Internacionalismo
Pedagogia Maubere: A construção da soberania de um povo por meio da educação popular
Por Iris Pacheco
Da Página do MST**
Neste 30 de agosto, completou-se 24 anos do referendo que permitiu aos “vizinhos” lusófonos do sudeste da Ásia encerrar a ocupação indonésia e abrir o caminho para a independência. No mesmo dia, no ano de 1999, quase 80% dos eleitores do Timor Leste votaram a favor da separação da Indonésia, cuja ocupação militar durou 24 anos e foi extremamente violenta, matando mais de 25% da população. Ou seja, como nos ensina a história de luta contra a colonização, o preço que os timorenses tiveram de pagar por ela foi elevado. Mesmo após o SIM à independência na consulta popular, o terror seguiu instalado e as forças de segurança indonésias, auxiliadas por milícias, iniciaram uma onda de violência que provocou a morte de 1.400 pessoas e o exílio de centenas de milhares de pessoas.
No entanto, o povo timorense também promoveu um intenso processo de luta e combate contra a fome e a destruição, na construção da resistência no interior e no exterior. E sobretudo, na consolidação de um processo educativo emancipador que fosse capaz contribuir para a libertação nacional.
O Timor-Leste é um pequeno país do Sudeste Asiático que ocupa a porção oriental da ilha de Timor e tem uma população que apresenta uma elevada diversidade étnico-cultural: são mais de 30 línguas, sendo os idiomas oficiais o português e o tétum. Sua diversidade arquitetônica da capital, Díli, conta as lutas do país pela independência de Portugal em 1975 e, posteriormente, da Indonésia de forma consolidada em 2002.
É em meio a esse emergir da luta de um povo contra a opressão que a Pedagogia Maubere é construída, ainda no período em que Timor esteve sob domínio indonésio e constituiu-se baseada, sobretudo, em Paulo Freire, em sua perspectiva de Educação Popular, com grande influência de autores marxistas como Lênin, Mao Tsé Tung e Amílcar Cabral. Entre os atores envolvidos na construção dessa proposta pedagógica está a Frente Revolucionária do Timor-Leste Independente (FRETLIN), o grupo intitulado Casa dos Timores e a União Nacional dos Estudantes Timores (UNETIM).
Um processo em construção
Em 2004, o MST é convidado para contribuir com um processo de formação de formadores no método da educação popular para um processo de alfabetização no país. A pedagoga e militante do Setor de Educação do MST em Pernambuco, Rubneuza Leandro de Souza, rememora qual era o objetivo dessa iniciativa.
“A ideia era trabalhar o método da educação popular porque eles tinham uma referência do Paulo Freire muito forte. Uma das lideranças foi exilada para Portugal e lá conheceu o método do Paulo Freire, e quando ele retorna para o Timor, passa a fazer a alfabetização das pessoas nos campos, inclusive usando o chão como quadros, os gravetos como giz e alfabetizava as pessoas no campo com elementos da resistência. E isso foi fundamental para o processo de resistência.”
A liderança citada por Rubneuza é Vicente Reis‘Sahe’, que estudou em Portugal, foi um dos fundadores da FRETILIN e um dos idealizadores da Pedagogia Maubere. Uma palavra com origem na língua local chamada Mombar, do Povo Mambai, uma das maiores comunidades da parte ocidental de Timor-Leste, mas também uma das mais pobres e oprimidas pelo domínio colonial português, Maubere era empregada por estes como sinônimo de analfabetos e incultos. Porém, a FRETILIN na luta pela independência buscou descolonizar o subconsciente e defender a memória de um povo também a partir das suas tradições linguísticas. Dessa forma, Maubere é ressignificada como um termo que representa, segundo o Programa Político da FRETILIN de 1974, “constituir um Timor verdadeiramente livre e independente, é necessário que todos, homens, mulheres, velhos, jovens, crianças, todos saibam ler e escrever.”
O professor da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) no Paraná, Marcos Gehrke, também esteve na construção da alfabetização nos anos de 2004 e 2005 no país junto ao MST e rememora como foi a experiência.
“O trabalho se deu a partir de uma perspectiva do bilinguismo. Fomos para fazer a alfabetização em língua portuguesa com camponeses do Timor Leste, inspirados na concepção de educação de Paulo Freire. Eles falavam as línguas dos seus grupos étnicos, mas estavam retomando a língua portuguesa, já que haviam sido invadidos de novo após a saída portuguesa pela Indonésia. É um país que precisou por várias vezes abrir mão de sua língua.”
Logo, a educação foi a arma política possível para os timorenses defenderem os seus direitos com dignidade. Direitos esses que perpassam sobretudo, pela luta por Reforma Agrária e a democratização da terra. Com 1,3 milhão de habitantes atualmente, cuja economia depende da exportação do café e do petróleo extraído no oceano, mas que cerca de 90% da população no início deste século vivia da agricultura, o país segue no desafio de superar o alto índice de analfabetismo, pelo menos 50% da população adulta e 25% das crianças e jovens entre seis e 16 anos não frequentam a escola.
A experiência de solidariedade internacionalista na área da educação consistiu em um trabalho de um ano, com um curso de formação de formadores desenvolvido em quatro etapas. Isso porque as pessoas depois iriam para as suas comunidades para desenvolver o processo com os/as educadores/as locais.
Rubneuza lembra que a primeira (etapa) durou um mês com duas formações em dois locais diferentes, Bucoli e Dare, cada uma de 15 dias, que contou com alguns desafios em sua materialização. “Um limitador que tivemos lá foi o idioma, na primeira formação tinha em torno de cinco línguas, entre elas, o português de Portugal, então, usamos as simbologias para o pessoal compreender o trabalho.”
A história de opressão e violência deixa traços socioculturais tão opressores quanto físicos. À época da troca de experiências entre movimentos, era visível um método de educação bancária, cujo desafio estava apresentado e sendo construído: um método de educação timorense que permitisse ao povo ser sujeito de sua própria história.
“Quando íamos trabalhar o método de educação popular, trazíamos questões de uma educação emancipadora, a partir de um processo da história de vida, do que sofreram com a opressão de Portugal, depois com a Indonésia, para que pudessem abstrair dali os elementos e relacionar com a educação: como construir algo que rompa com esses elementos?”, relata Rubneuza.
Marcos lembra que era sempre o processo de fazer análise de conjuntura, de explicar pra eles sobre a educação popular, porque sofreram uma forte educação bancária e autoritária.
“Adotamos a metodologia de palavras geradoras, a codificação e decodificação das palavras, sempre fazendo essa análise crítica com esses sujeitos trabalhando com as palavras do mundo e da cultura deles. A produção, a falta de alimento, de moradia, eram temas muito abordados. trabalhamos muito com as histórias de vida, fazendo linhas do tempo, construímos os mapas dos territórios que também estavam em disputa, porque os portugueses, depois da saída de Portugal, voltavam retomando esses territórios e gerando conflitos agrários.”
A solidariedade entre os povos
A educação é uma das formas de construir a solidariedade internacionalista. No entanto, o MST ao longo de seus quase 40 anos tem construído uma política internacionalista de solidariedade que agrega diversos princípios que zelam pelo respeito à cultura, ao conhecimento que possibilita a emancipação de um povo. Nesse sentido, Rubneuza traz em suas palavras o quanto é importante essas ações internacionalistas e também sobre a necessidade de zelar pelos valores e método emancipador na construção dela.
“A importância do movimento em contribuir com esse processo, como o que estamos fazendo no continente africano, é grande. Primeiro que é um crescimento de mão dupla, contribuímos com os processos desses países e aprendemos muito ao sair da nossa realidade para outra. Segundo, que ao trabalhar com o método de educação popular e ter o Paulo Freire como referência, não podemos chegar lá de forma bancária, depositando na cabeça das pessoas. A riqueza da educação popular é construir a autonomia das pessoas fazendo seu próprio percurso. O processo de construir com o outro é muito enriquecedor.”
Após esse retorno na história, é possível afirmar que a educação segue como um princípio basilar para que um povo alcance sua emancipação. O legado de Paulo Freire atravessou fronteiras, oceanos, idiomas e distintas realidades de diversos povos pelo mundo. Ainda assim, com tantas diferenças, em um cenário de guerras e disputas geopolíticas, todos eles cultivam em si o anseio da liberdade, da soberania e da autonomia popular.
É exatamente sobre uma educação de coragem, uma educação que contribua para que o povo insira-se no processo político social de seu país, que Paulo Freire discursou profundamente no dia 02 de abril de 1963, ao encerrar o curso de alfabetização de adultos em Angicos, no Rio Grande do Norte. Talvez naquele momento, não soubesse que seu legado por uma educação emancipadora chegaria nos quentes campos do Timor Leste e ali encontraria terra fértil para florescer a Pedagogia Maubere.
Fontes:
Documentos internos do MST
A educação popular em Timor-Leste
Arquivo & Museu da Resistência Timorense (AMRT)
*Editado por Fernanda Alcântara
** Artigo publicado originalmente em 2021