juiz Raimundo Bezerra Mariano Neto às 9h13 da manhã do mesmo dia 17, admite o pedido de reintegração de posse contra indígenas do povo Pataxó apresentado pelos proprietários da fazenda Marie, sobreposta à terra indígena.
Em sua decisão, o juiz reconhece que as retomadas realizadas pelos povos originários são “mais um desdobramento da omissão estatal na definição dos espaços territoriais indígenas, contribuindo para a eclosão de situações conflituosas envolvendo indígenas e não-indígenas”.
Apesar disso, decide em favor do fazendeiro, argumentando que a disputa possessória não ocorre em uma terra indígena com a demarcação já concluída – e, por isso, não estaria contrariando a determinação da Suprema Corte.
A posição do juiz, no entanto, contradiz a Constituição Federal e a própria jurisprudência do STF, explica a assessora do Cimi Regional Leste. Como a demarcação de terras indígenas é um processo de reconhecimento de territórios originários, o direito dos povos sobre suas terras independe da conclusão do processo demarcatório.
“Essa argumentação contradiz não só o indigenato, os direitos originários dos povos sobre seus territórios, como também a jurisprudência do Supremo. Não seria uma retomada, nem estaríamos falando em reintegração de posse, se a área estivesse demarcada. Se fosse assim, estaríamos falando da desintrusão dos invasores, os fazendeiros. Os Pataxó, assim como outros povos, só usam a estratégia das retomadas porque estão sendo expulsos de suas terras”, explica Lethicia.
Também neste caso, devido ao descumprimento da determinação da Suprema Corte, a DPU entrou com uma reclamação junto ao STF contra a decisão.
Não estamos invadindo terra. Estamos fazendo um trabalho de autodemarcação dentro da TI Barra Velha, retomando o que é nosso e lutando pelos nossos direitos”
Aldeia Quero Vê
Às 9h47 da mesma manhã, o juiz federal emitiu uma terceira decisão de reintegração de posse contrária ao povo Pataxó, dessa vez contra a comunidade da aldeia Quero Vê, também localizada na TI Barra Velha do Monte Pascoal.
A decisão atende ao pedido da proprietária de uma área de oito lotes de 300 metros quadrados sobrepostos à terra indígena e retomados pelos Pataxó em janeiro de 2022.
A retomada foi uma reação dos indígenas ao aumento da especulação imobiliária e à descaracterização do local, próxima à praia, pelos empreendimentos turísticos.
“Nossa aldeia está dentro do nosso território, dentro dos limites da TI Barra Velha. Não estamos invadindo terra. Estamos fazendo um trabalho de autodemarcação dentro da TI Barra Velha, retomando o que é nosso e lutando pelos nossos direitos”, afirma Patiburi Pataxó, cacique da aldeia Quero Vê.
Na segunda-feira (20), a comunidade da aldeia Quero Vê também foi informada de outra decisão judicial de reintegração de posse, atendendo ao pedido de outro proprietário de dois lotes sobrepostos ao território e retomados pelos indígenas.
Contrariando a Constituição, que estabelece que assuntos ligados aos povos indígenas são de competência federal, a decisão foi emitida pela Justiça Estadual da Bahia em Prado e nem sequer menciona a palavra “indígena”.
Com caráter liminar, a decisão foi expedida em agosto de 2022, mas os indígenas só foram notificados nesta semana. A comunidade recorreu das decisões por meio de duas reclamações feitas à Suprema Corte.
“O dono dos lotes entrou na Justiça Estadual porque ele não reconhece que é uma ocupação indígena. Ele diz que são pessoas que ‘se dizem indígenas’ mas que, na verdade, seriam trabalhadores rurais”, explica Lethicia, que atua como advogada da comunidade da aldeia Quero Vê nas reclamações ao STF.
“Isso é uma forma de racismo, negar a identidade dos Pataxó. Mas essa estratégia não é nova e tem sido utilizada pelos fazendeiros. Esse proprietário, inclusive, tem pressionado os Pataxó a saírem da área antes das 72 horas determinadas para a reintegração”, prossegue a assessora.
“Então, essa decisão da Justiça Estadual não foi à toa. É uma forma de negar que isso tenha a ver com a demanda Pataxó, com a questão do território e com a falta de demarcação”, avalia Lethicia.
Para Patiburi, a acusação de que os Pataxó não seriam indígenas “verdadeiros”, mais do que absurda, cai na seara do ridículo. “Se nós não formos mais Pataxó, quem vai ser Pataxó aqui? Os fazendeiros?”, questiona o cacique.
Esse processo de retomadas nas terras Pataxó do extremo sul ganhou força em junho do ano passado, com as lideranças insatisfeitas com a falta de resposta do Estado”
Autodemarcação
Em 2022, o povo Pataxó deu início ao que define como um processo de autodemarcação de seus territórios. Cansados de aguardar pela demarcação de suas terras e pressionados pelo avanço do desmatamento, de empreendimentos imobiliários do setor hoteleiro e dos monocultivos de café, pimenta e eucalipto, os indígenas decidiram reocupar seu território.
“Esse processo de retomadas nas terras Pataxó do extremo sul ganhou força em junho do ano passado, com as lideranças insatisfeitas com a falta de resposta do Estado, tanto na demarcação quanto com a falta de julgamento da repercussão geral no STF”, explica Lethicia.
“Como reação, os fazendeiros e o setor imobiliário que ocupavam as terras indígenas se mobilizaram, se aliaram a milícias rurais e houve diversas mortes de lideranças Pataxó desde então”, contextualiza a assessora.
As TIs Barra Velha do Monte Pascoal, com 52,7 mil hectares, e Comexatibá, de 28 mil hectares, já foram identificadas e delimitadas pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
A TI Barra Velha do Monte Pascoal, identificada pela Funai em 2009, aguarda a emissão da portaria declaratória, atualmente atribuição do Ministério dos Povos Indígenas (MPI). Depois da derrota dos fazendeiros que questionaram judicialmente a demarcação, em 2019, não há nenhum impedimento legal à emissão da portaria.
No caso da TI Comexatibá, antes da emissão da portaria declaratória, é necessário que a Funai responda às contestações feitas por fazendeiros e empresários ao relatório circunstanciado de identificação e delimitação da área, publicado em 2015.
Propaganda anti-indígena
Nas últimas semanas, o povo Pataxó tem sido alvo de uma série de reportagens em grandes meios de comunicação que questionam a legitimidade da demarcação de suas terras no extremo sul da Bahia e, inclusive, a identidade indígena das comunidades em luta pela terra.
Em nota, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e a Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) afirmam que “algumas empresas de comunicação têm promovido uma campanha midiática contra as autodemarcações na região”.
Para as organizações, matérias recentes veiculadas pelos canais Jovem Pan News e Band “não esclarecem os motivos reais dos conflitos e não apuram responsáveis, atribuindo supostos crimes à luta dos indígenas, ao mesmo tempo que não reconhecem a legitimidade do povo sobre seu território”.