Homenagem
João do Vale, o poeta do povo
Por Dandára d’Araçá e Julia Iara*
Da Página do MST
“A minha flor o vento pode levar
mas o meu perfume fica boiando no ar”
(A voz do povo)
As artes, e a música em especial, têm um lugar muito importante na luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Nas ocupações, nas escolas, nas ruas, na produção de alimentos, nas feiras, ali está a música para nos oferecer coragem, alegria, para lembrar nossas lutas e os camaradas que conosco caminham. Ela é alimento nos tempos mais duros, mas também nos tempos de festa. Agora, caminhando para os nossos 40 anos de existência, para o tempo de nossa maturidade, precisamos contar nossa história, mas também cantá-la – ou ela será incompleta.
O cantar Sem Terra brota de muitas partes: vem da nossa cultura popular de camponesas e camponeses, da tradição das lutas que nos antecederam no Brasil e no mundo, e dos muitos exemplos daqueles que, como nós, cantaram sua terra e sua luta, fizeram da música sua ferramenta de sonhar futuros. Um desses grandes exemplos, que dá nome à frente de música do MST, é João do Vale, o poeta do povo.
João do Vale nasceu em 11 de outubro de 1934, numa cidade chamada Pedreiras, lá no calor das terras encantadas do Maranhão. Nasceu de família pobre, em um Brasil que boa parte do país desconhece. Como muitos de nós que viemos a lutar por vida digna no MST, João também não pode estudar – e ainda assim foi poeta, pleno dos saberes que a vida oferece; porque a poesia transcende as letras, os gabinetes, os grandes salões.
Ainda moço, em 1947, João se mudou para São Luís, em busca de uma vida melhor. Aos 13 anos de idade, vendia laranjas nas ruas da capital e já compunha em um grupo de bumba meu boi chamado Linda Noite. Dali, entretanto, a vida difícil foi levando João adiante; correu mundo, fosse de trem ou de carona na boleia de um caminhão, trabalhando onde podia: no garimpo, como pedreiro, e poetizando o que via.
Suas andanças o levaram, em 1950, ao Rio de Janeiro. Ali, ao mesmo tempo em que trabalhava como ajudante de pedreiro em Ipanema, João seguia compondo seu baião, cantando e ocupando seu lugar de artista. Buscava nas rádios espaços onde apresentar sua música, e foi sendo aos poucos reconhecido. Teve músicas gravadas por intérpretes como Luiz Vieira, Dolores Duran e Luiz Gonzaga, compôs trilhas sonoras para o cinema, e estreou também como cantor.
Em 1964, João do Vale foi parte do que se tornou um dos maiores marcos da música de protesto brasileira: o show Opinião, com direção de Augusto Boal e texto de Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes. Poucos meses após o golpe civil-militar, que instaurou uma sangrenta ditadura no Brasil, o show Opinião foi a primeira grande ação artística de contraponto ao novo regime, e permanece ainda como um dos momentos mais importantes da música popular no país. Com suas composições e sua voz, João se juntou a Zé Keti, Nara Leão e, posteriormente, a Maria Bethânia para contar sua história e falar da realidade do país, no que Augusto Boal chamou de “show-verdade”.
Muitas das mais reconhecidas músicas de João do Vale foram apresentadas ao público no show Opinião: Carcará, Pisa na Fulô, Peba na Pimenta e tantas outras.
João do Vale deixou uma marca indelével na música brasileira, e partiu cedo demais, moço de apenas 62 anos. Cantando o que sabia, aquilo que via e sentia, aquilo de que se lembrava, aquilo que era, João, homem negro, pobre, nordestino e analfabeto, ficou do tamanho do mundo.”
Em 2019, o MST decidiu batizar de João do Vale a sua frente de música porque lembramos das lições que ele, assim como Patativa do Assaré, Carolina Maria de Jesus e tantos outros, deixaram com sua existência: a arte é de toda humanidade e ela, voz rebelde, se nega a ser uma raridade de iluminados para ser, mesmo quando calejada, um arrebatamento coletivo e cotidiano de toda gente; que o artista é, antes de mais nada, um ser humano.
Em homenagem ao poeta, em outubro deste ano, mês em que João do Vale completaria seus 89 anos, o MST vai reunir 200 de seus cantadores e cantadoras, instrumentistas, compositores e compositoras, armados de música, para comemorar sua vida e seu legado, e seguir fazendo aquilo que ele nos ensinou: “cantar nossa história e semear o futuro”.
Ecoamos as lições dos poetas e poetisas do povo quando afirmamos que precisamos de “todo e toda Sem Terra fazendo arte”. O exemplo de João do Vale nos ensina que a arte brota da vida, e que cantar o singelo, cantar aquilo que é nosso – nossa terra, nossa vida, nossa luta – nos ajuda a cantar o mundo e a sonhar o futuro.
*Dandára d’Araçá e Julia Iara são do Coletivo de Cultura do MST.
**Editado por Solange Engelmann