Alimentação Saudável

Da produção ao prato: como fortalecer a construção de uma alimentação saudável desde a infância

A ludicidade é defendida como forma de nutrir e construir uma consciência ampla sobre a alimentação
Incluir as crianças no processo de preparo de refeições e discutir a importância dos diferentes grupos de alimentos pode ajudar a desenvolver hábitos alimentares positivos desde cedo. Foto: Agência Brasil

Por Mariana Lemos
Do Brasil de Fato

A importância de construir uma alimentação saudável desde a infância se destaca como um dos principais pilares para o desenvolvimento físico, mental e emocional das crianças. Nutrientes essenciais encontrados sobretudo em frutas, legumes, verduras, grãos e em fontes de proteína são os elementos que baseiam a construção de um corpo fortalecido por toda a vida. 

De acordo com o Guia Alimentar para a População Brasileira, uma alimentação saudável compreende um processo nutritivo que prioriza alimentos in natura e minimamente processados, em contraposição aos alimentos industrializados e ultraprocessados.  

Com o objetivo de olhar para todas as relações que envolvem a alimentação das crianças, no mês de agosto a ONG Aliança pela Infância realizou a Semana do Comer. Letícia Zero, Secretária Executiva da organização no Brasil, explica a iniciativa.

“Além de falar sobre nutrição, queremos falar sobre as relações afetivas e subjetivas do comer na infância. Olhamos para a alimentação como esse lugar de afeto, de encantamento e também de nutrição. Tudo que envolve alimentação saudável e adequada, que é direito da criança”, relata.

No entendimento da ONG, aprender, brincar, comer e dormir são os quatro principais atos essenciais para a garantia de uma infância plena e digna, sobretudo se permeados por uma cultura de paz. Ou seja, mesmo que muito daquilo que entendemos como alimentação saudável seja baseado na variedade de nutrientes consumidos, ela deve compreender processos que vão além.

“Alimentação saudável não é apenas aquela que nutre o nosso corpo com os nutrientes que precisamos. Alimentação tem que ser saudável pra quem está comendo e para quem está produzindo, distribuindo, para o produtor do campo, para a natureza, para a terra, para todo mundo que faz parte do sistema alimentar, que é desde a produção até o prato”, defende.

Carla Bueno, que trabalha junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em São Paulo e que é mãe de Marina e Samuel, conta pra gente como se deu o processo de construção, desde cedo, de uma alimentação saudável com os pequenos. Na visão de Carla, é importante construir condições para que as crianças se familiarizem com os alimentos, dando ênfase na percepção através da textura das comidas. 

“As texturas na alimentação infantil, na introdução alimentar, são essenciais, porque se entrega tudo muito preparado, no sentido da facilidade. Então tinha-se essa coisa da papinha, da comida mole. Desde o princípio não se oferece outras texturas porque fica uma textura padrão e isso, de alguma forma, já começa domesticando um pouco o paladar infantil. Porque as texturas fazem diferença também no sabor, quando vai se pensar um prato você tem várias texturas, não é uma textura só”, explica.

Incluir as crianças no processo de preparo de refeições e discutir a importância dos diferentes grupos de alimentos pode ajudar a desenvolver hábitos alimentares positivos desde cedo. Este é outro elemento apontado por Carla, sobretudo para que os pequenos possam se reconhecer enquanto sujeitos ativos no processo alimentar. 

“Quando as crianças são sujeitas no sentido de ajudar a preparar, elas comem melhor. Qualquer parte da preparação que você puder compartilhar, às vezes, não para fazerem, mas para pegarem uma faquinha de brinquedo e entrar no meio da brincadeira do preparar a comida já vai ajudar”, afirma. 

A integrante do MST defende que, com os cuidados e supervisão de pessoas adultas, o imaginário sobre a cozinha deve ser construído de forma leve e prazerosa. 

“A cozinha não como esse lugar que vai ser assustador, que a faca corta, que não pode entrar. A cozinha como esse lugar que recebe também as crianças para preparar. Quando vai fazer uma massa, poder amassar junto. Tá preparando no fogão? É perigoso? É. Mas se tiver do lado de um responsável o fogo não é tão grave assim. Samuel [filho] adora ver o fogo ali, inclusive quando é churrasco ele fica, ele gosta de ver”, relata.

Em relação ao alimento que é oferecido para Marina e Samuel no dia a dia, Carla explica que não há diferenciação no preparo do alimento para adultos e crianças. Além disso, ela conta que a base alimentar da família é arroz, feijão, legumes e proteínas, esta última não necessariamente proveniente da carne.

“Comer com as crianças, para a gente, é oferecer para eles a mesma comida que a gente come. Às vezes pode dar para brincar e é lúdico, sim, mas às vezes não dá, principalmente por conta do nosso tempo, e está tudo bem. O importante é que eles topem novas coisas. E eu acho que a gente tem que se despir dos preconceitos também no sentido dos sabores. Porque essa grande indústria está padronizando sabores e está limitando a nossa experiência alimentar do gosto, do paladar. Precisamos querer provar o diferente. Então quem está acostumado a comer um feijão carioca, poder comer outros tipos de feijões, por exemplo”, defende.

Em relação aos principais desafios para a construção de uma alimentação saudável para as crianças brasileiras, Letícia Zero apontou funções sobretudo para o Estado, no sentido da divulgação de informações, da taxação aos ultraprocessados e do subsídio para a produção de alimentos saudáveis.

“Sim, o Estado tem um papel muito forte nisso. Tem um papel tanto de fomentar que a informação circule sobre o que é correto, adequado e saudável, quanto de criar condições socioeconômicas para que essas escolhas possam ser feitas, para que essa alimentação saudável possa ser disponibilizada. E aí entram os programas de aquisição de alimentos nas escolas, entram a tributação aos ultraprocessados, a questão da cesta básica, porque tem muito alimento ultraprocessado na cesta básica hoje. Entram os incentivos fiscais à agricultura familiar porque temos que lembrar que agricultura familiar não é o agro né”. 

Para Letícia, comer é um ato político e as crianças devem ser vistas pela sociedade como sujeitos políticos. 

“Então além do ‘comer é um ato político’, tem uma outra máxima que é uma pergunta: ‘o que a gente está alimentando quando a gente se alimenta?’. Que sistema estamos alimentando quando escolhemos a nossa comida? De onde vem a nossa comida? Qual o sistema econômico na qual aquela comida está sendo produzida, distribuída e entregue? Comer é um ato político por conta dessas escolhas. E é importante pensar como a criança se encaixa nessa reflexão porque o nosso simples existir no mundo é um ato político. Não é só comer que é político, mas viver é político. E se relacionar com todas as pessoas que estão a nossa volta, com todo o ambiente, com todas as nossas ações, é político”, afirma. 

Edição: Daniel Lamir