Artigo

Territórios da literatura no MST

"A presença constante da ação artística, com o recurso frequente da declamação de poemas, estimula que os integrantes do MST cultivem um repertório de poemas consigo", ressalta autor
Foto: Matheus Alves

Por Rafael Litvin Villas Bôas*
Da Página do MST

O artigo em questão se propõe a refletir sobre os territórios da literatura no MST, a partir da abordagem sintética do percurso histórico da literatura no MST, mapeado por meio de algumas pesquisas emblemáticas, sendo a principal delas a obra “Sem Terra com Poesia”, estudo pioneiro sobre a cultura e a literatura no MST, publicado por Roseli Caldart, em 1987, e republicado trinta anos depois, em 2019. 

Caldart observa que, desde o momento de origem, a palavra literária e a cultura ocupam lugar de destaque na forma de construção identitária e orgânica do MST. “Sem terra com poesia: a arte de re-criar a história” analisa os poemas e cantos de camponeses e militantes da região Sul do país. Por meio de entrevistas com militantes poetas e cantadores, acampados e assentados, e assessores do MST, a pesquisadora chega à constatação que um dos aspectos mais relevantes dessa produção é a recuperação da voz dos trabalhadores marginalizados pelo sistema e do direito de participar igualitariamente da produção artística como forma de representação e transformação da realidade. “E este processo de afirmação crítica da arte popular acaba pondo em questão a própria concepção de arte e, o que é fundamental, a cisão que historicamente foi criada entre arte e trabalho, entre arte e vida cotidiana” (op. Cit, p. 64). 

Ao levantar os temas mais recorrentes da produção poética – trabalho, terra e luta –, Caldart observa que os sem terra não dissociam as esferas do trabalho e do tempo livre, porque seu processo de trabalho não separa o trabalhador do resultado de sua produção. E como, em geral, não há divisão do trabalho como em sistemas industriais, as famílias sem terra dominam todo o processo de produção de seu trabalho. Portanto, ainda que varie em detalhes de tom e de forma, a grande maioria dos poemas se refere à dimensão da vida cotidiana dos trabalhadores, como uma totalidade. Segundo a autora, a produção poética do MST cumpre três principais funções:

a) Animação – entendida como ânimo para a ação, que faria o elo de mediação entre o emocional e o racional, entre o indivíduo e o grupo, permitindo que a identidade coletiva em gestação seja mais que discurso político internalizado;

b) Pedagógica – que significa dizer que os sem terra se educam enquanto produzem e declamam versos, ou seja, que a produção poética tem dimensão de força produtiva de reflexão e conhecimento, e age como conscientização política, reapropriação cultural e auto-afirmação do sujeito sem terra enquanto produtor de cultura;

c) Política – responsável pela união simbólica dos trabalhadores de diversas regiões do país em torno de uma luta comum, pela divulgação da luta pela reforma agrária para o conjunto da sociedade, e também pelo significado político que desempenham, principalmente no caso dos hinos de luta, nos casos dos confrontos diretos com os latifundiários e seus jagunços, ou com o estado por meio de seus representantes policiais ou judiciais.

Além disso, Caldart classificou a produção poética em tipos, a saber:

1º) Poemas-denúncia: sobre a situação geral de exploração em que vivem os trabalhadores ou sobre os atos de violência permanentes ou específicos sofridos pelos integrantes do MST;

2º) Poemas-história: narram em detalhes a história de ocupações, de enfrentamentos ou dos acampamentos em geral, cuja função principal é a preservação da memória da experiência vivenciada e a transmissão aos que se juntam posteriormente;

3°) Poemas-narração: distinção feita pela autora para diferenciar aqueles que narram os fatos da vida cotidiana, para além dos momentos decisivos;

4°) Poemas-hinos de luta: aqueles feitos como estímulo, chamado ou justificativa à luta;

5°) Poemas-sátira: utilização do humor para interpretar os fatos e relações de poder vivenciadas, como forma de demonstrar controle sobre a situação em que vivem, e evitar que o “ânimo de luta caia”, em geral feitos e declamados pelos jovens em momentos de descontração.

Com efeito, a palavra literária é circulada em muitos espaços do MST: nos momentos de celebração das místicas e nas jornadas socialistas a poesia marca forte presença, bem como nas marchas e lutas por ocupação de terra ou ações coletivas de resistência a despejos. A presença constante da ação artística, com o recurso frequente da declamação de poemas, estimula que os integrantes do MST cultivem um repertório de poemas consigo, para que a ele possam recorrer nos diversos momentos em que a ação coletiva abre espaço para tal. Segundo Caldart, a respeito do canto e da poesia no MST:  “Esse tipo de expressão cultural é tão significativa no Movimento dos Sem-Terra (MST) que já não pode ser considerada apenas ornamental ou apendicial à luta, mas sim uma de suas próprias dimensões integrantes” (1987, p. 10). 

É comum também que nos espaços formativos do MST, desde reuniões de núcleo de base, cursos de formação de militantes, nas cirandas infantis, e nas reuniões de instâncias a palavra poética se faça presente na abertura das atividades, ou nos momentos de encerramento, e agradecimento aos assessores convidados. 

A palavra poética aparece também nos materiais didáticos produzidos pelo MST, de diversos temas e com as mais diferentes finalidades, com poemas intercalando textos de subsídio, e imagens. Também é frequente que, para determinado encontro que vá reunir muitas pessoas, seja produzido um caderno com poemas e letras de canções – tradição essa possivelmente influenciada pela tradição de leitura dos salmos nos cultos religiosos de determinadas igrejas. 

A disponibilização de um repertório de poemas para a militância e a base é ato realizado com intencionalidade por diversos setores e instâncias do MST, sendo os setores de Formação, Educação e Cultura, alguns que assumem a tarefa com mais centralidade. Um exemplo é o livro organizado por Ademar Bogo, em forma de coletânea, chamado “Gerações”, publicada em 2002. 

No Setor de Educação foram forjadas, no decorrer de décadas, diversas iniciativas importantes de estímulo à leitura e a produção de textos, desde redações à poemas, como os concursos literários e de desenho do MST, de abrangência nacional, que recebia obras enviadas por escolas do campo de diversas regiões do país. Tive a oportunidade de participar da comissão de avaliação dos trabalhos em algumas edições do concurso e era notável a diversidade e criatividade de formas e materiais que os estudantes sem terra enviavam, a partir da pré-seleção dos professores das escolas e dos setores estaduais de educação do MST. 

A experiência da militância do MST do Pará é emblemática nesse âmbito. Destacamos um trecho da sistematização elaborada por eles “Literatura no Pará: arte de nutrir a vida” que integra o caderno nº 1 de Cultura do MST “Cultura e Reforma Agrária Popular” (2018, p. 46):

A poesia para nós faz parte da estratégia de luta, é uma definição política, que enxergamos como estratégia permanente na formação militante. A poesia não é algo pontual que utilizamos no ato de fazer uma mística, por exemplo, ela é vivência que permeia a luta diária. No cotidiano as pessoas leem poesia, outras escrevem, outras interpretam. Essa ação não é espontânea, fomos cuidando desse fazer. Tão importante quanto o ato de ocupar a terra, fazer a mística e manter viva a poesia, requer planejamento, trabalho coletivo, mobilização e tempo para construção. 

No Pará praticamente todas as crianças e jovens recitam poesias, motivados/ inspirados por dirigentes e militantes que fazem performances e declamam poesia. O fato dos dirigentes demonstrarem familiaridade com a poesia ajuda na construção do gosto pela literatura. Dentro da Frente de Educação, Cultura e Formação temos a prática de, a cada atividade e jornada de luta, organizar um kit com caderno de poesia, música, filmes, textos, documentários, jornais, revistas, de acordo com cada sujeito. Essa prática foi sendo construída para fortalecer o processo formativo, diminuindo assim a falta de acesso e buscando a garantia de direitos. 

Nossa militância, por sua vez, ampliou sua experiência com a literatura, pois no início da luta do Pará, o contato com a literatura se deu a partir do estudo dirigido, era uma literatura para a revolução, para formação de militantes. 

Nas escolas, o trabalho com a arte e a literatura ganhou força a partir dos cursos formais, cumprindo um importante papel cultural na organização das atividades do Movimento Sem Terra. As práticas artísticas e literárias nos espaços escolares, nas místicas e nos momentos culturais, ganharam uma nova dimensão, houve uma revolução com as salas de leitura, as bibliotecas, a arca das letras. 

Portanto, a análise da forma como a literatura circula no MST, e a maneira como o Movimento estimula que leitores se tornem declamadores e produtores de poema é um dos eixos por meio do qual podemos afirmar que o MST é um movimento que, a partir da luta pela terra, por meio da reforma agrária, e do socialismo como horizonte histórico, é um movimento cultural brasileiro, que marca posição nesse campo pelas diversas iniciativas que produz, como cultura política organizativa. 

Referências 

BOGO, Ademar.  Gerações – coletânea de Poesias. Caderno de cultura nº 1. São Paulo: MST, 2002.

Borba, Débora Maria. A PRODUÇÃO LITERÁRIA DO MST: uma análise da coletânea de Poesias “Gerações”, organizada por Ademar Bogo. Monografia defendida no curso de Letras Português-Inglês, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Estadual de Maringá,2006.

CALDART, Roseli Salete. Sem-terra com poesia: a arte de re-criar a História. Petrópolis: Vozes, 1987.

CANDIDO, Antonio. A literatura e a vida social. In Literatura e Sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000.

CULTURA, Coletivo Nacional de. Caderno de Cultura nº 1. Cultura e Reforma Agrária Popular. São Paulo: MST, 2018.

*Rafael Litvin Villas Bôas é professor da Licenciatura em Educação do Campo da UnB. Doutor em Literatura pelo PPG-Poslit/UnB (2009). Coordenador do Coletivo Terra em Cena.