Semeadura da Palmeira
“Juçariar” com produção agroecológica e agroflorestal para alimentar e nutrir corpos e territórios
Frutos da palmeira juçara sendo colhidos por camponeses na Comunidade Dom Tomás Balduíno. Foto: Wellington Lenon
Por Islândia Bezerra* e Priscila Facina Monnerat**
Da Página do MST
Nos últimos 20 anos, somos reféns de discursos reducionistas em torno da nossa prática cotidiana de alimentar e nutrir. Prática esta que pode proporcionar saúde e energia, suprir sensações e sentimentos por serem simbólicas e, portanto, vital. Mas também pode desencadear processos de adoecimento do corpo e mente, podendo também ser mortal.
Estes discursos estão diretamente ligados às mudanças que também foram ocorrendo na agricultura, desde a década de 70. Áreas correspondentes aos diferentes biomas, tais como a floresta, manejadas por povos originários, tradicionais e camponeses, foram sendo substituídas por extensos plantios de poucas variedades de grãos, em um sistema industrial com pouca diversidade e muito veneno. O termo mais utilizado para descrever esse fenômeno é a monocultura.
Este modelo prometia acabar com a fome no mundo. Porém, algumas décadas depois, percebemos que o tema da fome só se agravou e quem não tem medo da fome, tem medo do que está comendo. Comer passou a ser considerado “monótono” (sem variedade, sem diversidade) e essa é a relação que se faz com a monocultura.
As grandes corporações do sistema alimentar global e hegemônico têm tido êxito ao reduzir ao nível de “nutrientes” a imagem/ideia de uma alimentação adequada e saudável. Para tanto, investem pesado nas elaborações de produtos ricos em fibras, vitaminas, minerais, compostos bioativos, antioxidantes, gorduras “boas”, entre outros apelos que reduzem nossa alimentação a um pool de nutrientes.
Os livros “Uma verdade indigesta: como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos” da autora estadunidense Marion Nestle e “Nutricionismo: A ciência e a política do aconselhamento nutricional” do autor australiano Gyorgy Scrinis, bem como outras autoras e autores, vêm, nos últimos anos, nos alertando sobre tais argumentos.
A abordagem do “nutricionismo” carrega a suposição – e passa a ser o lastro de sustentação – do argumento de que que determinados nutrientes (por exemplo, vitaminas como A, C, D, E ou minerais como Cálcio, Selênio, Fósforo, Ferro) podem ser extraídos de fontes naturais e, assim, serem sintetizados para “enriquecer nutricionalmente” produtos comestíveis. Um exemplo clássico é o refresco em pó: rico em vitaminas A, C, D e E, mas também carregado de açúcares, conservantes, corantes e acidulantes que, em alguma medida, influenciam negativamente o funcionamento do nosso corpo. Ou ainda, uma vez sintetizados os nutrientes, podem ser consumidos separadamente do alimento sob a forma de suplementos nutricionais as tais cápsulas e/ou pílulas das mais variadas marcas.
Café da manhã a partir dos frutos da Mata Atlântica. Foto: Juliana Barbosa / MST-PR
“Nadar contra essa maré”, a Soberania e a Segurança Alimentar e Nutricional (SSAN) dos povos segue sendo uma constante busca. Esta passa por ressignificar o alimentar e nutrir corpos para além de substâncias. Passa, sobretudo, por reflorestar mentes e territórios com árvores nativas, resgatar culturas e práticas alimentares ancestrais, o que nos conduzirá a um outro futuro.
A proposta aqui é “juçariar” com produção agroecológica e agroflorestal para alimentar e nutrir corpos e territórios. Em comemoração ao Dia Mundial do Meio Ambiente, o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), em conjunto com outras organizações, semeou 4 toneladas de sementes de Palmeira Juçara nas reservas legais das áreas de reforma agrária no município de Quedas do Iguaçu. Esta ação reflete um novo jeito de pensar-agir-transformar outras dimensões da nossa vida em sociedade.
Neste momento estamos “juçariando”, mas, também, queremos “araçariar”, “uvaiazariar”, “guabirobariar”, “jerivaziar” e tantas outras frutas nativas, de tantos biomas e de tantos territórios que queiram verbalizar. Trazer para o cotidiano a prática ancestral de preservar, manter e usufruir sem destruir. Vamos resgatar, semear, plantar, transplantar, ver crescer, colher, processar, comer, alimentar e nutrir. Como já disse Ailton Krenak: “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui”. Repensar nossas práticas alimentares, passa por agir, e esse agir precisa transformar.
Se para justificar a importância de incorporar essa prática ancestral alimentar no dia a dia, é preciso trazer os elementos que os valorizam nutricionalmente, isto é, enquanto fonte de nutrientes, então vamos lá!
A uvaia é fonte quase inesgotável de nutrientes como vitaminas C e betacaroteno (vitamina A).
A pitanga é rica em vitamina C e antioxidantes, fonte de vitamina A e de vitaminas do complexo B, além de ser considerada excelente fonte dos minerais cálcio, ferro, fósforo e magnésio.
A cereja-do-mato, por sua vez, possui vitaminas como A, B1, B2, B5 e C e sais minerais como potássio, fósforo, sódio, cálcio, enxofre e silício.
A guabiroba é rica em vitaminas C e do complexo B, além de sais minerais e propriedades terapêuticas.
O araçá é rico em nutrientes com propriedades antioxidantes, como vitamina C, carotenóides e flavonóides.
O jerivá é rico em ômegas 3, 6 e 9, e tem grande quantidade de vitamina A, minerais como selênio e cálcio, proteínas e fibras solúveis.
E o açaí-juçara, além de ser uma fonte de energia, é rica em proteínas, cálcio, magnésio, potássio, ferro e, também, fonte de vitaminas C, B1 e B2.
Como parte da celebração da semeadura realizada em Quedas do Iguaçu, um café da manhã, preparado com algumas destas frutas e frutos da Mata Atlântica citados acima, foi servido a quem visitou a unidade de produção da família camponesa guardiã da semente da juçara na região. Entre as iguarias, estavam as geleias, sucos, sorvetes, picolés e balas desenvolvidas na Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) pelo Laboratório Vivam de Sistemas Agroflorestais. O projeto trabalha a questão dos frutos da Mata Atlântica como alimento com 56 famílias agricultoras, de 7 municípios da região Centro do Paraná, incluindo a família guardiã da juçara.
Que as preparações servidas nesta semeadura, com os frutos e as frutas da sociobiodiversidade, naturalmente ricas em nutrientes (vitaminas, minerais, compostos bioativos, antioxidantes, fibras solúveis e insolúveis entre tantos outros termos sendo o mais difundido os denominados “funcionais”), possam alimentar uma visão ampliada em todos os sentidos: sabor, cor, aroma, textura. Alimentar um jeito de viver no campo e na cidade com fartura e saúde, sem destruir os bens comuns, assim como faziam nossos ancestrais.
Que as geleias de araçá, juçara com banana, guabiroba e jerivá com laranja, contendo uma quantidade expressiva de antioxidantes, possam combater os “radicais livres” da colonização do gosto, onde tudo deve ser doce ou salgado. E possam despertar em quem desfruta desse sabor ancestral o desejo por mais! Uma vez combatendo tais “radicais livres”, que você seja “imunizado” contra os apelos das mídias hegemônicas (TV, rádios, podcast, redes sociais em geral), que impõem uma cultura alimentar baseada na homogeneização da cor, do cheiro e do gosto, na monotonia alimentar, na monocultura no campo e no prato.
Que os sucos das frutas guabiroba, araçá, uvaia e jerivá, além de hidratar todas as células de quem os está desfrutando, possam também encantar pelas suas cores e cheiros naturais (já que não são corantes e aromas artificiais). Que a presença de vitaminas e minerais desencadeiem nos seus corpos uma sequência de reações químicas e biológicas capazes de disparar no seu sistema circulatório uma sensação de leveza e bem estar, por saber que tais frutas foram colhidas em territórios de povos indígenas, em comunidades quilombolas e camponesas, cujas inúmeras pesquisas têm demonstrado que são nestes territórios que dispomos da maior área de preservação ambiental.
Que neste percurso nutricional, que segue o sangue no complexo sistema circulatório onde cada um dos nutrientes vá ganhando força e cumprindo sua real função, seja possível elevar a tomada de consciência da importância das florestas, das práticas ancestrais de produzir-comer-alimentar-
Essa luta passa por reivindicar políticas públicas que pautem investimentos no campo da Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, sendo a democratização do acesso à terra a primeira. Mas, também, e fundamentalmente, as políticas que versam sobre alimentação e nutrição dos povos.
Para saber mais sobre a semeadura da juçara, clique aqui.
Referências consultadas e citadas:
BEZERRA, Islandia; DE PAULA, Natália. Sistemas Alimentares Sustentáveis e Saudáveis: diálogos e convergências possíveis – http://e-revista.unioeste.br/
BEZERRA, I.; PEREZ-CASSARINO, J. Soberania Alimentar (SOBAL) e Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) na América Latina e Caribe. Curitiba: UFPR, 2015.
ESTEVE, E. V. O Negócio da Comida: Quem controla nossa alimentação? 1o ed. São Paulo: Expressão Popular, 2017.
KRENAK, Ailton. Futuro Ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
LORENZI, Harri. Frutas no Brasil. Nativas e Exóticas. Editora: Plantarum. 1a. Edição: 2015
NESTLE, Marion. Uma verdade indigesta: como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos. São Paulo: Elefante; 2019.
SCRINIS, Gyorgy. Nutricionismo: a ciência e a política do aconselhamento nutricional. São Paulo: Editora Elefante, 2021.
*Mulher. Mãe. Pesquisadora. Extensionista e Professora Associada da Faculdade de Nutrição – FANUT/UFAL. Educadora Colaboradora na Escola Latino-Americana de Agroecologia (ELAA). Nutricionista/UFRN. Mestrado e Doutorado em Ciências Sociais/UFRN. Pós-Doutorado na Universidad Autónoma de Chapingo/UACh, México.
**Engenheira Florestal pela Universidade Federal de Lavras. Mestra em Geografia/UFPR. Agricultora, Educadora popular da agroecologia e de agrofloresta. Integrante do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Terra (MST).
***Editado por Gustavo Marinho