Entrevista

“É um novo momento em que queremos recolocar a Reforma Agrária na centralidade do Governo”

Em entrevista, Ayala Ferreira, do Setor de Direitos Humanos do MST, relembra o massacre de Carajás e faz avaliação de Jornada Nacional de Luta de Abril
Ayala Ferreira. Foto: Arquivo MST

Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST

O 17 de abril estará para sempre marcado em nossa história e memória como um dia de luto e luta camponesa, relembrado pelos movimentos populares camponeses do mundo. Em 17 de abril de 1996, um massacre resultou na morte de 21 trabalhadores rurais Sem Terra que participavam de uma marcha pela Reforma Agrária, no município de Eldorado do Carajás, no sul do Pará.

O massacre foi cometido pela Polícia Militar do Pará, que recebeu ordens do então governador do Pará, Almir Gabriel e do secretário de segurança, Paulo Sette Câmara para desobstruir a rodovia PA-150, que estava bloqueada pelos Sem Terra. A ação policial foi brutal e desproporcional, com uso de armas de fogo, bombas de gás lacrimogêneo e instrumentos cortantes. A perícia constatou que muitas vítimas foram executadas à queima-roupa, pelas costas ou na cabeça.

Desde então, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra marca a data com ações que colocam em evidência a questão agrária no Brasil, marcada por conflitos, desigualdades e injustiças. O dia 17 de abril foi instituído como o Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária no Brasil, em homenagem aos mortos de Eldorado do Carajás e a todos os que lutam pelo direito à terra. E internacionalmente é marcado como Dia Internacional de Luta Camponesa, criado pela Via Campesina.

“O dia 17 de abril se transformou no Dia Internacional da luta dos camponeses e das camponesas. Ao longo dos anos, fomos organizando os trabalhadores para fazer ocupações de latifúndios nesta data e pressionar o governo, através de seus órgãos responsáveis, pela implementação da Reforma Agrária e para avançar nas políticas voltadas ao fortalecimento do campo e da agricultura camponesa”, relata Ayala Ferreira, da Direção Nacional do MST, pelo Coletivo Nacional de Direitos Humanos do MST e militante no Pará.

Apesar da repercussão do caso, a impunidade prevaleceu. Dos 155 policiais militares envolvidos na operação, apenas dois oficiais foram condenados: o coronel Mário Colares Pantoja e o major José Maria Pereira de Oliveira, que comandavam as tropas. Eles foram sentenciados a 228 e 158 anos de prisão, respectivamente, mas recorreram em liberdade até 2012, quando foram presos. Os demais policiais foram absolvidos por falta de provas ou prescrição dos crimes.

Eldorado do Carajás,1996. Foto: Pesquisa de imagens Arquivo e Memória MST

Ayala relembra o Massacre de Eldorado do Carajás, que ganhou as manchetes no mundo, pela brutalidade da ação militar e alerta para o risco da fome atingir o campo, por falta de políticas do governo federal à agricultura camponesa e familiar. Confira a entrevista:

Neste mês o MST realiza a Jornada de Lutas em memória aos trabalhadores assassinados em Eldorado do Carajás (PA). Mas Carajás não foi um fato isolado, foi um marco para continuidade de outros massacres. Quais desdobramentos rememorar o massacre nos traz hoje?

Para quem ainda não sabe, o massacre de Eldorado do Carajás, como ficou mundialmente conhecido, foi uma ação violenta implementada pela Polícia Militar do Estado do Pará a mando do então governador na época, Almir Gabriel (PSDB), e que resultou no assassinato de 21 trabalhadores rurais Sem Terra e deixou cerca de 70 trabalhadores e trabalhadoras rurais vinculados ao Movimento Sem Terra mutiladas, com sequelas e balas alojadas em várias partes do corpo. 

Essa foi a resposta dada pelo Estado brasileiro a uma luta pacífica e que faz parte da Constituição brasileira, que é dar função social à terra, destinar a terra e as terras no nosso país para a Reforma Agrária. 

Mesmo passado 27 anos, é importante rememorar, para que não se repitam episódios como o massacre de Eldorado do Carajás, lamentavelmente, para que acabe em impunidade. Para que outros massacres ou outras violências contra os trabalhadores não possam ocorrer”.

Lamentavelmente, o contexto que marca a luta pela terra e a luta pela Reforma Agrária no país são essas violências que, na sua grande maioria, não têm responsabilização nem dos mandantes, nem dos assassinos. Desde 1996 até os dias atuais, mais ou menos 300 pessoas foram assassinadas no campo, segundo dados organizados pela Comissão Pastoral da Terra. A impunidade e a forma violenta com que o Estado, o latifúndio, age contra aqueles que lutam pela terra provoca uma realidade dessa que nós estamos vivendo. 

Se formos pensar num desdobramento acerca do que ocorreu no dia 17 de abril de 1996 é que ainda há uma necessidade de debater a Reforma Agrária. Ela ainda é importante e central, porque vivemos num país marcado por profundas desigualdades que vêm em decorrência do que chamamos de concentração da terra e de outros meios de reprodução e produção da existência da vida das pessoas. 

Foto: Pesquisa de imagens Arquivo e Memória MST

No “Abril Vermelho”, o MST busca organizar mobilizações massivas em torno da Reforma Agrária Popular contra a fome. Qual a importância de trazer este projeto a partir de debates e ocupações?

É importante que todos tenham consciência de uma coisa: Existe uma realidade que marca os dias atuais no nosso país: a fome. Hoje temos cerca de 33 milhões de brasileiros e brasileiras que passam fome e mais de 100 milhões de brasileiros que vivem, de certa forma, no que nós chamamos de insegurança alimentar. E essa realidade é resultado concreto de que, no campo brasileiro, há um projeto que é do agronegócio que ele não prioriza a produção de alimentos, tampouco prioriza o bem estar dessa sociedade ou da sociedade brasileira como um todo. E o contraponto para esse projeto hoje é a Reforma Agrária, a partir de algumas dimensões fundamentais. Quando falamos em Reforma Agrária no Brasil se trata da democratização do acesso à terra. 

Lamentavelmente, somos o país que mais concentra terras no mundo. E quando nós falamos em função social da terra, estamos falando de criar mecanismos de produção de alimentos que possam dar conta da subsistência daqueles e daquelas que produzem diretamente na terra, mas, sobretudo, dar condições de produção de alimentos para garantir a soberania alimentar e, consequentemente, garantir com que aqueles e aquelas que estão passando fome ou que estão em insegurança alimentar possam ter acesso ao alimento diverso, de custo barato, alimento livre de agrotóxicos, livre de venenos. 

O campo brasileiro hoje vive essa polarização de dois projetos: a do agronegócio e a da agricultura familiar, a da agricultura camponesa, a da Reforma Agrária. É esse enfrentamento cotidiano que a gente tem visto e enfrentado no campo do nosso país. 

A partir desta dualidade, a Jornada deste ano também traz a Reforma Agrária Popular como a solução para o agronegócio que escraviza e mata. Como isto se aplica ao ontem, em Eldorado do Carajás, e ao hoje, com as denúncias ao trabalho degradante?

É fundamental compreendermos que o campo brasileiro sempre foi marcado por disputa de modelos. No passado, era o latifúndio versus os Sem Terra. Nos tempos mais recentes, é o agronegócio que se traveste de moderno, mas que existe sob bases extremamente arcaicas e profundamente contraditórias. O agronegócio possui contradições social, econômica e ambiental. É um modelo que marca o que nós chamamos de hegemonia do capitalismo no campo brasileiro. 

O contraponto do agronegócio é a Reforma Agrária e a agricultura camponesa familiar. E esses dois modelos que se confrontam permanentemente, é a função social da terra versus a defesa intransigente da propriedade privada da terra. A pergunta que fica é:

O que mais aparece na Constituição Federal? Do que a sociedade brasileira necessita mais? O que de fato acabaria com a fome e a miséria no Brasil? O que respeitaria mais a preservação e conservação da natureza e dos bens naturais do nosso país?” 

São essas perguntas que precisamos fazer quando falamos de disputa de modelos no campo. Há toda uma articulação dos representantes do agronegócio para dizer que o Estado tem obrigatoriamente que defender a propriedade privada da terra, mas sem debater se ela tem produzido alimentos, se ela tem respeitado as condições de vida dos trabalhadores e das trabalhadoras ou se ela respeita os marcos legais de defesa da natureza. 

Como o lema desta Jornada, que envolve terra, democracia e meio ambiente, está relacionado aos 27 anos do Massacre de Carajás?

É importante que se diga que as jornadas do “Abril Vermelho”, como ficou conhecida, cumprem uma dupla função. Uma tem a ver com esse resgate da memória do que ocorreu no dia 17 de abril de 1996 e que, de certa forma, representa esse esforço de seguir na luta pela terra, na luta pela Reforma Agrária. Temos de relembrar os nossos mortos, nossos mártires que antecederam e doaram suas vidas por uma causa tão justa e necessária.

A outra está relacionada à atualidade, que pede para pensar estas questões como a polarização e as disputas de projetos. Primeiro, porque o Estado do Pará, onde ocorreu o massacre de Carajás, é um estado marcado por profundas contradições. Lamentavelmente, o Pará ocupa o topo das violências contra os trabalhadores e trabalhadoras mortos, assassinados ou à submissão ao trabalho e condições degradantes, trabalho análogo à escravidão, e por inúmeros crimes ambientais.

Trazer à tona esses temas tem a ver com a história do passado de Carajás, mas também com essa atualidade que nós temos vivido com a deflagração de trabalhos análogo à escravidão e aos inúmeros crimes ambientais

Fazer a Jornada de Abril com essa temática do combate à fome, do combate à escravidão, de defender a democracia, a democratização do acesso à terra e a defesa do meio ambiente tem tudo a ver com a conjuntura que estamos vivendo.

E acho importante ressaltar que este ano vamos realizar as mais diferentes e criativas ações de mobilização dos trabalhadores e trabalhadoras: teremos ocupações, marchas, celebrações, ações de solidariedade com a doação de alimentos e de sangue nas capitais, nas cidades, vigílias.”

Entramos em um novo momento do Brasil, mas ainda temos os maiores índices de concentração de terras do mundo.  Hoje, quais são os desafios mais urgentes colocados pela conjuntura na luta pela terra no país?

Vinculados à nossa Jornada de Abril de luta pela terra e de luta pela Reforma Agrária Popular, creio que o nosso desafio prioritário é recolocar a Reforma Agrária no debate com a sociedade brasileira; Da sua importância e como saída de combate à fome e às misérias. E também recolocar a Reforma Agrária na agenda política do governo brasileiro. 

De fato, estamos vivendo um novo momento. Depois de seis longos anos, com golpe e um governo de extrema direita que não tinha compromisso nenhum com os trabalhadores e trabalhadoras, ter novamente um governo que se coloca a serviço dos interesses da coletividade, dos interesses dos trabalhadores e trabalhadoras é libertador. É um novo momento em que queremos aproveitar para recolocar a Reforma Agrária na centralidade do Estado, na prioridade das ações do novo governo, a partir da necessidade de retomarmos com força uma ampla, massiva e animada política de desenvolvimento do campo.

Esse é nosso desafio prioritário agora, fazer com que a sociedade reconheça a importância da Reforma Agrária na produção de alimentos no nosso país e no enfrentamento das desigualdades. E recolocar na agenda do governo federal a importância de se reapresentar para a sociedade brasileira um novo plano de Reforma Agrária, que passa pela garantia do acesso à terra e pelas políticas públicas para desenvolver os territórios ocupados e conquistados pelos trabalhadores e pelas trabalhadoras”. 

*Editado por Solange Engelmann