Coluna Aromas de Março
Não é amor, é trabalho não pago!
Por Renata Porto Bugni*
Da Página do MST
O mês de maio é marcado pelas comemorações do Dia das Mães, com diversas festividades familiares, cheio de simbolismos e homenagens a essas mulheres. Mas propomos dedicar aqui alguns minutos para refletir sobre o significado e a funcionalidade do que existe por trás dessas relações, e como elas se localizam no tempo e no espaço para manter as estruturas e o nosso funcionamento social.
Para isso, que tal a gente falar sobre o papel da família, sua natureza e suas configurações e, para chegarmos lá, também entender qual o papel da mulher – e das mães – dentro dessa família e na sociedade hoje?
Em nossas lutas feministas recentes temos trazido o tema do trabalho doméstico não pago: todas nós sabemos sobre quem recai a maior parte dos afazeres domésticos e dos cuidados na família. As mulheres se sobrecarregam com esse trabalho que é cotidiano, sem folga, ininterrupto e necessário, mesmo quando trabalham fora. A gente chama isso de jornada dupla e, às vezes, até jornada tripla: quando além de trabalhar fora, a mulher se responsabiliza pelo trabalho doméstico, como lavar, cozinha, limpar, e pelos cuidados familiares com crianças, idosos, enfermos; com a saúde e alimentação de todos, e ainda estuda, milita e/ou assume outras tarefas. Podemos até dizer que as mulheres são criadas para assumirem essas responsabilidades de cuidado desde muito cedo e que se prolonga por toda sua vida. A isso damos o nome de divisão sexual do trabalho.
Acontece que, na sociedade em que vivemos, esse trabalho no lar aparece como um serviço pessoal fora do âmbito da produção capitalista, isto é, fora do mercado. E ele ocorre e se organiza, predominantemente, nas unidades familiares, sendo majoritariamente executado pelas mulheres. Isso significa que as tarefas domésticas e as de cuidado não entram na conta do mercado, não geram remuneração para aquelas que a elas se dedicam. Dados recentes estimam que mulheres e meninas do mundo destinam cerca de 12,5 bilhões de horas diárias ao trabalho de cuidado – uma contribuição equivalente a cerca de US$ 10,8 trilhões de dólares por ano à economia global.
Por isso, desde meados dos anos 1960, a luta das mulheres tem apontado o trabalho doméstico não pago como base material para a compreensão da opressão de gênero na sociedade capitalista. Foi nesse período, inclusive, que diversos movimentos de mulheres saíram às ruas exigindo salário para o trabalho doméstico, e criam o termo “O Pessoal é Político”, em que se passou a defender que “o que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”. Era o fortalecimento de uma luta por reconhecimento, direitos e igualdade entre os sexos, mas também uma retomada da histórica luta por políticas públicas que possibilitassem a socialização de parte dessas tarefas.
Já naquela época, feministas começam a investigar essa relação do trabalho doméstico com o funcionamento da sociedade, ou, em outras palavras, com a reprodução do capital. Qual é a importância do trabalho doméstico e de cuidados para a sociedade? Comer, beber, dormir, vestir-se, entre outras atividades básicas, é que permitem que o trabalhador possa chegar todas as manhãs pronto para vender sua força de trabalho e ganhar um salário para manter sua família. Gerar, parir e criar as crianças que serão a próxima geração, garantem a futura mão-de-obra para este mercado de trabalho. Assim, uma importante premissa é levantada na luta das mulheres: sem trabalho doméstico, os trabalhadores não podem se reproduzir e, sem trabalhadores, o capital não pode ser reproduzido.
Vejam que interessante pensar e compreender que o trabalho doméstico que é tão desvalorizado, não (ou mal) remunerado e majoritariamente realizado por mulheres, é na verdade, um motor imprescindível da nossa organização social! E ele acontece basicamente nas nossas unidades domésticas, isto é, dentro de uma divisão de tarefas na família.
Essa divisão de tarefas ocorre de acordo com o sexo/gênero, como já vimos, mas também depende de uma certa configuração familiar. E essa forma social de família está enraizada e precisa ser compreendida de acordo com as relações de produção capitalista. Para manter tudo como está, a família da classe trabalhadora precisa seguir dois modelos. Primeiro, os relacionamentos não podem se dar livremente, eles precisam ser uma relação de parceiros exclusivos, que numa sociedade desigual entre os sexos significa um peso maior para a mulher que sofrerá diversos ordenamentos morais atrelados a sua sexualidade. Essa relação exclusiva é a monogamia. Segundo, além da família ser monogâmica, ela precisa seguir uma ordem sexual fundada somente em relacionamentos heteronormativos, ou seja, necessariamente entre um homem e uma mulher.
Esses padrões são impostos para garantir que apenas este modelo de família seja considerado “aceitável” na sociedade. Acontece que essa forma de família não é algo “natural”, mas em realidade baseia-se em condições econômicas que pressionam a manutenção da ordem social, e a família se torna uma unidade social essencial que garante a reprodução da própria classe trabalhadora.
Numa sociedade em que os homens têm mais poder e maior status do que as mulheres – ao que chamamos de patriarcado -, esse modelo de família monogâmica heterossexual constitui uma base material para garantir a supremacia masculina. Além disso, há diversos fatores ideológicos e psicológicos que fornecem uma base contínua para a supremacia dos homens. Por isso são tão combatidas as relações homoafetivas nas mais diversas trincheiras sociais. Bem como, outras configurações de família, e assim em diante.
A família constitui um importante, senão o principal terreno que nutre a opressão às mulheres sob os complexos fenômenos sociais, psicológicos e ideológicos. Essa família monogâmica, heteronormativa e patriarcal é uma das bases materiais fundamentais da opressão às mulheres.
E nós, que lutamos por um mundo emancipado, não capitalista, antipatriarcal, temos que ressignificar as nossas celebrações, para que elas sejam a semente emancipadora das nossas futuras relações sociais.”
Por isso, neste mês de maio, poderíamos ressignificar o Dia das Mães para, na verdade, comemorar o dia do cuidado, que deve ser coletivizado, socializado, feito por todos e qualquer membro da sociedade, por todas as pessoas da família, tenha a família a configuração que for em sua multiplicidade de formas, de celebração do amor e do companheirismo.
Feliz Dia das Mães, cuidadoras e cuidadores do nosso povo!
*Renata é militante do MST e integrante da Frente de Estudos Feministas da Editora Expressão Popular
**Editado por Solange Engelmann