Aromas de Março
Direito ao aborto: um debate urgente e necessário
Por Delana Corazza e Angélica Tostes
Da Página do MST
“A dor dos princípios é abstrata, mas a dor da mulher que não quer e não pode deixar que se desenvolva uma gravidez é uma dor concreta, é uma dor que se sente na pele”
– Ivone Gebara
As mulheres de nossa classe abortam. Esse é um fato inegável, ao mesmo tempo que é inegável a dificuldade que o campo progressista tem tido para falar sobre aborto com as mulheres mais empobrecidas. Alguns termos que aparecem nas grandes marchas de rua como “meu corpo, minhas regras” ou “direito ao nosso corpo” podem fazer sentido para uma parte das nossas companheiras, que têm o privilégio de poder fazer escolhas sobre o próprio corpo sem colocá-lo em risco, mas os corpos das mulheres têm classe e tem cor, e na maioria das vezes esses corpos não têm escolhas.
Ao realizar entrevistas com mulheres que viviam em uma ocupação na periferia norte da cidade de São Paulo, buscávamos saber, dentre tantas coisas, o que elas pensavam sobre o aborto. Nesse processo, entendemos de imediato que essa era uma pergunta que chegaria a um resultado contraditório, dado que é um tema muito delicado e que envolve questões profundas, principalmente em uma sociedade machista e de princípios cristãos como a nossa. Essa não é uma conversa fácil, de respostas prontas; é uma pergunta que merece um cuidado e uma aproximação prévia e cotidiana. Embora as entrevistas não tenham uma expressividade numérica, podemos refletir a partir das experiências locais das mulheres periféricas daquela região. As mulheres que conversamos responderam, todas, que eram contra o aborto e que nunca tinham abortado. Disseram também que as mulheres que abortam não deveriam ser presas, ou seja, não eram a favor da criminalização do aborto; e todas, sem exceção, conheciam alguma mulher que abortou de forma clandestina.
Ao deixarmos esse debate para uma escolha individual, sem os recortes de raça e classe, dificultamos a interlocução com parte significativa das mulheres trabalhadoras que abortam, mas ainda com o manto da culpa e da vergonha atravessados nessa escolha. No Brasil, os dados sobre aborto são incompletos e defassados, entretanto, em uma pesquisa publicada em 2020 no Cadernos de Saúde Pública, da Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que utilizou dados do Sistema Único de Saúde (SUS), apontou um perfil das mulheres que tem mais risco de chegar à óbito por aborto: “as de cor preta e as indígenas, de baixa escolaridade, com menos de 14 e mais de 40 anos, vivendo nas regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, e sem companheiro.” Ou seja, são essas mulheres que, ao abortarem sem o acompanhamento médico necessário, colocam em risco as próprias vidas. Nesse sentido, os corpos são delas, mas as regras não.
Outra questão necessária para entendermos a dificuldade no diálogo se refere ao caráter religioso de nossa classe: grande parte das mulheres da classe trabalhadora são cristãs, muitas vezes atravessadas pelo fundamentalismo religioso que se propagou desde a Igreja Católica e seus conservadorismos, as megachurches com seus pastores violentos, passando pelas pequenas igrejas evangélicas dos bairros, inclusive nos nossos assentamentos e acampamentos. Os discursos fundamentalistas são audíveis para parte significativa das mulheres trabalhadoras que têm a Bíblia como instrumento importante de seu processo de formação e compreensão do mundo. Ainda que a Bíblia não aborde nominalmente o tema, sua leitura tem sido mediada por interlocutores que seguem atacando, sobretudo, o corpo das mulheres e as diversidades de gênero e sexualidade, ao serem contra o aborto e contra qualquer ideia de família que transgrida a hetenormatividade.
O Datafolha publicou em Julho de 2023 o resultado de uma pesquisa que aborda, dentre outros temas “controversos”, a questão do aborto. O resultado foi que 44% dos entrevistados acham que a mulher tem o direito de decidir sobre o aborto. Esse número cai para 30% quando o recorte são os evangélicos e para 39% entre os mais pobres. Já para os mais escolarizados, o número sobe para 59%. Ou seja, a defesa sobre o aborto, ou melhor, sobre o direito da mulher decidir sobre o pŕoprio corpo no que diz respeito ao aborto, não chegou de forma audível para as mulheres empobrecidas e evangélicas.
O debate sobre religião e aborto tem sido, nas últimas três décadas, hegemonizado pela direita cristã que vinculou parte das mulheres a seu projeto, mesmo que ele seja absolutamente contraditório com a concretude e o cotidiano dessas mulheres – pobres e evangélicas -, pois elas também abortam mesmo sendo contrárias ao aborto. Estes corpos, atravessados pelo gênero, raça, classe e religiosidades cristãs (evangélicas e católicas), estão em constante disputa. A política do medo inserida em todo o continente latino-americano pelo fundamentalismo religioso criou um muro entre parte das mulheres trabalhadoras e a esquerda. Um muro que ainda não soubemos destruir, seja porque nos calamos em relação ao tema, por receio de fecharmos portas necessárias para a construção de vínculos, ou porque nossa forma de falar sobre aborto tem se mostrado ineficiente dentro da complexidade que o assunto nos provoca.
A resposta para avançarmos nesse debate não está pronta, ela requer tanto compreender a realidade concreta das mulheres e aquilo que movimenta seus corações e mentes, quanto compreender como a direita tem manejado esses sentimentos a partir da religião, fomentando inclusive pesquisas científicas “neutras” para defender que o feto já é considerado uma vida desde sua concepção. Movimentos “pró-vida” estão articulados internacionalmente em toda a América Latina, sendo financiados por grupos neoconservadores que seguem atacando os corpos das mulheres. Dessa forma, é fundamental nos articularmos enquanto mulheres latino-americanas contra uma direita internacional que permeia nossos corpos e nossos territórios. Não será nem somente com palavras de ordem e nem caladas que venceremos essa batalha, mas, com conhecimento profundo sobre o tema. É um fato que a criminalização do aborto não impede as mulheres de abortarem; legalizado ou não, as mulheres vão abortar. As mais ricas em clínicas privadas e as mais pobres sem nenhuma assistência.
As disputas se mantêm cheias de contradições: não necessariamente uma mulher que aborta se coloca como defensora da legalização do aborto. Há um caminho largo, contínuo, de idas e vindas para consolidar práticas individuais em uma bandeira política a qual essas mulheres se identificam. Temos que falar de aborto com as mulheres de nossas classes, mas, mais do que falar, temos que ouvir suas histórias e construir agendas comuns que dialoguem com esse corpo, fruto de inúmeras identidades: as mulheres que abortam são pobres, são trabalhadoras, são negras, são cristãs, são indígenas, são militantes de movimentos sociais, são mães, são filhas; todas essas identidades são parte do pensamento que forjou essa mulher, e considerar estes elementos é fundamental para um diálogo honesto e respeitoso sobre o tema.
Compreender as mulheres faz parte de um trabalho concreto, cotidiano, vinculado à construção de relações de confiança, quase sempre com outras mulheres. A escuta atenta, buscando, como ensinou Paulo Freire, desmontar as visões mágicas na compreensão do mundo, assim como considerando e respeitando suas tantas identidades, dentre elas a religiosa, são caminhos possíveis para esse diálogo.
Nossas bandeiras enfáticas são importantes para a Batalha de Ideias nas ruas, mas só farão sentido se construídas cotidianamente com as mulheres do povo. Um material de divulgação de atos nas ruas com o tema “aborto” e “direito ao corpo”, sem um trabalho coletivo e preparatório, mais do que não surtir efeito, cria barreiras de comunicação com a nossa classe. Essa é uma tarefa urgente que deve estar na agenda dos movimentos sociais e também nos campos institucionais, fomentando diálogos e materiais pedagógicos, construídos a partir de diversas vozes de diferentes saberes.
*Editado por Fernanda Alcântara