Educação

Educação do Campo 25 anos: algo do legado e desafios

A EdoC continua e se nutre do legado da Educação Popular, das lutas camponesas diversas, das lutas do conjunto da classe trabalhadora pelo acesso à educação.
Conferência Nacional por uma Educação Básica do Campo. Foto: Arquivo MST

Por Roseli Salete Caldart¹
Da Página do MST

Os 25 anos da Educação do Campo (EdoC) que celebramos em 2023 se referem ao momento de realização da primeira Conferência Nacional: “Por uma Educação Básica do Campo”, realizada em Luziânia/GO, de 27 a 31 de julho de 1998. Não comemoramos o evento em si, mas o que ele demarcou como continuidade do que veio antes e como descontinuidade ou novidade histórica.

A EdoC continua e se nutre do legado da Educação Popular, das lutas camponesas diversas, das lutas do conjunto da classe trabalhadora pelo acesso à educação. E ao mesmo tempo a EdoC tem uma especificidade própria e inaugura a interconexão campo política pública educação (nossa famosa “tríade”), com as contradições e tensões que essas relações de determinação mútua envolvem e as transformações que provocam.

Há um balanço de percurso a ser feito entre os sujeitos coletivos diversos da EdoC. Balanço político, organizativo, pedagógico. Balanço que para ser projetivo precisa se conectar com uma rigorosa e também coletiva análise da situação atual de nossas práticas, de nossas lutas e do período histórico em que se realizam. Como diz o provérbio chinês, trata-se de “atravessar o rio sentindo as pedras”.

A leitura ou releitura do dossiê com os principais documentos do percurso desses 25 anos que produzimos em 2021 pode ajudar nessa tarefa de balanço projetivo. E tenha-se presente nessa intencionalidade: há uma dimensão formativa ímpar no trabalho com nossa memória coletiva. É o futuro do passado que especialmente visamos!

Nesta exposição destaco quatro pontos que remetem ao mesmo tempo: à nossa memória, legado; aos desafios para seguir em frente; às tarefas postas à continuidade de grandes ações da EdoC ou a ela organicamente vinculadas, como o Pronera e a Licenciatura em Educação do Campo (LEdoC), especiais exemplos.

Foto: Arquivo MST

1) Vínculo orgânico entre educação pública e modo camponês de produção da vida. Modo de produção da vida que se refere a uma forma de trabalho humano, envolve lutas e sujeitos coletivos em sua dinâmica de relações sociais dos seres humanos entre si e com o todo da natureza, em seu movimento de contradições e transformações. Educação pública entendida aqui como práticas e políticas que se realizam com a mediação do Estado e que tratamos como um bem comum e direito coletivo a uma formação humana emancipatória. A construção desse vínculo é a grande novidade histórica da EdoC.

Quando a relação entre educação pública e trabalho no campo aconteceu antes na história, como política de “educação rural”, foi visando inculcar nas comunidades camponesas o modo capitalista de produção (“revolução verde”), estratégia que se tenta reeditar em nosso tempo, pela atuação ostensiva das empresas do agronegócio sobre as escolas públicas do campo e também da cidade.

A raiz forte da EdoC está nas lutas e nas formas diversas de produção e organização da vida social camponesa. Se essa raiz perde força ou é arrancada, a EdoC enfraquece ou morre como EdoC, em cada ação ou processo criado com essa identidade. Sem a força dessa raiz Pronera e LEdoC não conseguem realizar as finalidades sociais e formativas desde as quais surgiram. E não faltam hoje dispositivos políticos e ideológicos, tanto liberais como pós-modernos, acionados para tentar deter essa força.

Nosso desafio é alimentar e fortalecer essa raiz, cujas transformações põem exigências formativas cada vez mais complexas, multilaterais e universalizantes. Essas exigências fazem necessário radicalizar o confronto com políticas e ações públicas e privadas de precarização da educação da juventude, da formação de educadores e do empobrecimento do estudo para o povo em geral.

A análise do vínculo da educação pública com o modo de produção da vida, conteúdo e forma, precisa integrar nosso balanço projetivo dos 25 anos da EdoC. E pensar o material pedagógico que esse vínculo nos fornece escancara desafios grandiosos de estudo e de elaboração pedagógica que outros não farão por nós. A EdoC cresceu resistindo, confrontando e construindo alternativas ao que nos impede de ser o que podemos ser e é desafio avançar nessa forma de agir, de lutar.

Foto: Arquivo MST

2) Nossa tarefa coletiva de base tem sido agitar, educar e organizareducar e organizar! Temos muitas denúncias e muitos anúncios a fazer sobre a realidade do campo e a insanidade do capital e sobre o projeto popular de agricultura, de trabalho, de relação ser humano e natureza que defendemos. Temos o desafio de continuar e aperfeiçoar nosso trabalho de base. Colocar mais gente em movimento: ações, processos, lutas, construção. Criar formas diversas de fazer a batalha das ideias junto às massas. Multiplicar processos educativos densos e multilaterais da nossa juventude e de formação de educadores. Ajudar a organizar as lutas e o trabalho coletivo nos diferentes espaços de nossa atuação.

E podemos nos perguntar no balanço projetivo desde nossa especificidade: como estamos ajudando a combater a investida ideológica cada vez mais ostensiva do agronegócio sobre a classe trabalhadora, sobre nossas próprias organizações e movimentos populares, sobre as escolas públicas que tão duramente conquistamos? O que temos feito para o avanço da práxis agroecológica cooperativa nos territórios em que de alguma maneira incidimos? O que podemos fazer mais?

Há combates gerais fundamentais que a EdoC pode ajudar a fazer hoje e desde sua especificidade ou na totalidade de sua tríade constitutiva: à lógica insana de produção que rompe nossa relação metabólica com a natureza e nos aliena do nosso próprio ser natural; à degeneração da sociabilidade humana e às formas de trabalho e vida social baseadas no individualismo e na exploração de uns sobre outros; à mercantilização dos bens comuns, naturais e sociais; à visão reducionista e unilateral da educação e à simplificação artificial da tarefa de estudar as coisas do mundo; ao uso abusivo insano das tecnologias digitais que adoecem e emburrecem; à existência de escolas sem vida, sem livros, sem diálogo; a todas as formas de apagamento da memória que nos desliga do legado de que somos humanamente fruto e nos impede de tomar parte da construção crítica e criativa do futuro do passado.

Foto: Arquivo MST

3) Auto-organização coletiva e trabalho realizado cooperativamente. Não nos organizaram. Nos organizamos e fomos ampliando articulações, fóruns, coletivos de luta, de participação política, de gestão de políticas públicas, de processos educativos. E aprendemos a construir unidade no diverso cada vez mais alargado do que somos.

Práticas de EdoC não são a soma de trabalhos individualizados, por melhor que possam ser feitos. Elas são sim o produto da interação crítica, criativa, tensa de indivíduos sociais trabalhando intencional e conscientemente em cooperação. Sem o trabalho pedagógico e político de coletivos não há como processos formativos efetivamente realizarem finalidades sociais e formativas transformadoras e emancipatórias.

É desafio próprio de nosso tempo criar antídotos para a tendência de individualização da vida, do trabalho, mesmo entre os que criticamos o individualismo próprio do sistema. Exercitar a auto-organização também como princípio pedagógico. Fortalecer a auto-organização coletiva da EdoC nos vários níveis, do local ao nacional. FONEC, Articulações/Fóruns/Comitês estaduais, regionais e locais. E fortalecer a intercooperação entre coletivos. Qual o balanço que fazemos de nossa capacidade organizativa atual?

conferencia nacional por uma educação basica do campo - arquivos MST
Foto: Arquivo MST

4) Valorização das educadoras, dos educadores como pessoas e profissionais. Valorização do trabalho social de educar. Esse foi um dos princípios fundantes da EdoC, já firmado na Conferência de 1998. E a realidade atual o fortalece como objeto de nossa luta coletiva e do trabalho pedagógico a ser feito no conjunto da sociedade.

O protagonismo das educadoras, dos educadores está na raiz da organização coletiva da EdoC. A luta por melhores condições de trabalho nas escolas, nos cursos e em cada ação educativa faz parte de nosso percurso de construção. E é nosso legado compreender que essa valorização também é nossa obra coletiva: pela força de nossa auto-organização pessoal e coletiva; pela qualidade que conseguimos dar à nossa autoformação coletiva para o trabalho de educar; pela elaboração pedagógica que não abrimos mão de fazer.

Tenhamos muito presente: dispor-se a estudar muito e a sistematizar teoricamente nossas práticas também é valorizar nosso trabalho – humanamente e socialmente. Cada um/uma de nós pode dizer bem do tamanho desse desafio hoje, no conjunto das práticas da EdoC, em particular na LEdoC e nas ações formativas do Pronera. E como é necessário construir com luta coletiva e disciplina pessoal as condições para isso.

Pensemos: qual o futuro de um país, de uma sociedade em que cada vez menos jovens, menos famílias, incluem o magistério como opção profissional? O que estamos fazendo no âmbito da EdoC para mudar essa visão? Que gestos e ações podem marcar a comemoração dos nossos 25 anos na direção da valorização do trabalho de educar?

Vamos em frente! Há muito por fazer. Há muito pelo que lutar.

¹Exposição preparada para participação na reunião da Articulação EdoC/LicEdoC RS em 12 de junho 2023. Cf. também o texto Educação do Campo 25 anos: legado político-pedagógico, janeiro 2023.

²Tomamos aqui para inspiração dessa chamada o princípio da ação política da militante socialista Eleanor Marx (ou Tussy, como a família Marx carinhosamente a chamava): “educar, agitar e organizar”. Além de comungarmos de seu lema favorito: Vá em frente! (Cf. em HOLMES, Rachel. Eleanor Marx: uma vida. São Paulo: Expressão Popular, 2021).

*Editado por João Vitor