Culinária da Terra
Comida boa, cultura e afeto
Por Jade Azevedo
Da Página do MST
Quem veio à feira da Reforma Agrária, entre os dias 11 e 14 de maio, em São Paulo, pôde fazer uma viagem completa ao Brasil, tanto através da comida e dos diferentes produtos comercializados na feira quanto afetiva, visual e sonora quando conversava com cada feirante que atendia.
A feira trouxe para São Paulo uma diversidade de alimentos saudáveis, sem veneno, de todas as regiões do Brasil, que se misturou ao sotaque e cultura culinária de cada estado na tenda Culinária da Terra. Ana Chã, da coordenação nacional do MST, afirmou que o espaço de culinária foi pensado para trazer toda a diversidade alimentar e cultural dos assentamentos e acampamentos do MST Brasil afora. “São 24 cozinhas trazendo os ingredientes, biomas, saberes e sabores no preparo desses alimentos”, enfatiza.
Os pratos da Culinária da Terra trouxeram o milho, a macaxeira, arroz, feijão, pinhão e uma diversidade de frutas e legumes que são produzidos pela Reforma Agrária Popular pelo acúmulo da tarefa produtiva nestes 40 anos do MST. Em cada banca que o consumidor parou, ele pode levar para a casa muito mais do que alimento.
Segundo Ana Chã, seria quase impossível, num domingo como hoje, encontrar comida de todas as partes do Brasil em um só espaço. Essa foi uma experiência rica oferecida pela 4ª Feira Nacional da Reforma Agrária.
Um Entrevero na cultura culinária
Santa Catarina trouxe o Entrevero de Pinhão como prato típico do estado para a feira. Feito com arroz orgânico, três tipos de linguiças, o pinhão, tomate e temperos e sal de ervas.
O prato tem como principal ingrediente a semente da araucária, árvore típica da região sul do Brasil, e como ressaltou Irma Brunetto, assentada no Conquista da Fronteira, Dionísio Cerqueira (SC), “O Entrevero significa uma mistura, um frevo. É um prato típico da região serrana que tem uma produção muito grande de pinhão, ingrediente muito comum na culinária no dia a dia nessa época do ano”, conta.
O feijão e toda a sua variedade também está presente em muitos pratos em diversos estados, como a tradicional feijoada que estava presente na barraca do Rio de Janeiro e o feijão tropeiro da culinária de Minas Gerais. O feijão fradinho esteve nos pratos típicos da Bahia, como ingrediente principal do acarajé e o feijão de corda acompanha o prato principal do Alagoas. Nina Soares, do Alagoas, contou que o sururu, prato típico de Alagoas, lembra muito a sua raiz. “Eu já morei em Maceió, e onde eu morava era perto da lagoa, justamente onde a gente pega o sururu, a gente colhia o sururu dentro da lagoa, e quando eu como me vem essa lembrança”.
Nina contou também sobre a produção de alimentos da reforma agrária no estado, que é bem diversa. “Nossa produção principal é a macaxeira e outras raízes, batata, milho, abóbora, maracujá, banana, laranja”. O cardápio conseguiu trazer toda essa diversidade da cultura agrícola e também da criação animal com pratos que traziam a galinha de capoeira, bode e carneiro, como proteína principal.
O feijão, assim como o milho, a macaxeira são ingredientes que estão presentes na cozinha do Norte e Nordeste e acompanharam muitos pratos, mostrando como a produção de alimentos do MST é rica, diversa e que fortalece a soberania alimentar.
João Mendes, morador do assentamento Vale da Esperança, em Teresina/PI, contou que no estado são produzidos diversos alimentos derivados da macaxeira, também conhecida como mandioca e aipim. “Produzimos vários alimentos, farinha, goma, além do arroz, feijão, tudo por lá. Todos são produzidos no assentamento, a cajuína a gente produz lá também. É o sumo do caju, tira o sumo e põe para ‘colorar’ por 8 dias”, diz ele. João disse que sua comida preferida é o prato Maria Izabel, que vai carne seca, arroz e azeite de coco.
Uma consumidora que estava passeando na feira contou que chegou e foi direto na feira do Piauí, cidade onde nasceu e cresceu, “eu achei maravilhoso, porque aqui eu tô revendo as coisas do meu estado, a primeira banca que eu fui. Eu sou de lá, eu comi a Maria Izabel, creme de galinha. Agora comemos a paçoca de carne, no Pernambuco, a carne de bode e o cuscuz e tá tudo muito bom. Moro aqui há 6 anos e a Maria Izabel me lembra a infância. E eu sinto saudades, porque aqui não tem as carnes e é uma preparação das comidas de lá”, conta emocionada.
Açaí, Murici, Vatapé e Cuxá
A região Amazônica chamou a atenção e em todos os dias teve grandes filas. Os moradores e as moradoras de São Paulo que passaram pela feira não pensaram duas vezes e vieram conhecer a cultura culinária nortista.
Mileny Alves Bezerra, contou que a região Amazônica estava com quatro estados: Roraima, Tocantins, Maranhão e o Pará, todos eles têm uma culinária bem diferente uma da outra mesmo estando próximos. Por exemplo, o Pará trouxe o Tacacá, o Tucupi e o Açaí. O Maranhão, tinha o Arroz com Cuxá e o Arrumadinho como pratos principais, e nos seus ingredientes estavam a macaxeira e vários sucos de frutas que é uma produção forte do estado. Roraima trouxe o peixe tradicional dos indígenas. Por lá as pessoas também encontraram sucos de murici, cajá, cupuaçu, acerola, bacuri e de jussara, além do suco tradicional de guaraná.
Outra consumidora, que estava passeando na feira na hora do almoço, no sábado, e decidiu comer na banca de comida paraense relatou que, “Eu amo a comida paraense e é difícil encontrar em São Paulo. Eu não conhecia e quando fui pra lá amei”.
Maicon Henry, do assentamento Piedade no Tocantins, Divinópolis/TO, disse que a comida típica do estado é o Chambaril, “mas nós estamos trazendo diversas variedades como feijão tropeiro, carne de sol e diversas variedades de sucos, nós plantamos inclusive abacaxi. Meu preferido é o feijão tropeiro e suco de cupuaçu”, contou.
Ana Maria Pereira Peixoto, que vive na comunidade indígena Raposa, localizada na região da Raposa Serra do Sol, município de Normandia, coordenava a cozinha de Roraima e contou que ninguém em seu estado vive sem a Damurida, um prato da culinária indígena do estado que é feita com peixe no caldo do tucupi, com misto de pimentas e servido com farinha de mandioca e beiju.
A riqueza culinária e histórica do Cerrado
O Cerrado veio representado em Goiás e Mato Grosso trazendo uma variedade de comida, sabores, cheiro e sotaque. Cezar Pina Cassiano, assentado no Mato Grosso e chef na cozinha, contou que ali na cozinha eles estavam organizados companheiras e companheiros de várias regiões do estado que se disponibilizaram a vir contribuir na tarefa. “Nossa cozinha fez muito sucesso nas edições anteriores da feira, então a gente vem melhorando em cada edição e este ano trouxe a Ventrecha de pacu, que é um prato de peixe de água doce frito e acompanha arroz, vinagrete farofa de banana e aipim”, afirma.
Ele contou um pouco como é a produção da Reforma Agrária no Mato Grosso, “hoje nossos assentamentos produzem hortifruti e cada região tem sua especificidade, alguns trabalham mais com leite e outras que produzem de tudo um pouco, desde pequenos animais, a horta no quintal e os grupos de mulheres que trabalham nos quintais produtivos. É uma variedade riquíssima no estado”, enfatiza.
Enquanto você espera na cozinha do Mato Grosso é impossível não ser invadido pelo cheiro de pamonha quentinha que vem da cozinha de Goiás e está ao lado. Segundo Francisca de Sousa Estácio, coordenadora da cozinha goiana, a produção do MST em Goiás é muito diversa. “O que a gente trouxe para a Culinária da Terra e para a feira é tudo produzido nos nossos assentamentos. Aqui na cozinha nós estamos com a pamonha que é uma comida típica, o Frango com Gueroba, e o Arroz com Pequi, e esses produtos são todos organizados pelos nossos assentados no estado de Goiás”.
Francisca ressaltou a importância da feira para também debater a perspectiva histórica dos estados do Brasil. “Para nós poder levar o que o MST tem de produção para a sociedade, pra gente poder demonstrar que em Goiás, pelo histórico que o estado em relação a apropriação dos territórios, o coronelismo, aqui na feira gente pode demonstrar que o estado não é só isso na perspectiva histórica, que a gente tem a demonstração de produção de comida que na Culinária da terra mostrando o que tem lá no estado”, ressalta.
Produzir comida sem veneno é um ato político
E o milho não fica somente no estado de Goiás, a região Sul tem duas cozinhas, uma delas está servindo a polenta. Sandra Flor Ferrer, assentada no Eli Vive, região Norte do Paraná, trouxe o fubá Campo Vivo com caldo vegetariano e outro de carne moída com queijo que também é produção da Campo Vivo.
Segundo Sandra, a escolha pela polenta foi para representar a luta contra o veneno. “Nós estamos plantando milho não transgênico e a polenta está carregada de elementos não só para alimentar e nutrir o corpo mas também para conscientizar a sociedade. É possível produzir grandes monoculturas livres de transgênicos e dela transformar em vários que podem alimentar várias e várias pessoas”, conta.
E para quem acompanha o MST já sabe que atualmente o movimento é o maior produtor de arroz agroecológico da América Latina e o outro prato da cozinha do Paraná é o Arroz com Lula que o coletivo Marmitas da Terra, ação de solidariedade coordenada pelo MST no Paraná realizou na pandemia produzindo marmitas com alimentos da Reforma Agrária Popular para pessoas em situação de vulnerabilidade social em Curitiba e Região Metropolitana.
André, militante do coletivo e que na feira é um dos cozinheiros do prato na feira, conta que esse prato, criado pelo chef Jan Shoenfelder, militante do coletivo, foi criado durante a campanha eleitoral do ano passado. “A gente organizava eventos e vendia o prato a R$13 reais, foram várias festas e inclusive no segundo turno. Essa foi a maneira que contribuímos na campanha e pelo projeto que a gente quer construir de reforma agrária e comida boa”, conta. Ele explica que o ingrediente principal é o arroz. “Esse aqui é o arroz vermelho, produzido pela reforma agrária e outros ingredientes que são a lula e vários legumes”.
Um estudante que vive na cidade de São Paulo, que chegou na feira na hora do almoço, ele mora perto do parque e quando soube da feira decidiu vir almoçar. “Hoje é meu primeiro dia na feira, cheguei daqui a pouco e fui entrando e dei de cara com o arroz com lula e parei aqui para experimentar. É a primeira vez que eu como arroz com lula”, contou enquanto esperava seu prato.
Toda essa diversidade da cultura alimentar só foi possível por meio da Reforma Agrária. A dedicação destas famílias que são assentadas em todos os biomas brasileiros em produzir alimentos no processo de transição agroecológica esteve simbolizada nos aromas, dos sabores e nas cores desses pratos típicos, sentidos por quem passou pelo Parque da Água Branca nestes quatro dias de Feira Nacional da Reforma Agrária.
*Editado por Diógenes Rabello