Soberania

Intercâmbio tecnológico entre China e Brasil permitirá uma revolução no campo

Luiz Zarref, coordenador para a América Latina da Associação Internacional para a Cooperação Popular (AICP), fala sobre a vinda de chineses ao país
Colheita do arroz orgânico do MST, no assentamento Filhos de Sepé, em Viamão, RS. Foto: Maiara Rauber

Por Lays Furtado
Da Página do MST

Durante as últimas semanas, entre os dias 10 a 18 de julho, uma delegação chinesa composta por 14 membros estiveram no Brasil em um intercâmbio promovido entre a Universidade Agrícola da China (CAU), a Associação Internacional para a Cooperação Popular (AICP) e o Consórcio Interestadual de Desenvolvimento Sustentável do Nordeste (Consórcio Nordeste).

O encontro é mais um passo frente a uma aproximação sobre a realidade produtiva e agrária brasileira, promovida para o avanço do processo de cooperação agrícola, no que se refere a implementação de tecnologias que possam atender a realidade da agricultura familiar e camponesa no país.

Considerando que existe uma estrutural e histórica desigualdade nas condições da produção de tecnologias para a agricultura familiar comparado ao agronegócio, tal intercâmbio possui um potencial para que trabalhadores e trabalhadoras camponesas possam acessar e desenvolver tecnologias de acordo com suas necessidades.

Com isso, tal delegação visitou assentamentos conquistados na luta por Reforma Agrária e centros de formação do campo em áreas comunitárias do MST. 

Entre estes espaços, o grupo de chineses conheceram a Escola Nacional Florestan Fernandes, em Guararema, São Paulo; estiveram no Prado, na Bahia, na Escola Popular de Agroecologia e Agrofloresta Egídio Brunetto; além de conhecerem em Viamão, no Rio Grande do Sul, as cooperativas envolvidas na produção de arroz orgânico do movimento; e o município de Apodi, no Rio Grande do Norte, local que sediará a unidade demonstrativa de testagens de máquinas agrícolas chinesas que chegarão ao Brasil no próximo mês de novembro. 

Segundo Luiz Zarref, coordenador para a América Latina da Associação Internacional para a Cooperação Popular (AICP), a partir deste intercâmbio a agricultura familiar e camponesa brasileira nunca esteve tão próxima de obter condições concretas para superar desigualdades históricas no campo e alavancar a produção de alimentos saudáveis, o que é imprescindível para o desenvolvimento, para a construção da soberania alimentar e o combate à fome no Brasil.

Confira a entrevista de Luiz Zarref (AICP) sobre o intercâmbio entre China e Brasil:

Qual é o objetivo desse intercâmbio, e quais são as principais áreas de cooperação entre a China e o Brasil?

Esse intercâmbio é fruto da parceria da Baobab – também chamada Associação Internacional para a Cooperação Popular – com a Universidade Agrícola da China, que figura como uma das mais importantes universidades de agricultura do mundo. Nós temos uma parceria com eles em diversas áreas, principalmente nas áreas de bioinsumos, de máquinas agrícolas para agricultura camponesa, energias renováveis para a produção de sistemas alimentares como arroz, trigo, tomate.

Essa parceria ela já produziu diversos webinários durante o período da pandemia, onde foi possível intercambiar conhecimento entre pesquisadores do Brasil, da China, de Gana, da Zâmbia, Nepal e da Argentina também. E nos últimos um ano e meio, também permitiu, especificamente aqui no Brasil, que a gente construísse o memorando de entendimento entre o Consórcio Nordeste, a Universidade Agrícola da China e a Baobab nessas áreas do conhecimento.

Nos últimos meses, esse memorando possibilitou a criação de um projeto para a construção de uma unidade demonstrativa de máquinas agrícolas para a agricultura camponesa. Onde vão ser demonstrados diversos modelos de máquinas agrícolas. Inicialmente estão vindo 31 modelos diferentes de máquinas para serem testadas, que terá sede no município de Apodi, no Rio Grande do Norte.

Mas também vai ser possível que essas máquinas estejam sendo testadas também em outras regiões do Nordeste, em outros espaços de cooperativas, assentamentos da reforma agrária e centros de formação; para que num prazo de dois anos sejam testadas a qualidade e a capacidade de adaptabilidade com implementos que já existem aqui no Brasil, com as condições da agricultura camponesa, também de suporte técnico, reposição de peças.

Visita da delegação chinesa no Rio Grande do Norte. Foto: Assecom AMATER
Qual é a importância da aproximação com a China no contexto da retomada da industrialização nacional no Brasil?

A intenção colocada, inclusive pelo próprio governo Lula, nesse processo de retomada da industrialização nacional, também tem o objetivo de ser uma aproximação da tecnologia chinesa, para que a partir de então o Brasil também possa estabelecer fábricas de maquinário agrícola, para que os mesmos sejam produzidos aqui. A China hoje tem mais de 8 mil fábricas de máquinas agrícolas, então é uma diversidade muito grande.

E isso acontece justamente porque eles realizaram a reforma agrária durante o seu processo revolucionário, ainda na década de 50, onde a agricultura camponesa lá teve um desenvolvimento extraordinário. E hoje, cerca de 87% da agricultura camponesa na China tem mecanização, comparado ao que acontece no Brasil, esse número não chega a 13%.

Esse comparativo acontece com bastante desigualdade inclusive, como por exemplo no Nordeste, é a região onde nós temos maior número de famílias camponesas, cerca de 50%, mas é onde esse número de acesso das famílias aos maquinários agrícolas não chega a 3%.

Como essa experiência do intercâmbio com chineses têm contribuído para a construção de uma unidade demonstrativa de máquinas agrícolas no Brasil?

Então, antes do lançamento dessa unidade demonstrativa, que está previsto para novembro, quando as máquinas devem começar a chegar, os professores da Universidade Agrícola da China se dispuseram a fazer essa missão para conhecer melhor a realidade da agricultura camponesa no Brasil, especialmente dos assentamentos onde há centro de formação, nos espaços de produção e formação das famílias assentadas.

E por meio dessas visitas, foi possível estabelecer contatos com a rede de apoio que esses espaços possuem, como unidades da Embrapa, escolas técnicas locais, institutos federais, universidades, prefeituras e membros do Legislativo.

Estiveram também por três dias no Rio Grande do Norte, para conhecer a área onde será a sede da unidade demonstrativa no município de Apodi. E finalizam o intercâmbio tendo uma reunião com a Universidade de Brasília. Esse grupo de docentes também foram recebidos por membros do governo federal que estão responsáveis pela pauta da mecanização agrícola, dos insumos e da diversificação genética das sementes para alimentos. Após o Brasil, eles seguem para a Argentina também para conhecer a realidade lá, junto com as organizações camponesas, onde vão ter reuniões e diálogos com universidades e institutos de pesquisa.

Chineses visitaram áreas de produção e pesquisa para conhecer a realidade agrária brasileira. Foto: Letícia Stasiak
Chineses visitaram áreas de produção e pesquisa para conhecer a realidade agrária brasileira. Foto: Letícia Stasiak
Para além dessa unidade demonstrativa, quais as expectativas que podemos ter a partir desse intercâmbio?

A expectativa com esse intercâmbio é que a gente possa aprofundar o entendimento sobre o campo latinoamericano não só pela universidade, mas do próprio povo chinês, uma vez que professores possuem um respeito muito grande dentro da China, e contribuem com o pensamento não só dentro da universidade, mas inclusive na formulação política do país.

Que a gente aprofunde o conhecimento que o povo chinês tem sobre o Brasil, conhecendo as contradições da agricultura brasileira e da questão agrária brasileira. Inclusive, identificando o agronegócio e o latifúndio, e o quão maléficos são esses dois modelos de agricultura para o povo brasileiro, mas também para a relação entre os povos – uma vez que são o esteio da extrema direita no Brasil, que inclusive é frontalmente contrário à China. E assim conheçam a realidade da agricultura camponesa que nos aproxima muitíssimo da China, que é uma nação camponesa com mais de 600 milhões de camponeses, além de nos colocar em uma perspectiva de cooperação no enfrentamento à fome.

Por que a China é uma referência na agricultura camponesa e como esse conhecimento pode ser aplicado no Brasil?

A China tem sido bastante conhecida ultimamente, por ter dado um dos passos históricos mais importantes da humanidade, que foi empenhado desde a década de 70, para retirar cerca de 800 milhões de pessoas da pobreza. Nos últimos dez anos retirou as últimas 100 milhões de pessoas da pobreza. Então, isso é um feito extraordinário e histórico para toda a humanidade. E é diante da situação da crise econômica e social que temos no Brasil, do retorno da fome, que esse intercâmbio tem o potencial de contribuir no sentido de fortalecer a agricultura camponesa. Na perspectiva de que retomando a nossa reindustrialização – a partir da produção de meios de produção para o campo – a gente possa reverter esse cenário de crise  brasileira, enfrentar a fome e desenvolver o nosso país sobre bases populares.

*Editado por João Vitor