Campo e Cidade
“O capitalismo urbanocêntrico coloca em perigo os ambientes rurais”
Por Àlex Romaguera
Do IHU/ Naiz
Tradução: Cepat
A ascensão do modelo neoliberal, baseado no extrativismo e na concentração de capital nas metrópoles, levou à perda das condições materiais dos ambientes rurais. Espaços que, uma vez despojados de recursos, transformam-se em parques temáticos a serviço do mercado e das grandes empresas ligadas ao turismo e ao setor energético.
Diante desta inclinação mercantilista, o movimento da economia social e solidária emerge com uma proposta de desenvolvimento integral que reúne uma nova geração de ativistas e acadêmicos de esquerda. Uma das contribuições neste campo é o livro Economia Solidària i Ruralitats, coeditado pela Xarxa d’Economia Solidària de Catalunya (XES) e pela editora Pol·len que, sob a coordenação de Carla Escarrà (Ripoll, 1993), convida-nos a relocalizar os processos de mudança para construir um mundo mais justo, equilibrado e democrático.
Cooperativista e antropóloga de profissão, Carla Escarrà analisa como os ambientes rurais são, hoje, um laboratório para testar e colocar em prática este novo modelo, que tem entre suas prioridades o controle comunitário dos recursos e medidas que coloquem no centro a produção ecológica, a cultura, o respeito ao meio ambiente e o cuidado das pessoas.
Confira a entrevista
No livro, você afirma que há uma subordinação do mundo rural ao urbano. Quando começa esse processo?
Responde à evolução histórica do capitalismo, mas o diagnóstico parte das leituras de Henri Lefebvre, Friedrich Engels e outros teóricos. Eles situam as grandes migrações como o ponto de inflexão de um esvaziamento do campo que, de forma massiva, começa com as respectivas revoluções e se consolida por meio da industrialização que ocorre ao longo do século XX. Contudo, precisamos lê-lo a partir da esperança do fracasso.
O que quer dizer?
Trata-se da necessidade das pessoas irem para a cidade para ganhar a vida, fazendo com que a metrópole se torne a sua nova prisão. John Berger e outros romancistas fazem referência a isso, que primeiro se materializa com a industrialização da agricultura, que faz desaparecer as pequenas propriedades em favor da exploração agrícola intensiva e, por último, com a monocultura turística.
Qual é o impacto do atual modelo turístico?
Produz mudanças físicas, sociais e culturais que não trazem benefícios. Também não atende às necessidades dos ambientes rurais, não está ligado ao controle da população, nem leva em conta a finitude dos recursos. Pelo contrário, acarreta uma instabilidade que, por efeito multiplicador, levou-nos a uma crise ecológica e econômica que se replica de forma parecida em todas as regiões e territórios.
Até que ponto esta dinâmica é reforçada por uma narrativa cultural que associa a cidade à modernidade e o campo ao atraso?
O coletivo Resilience Earth chama isto de “colonização urbana da mente”, aludindo ao fato de que, conforme o poder sociopolítico se concentra nas cidades, projeta-se a ideia de que o progresso surge na cidade e as tarefas do campo são antiquadas.
Quais as consequências deste discurso?
Reflete na autoestima dos ambientes rurais, a tal ponto que antigas práticas são folclorizadas para acabar museificadas. Dois exemplos seriam o abate do cordeiro e a pesca com rede tradicional, que são apresentadas como atividades estigmatizadas e circunscritas a um determinado passado histórico. Hoje, quem se dedicará a esta pesca, se nos dizem que é uma relíquia obsoleta? Os jovens dificilmente farão isto.
Tudo isso revela um problema sistêmico na relação campo/cidade?
Demonstra que o mundo rural se tornou um fornecedor de recursos e um depósito de resíduos para a cidade. Vemos isso nas granjas de suínos espalhadas por várias comarcas do interior da Catalunha, como Osona, onde o rebanho come ração que vem de fora e quando engorda é sacrificado para que seja exportado. Um circuito do qual sobram apenas terras nitrificadas que poluem o solo e deixam as fontes sem água potável.
Em quais outros setores se observa o fenômeno?
Destacaria as grandes centrais fotovoltaicas que, através das linhas de alta tensão, privam-nos das fontes renováveis e, ao mesmo tempo, acabam com o espaço fértil que tínhamos. São exemplos de um modelo que além de danificar rios e terras, vem das mãos de políticas urbanocêntricas que colocam em risco a vida dos ambientes rurais.
Como se percebe isto no ambiente rural?
Muitas regiões vão ficando sem hospitais, sem um sistema de transporte adequado às pequenas localidades e, no campo da educação, submetidas a um critério proporcional que, traçado em chave urbana, leva ao fechamento de escolas por falta de alunos. O resultado é devastador: muitos coletivos se veem obrigados a mudarem para as cidades para conseguirem se emancipar, em particular as mulheres.
Existe uma dimensão patriarcal nessa concepção urbanocêntrica?
O geógrafo Luis Camarero faz esta análise quando fala sobre “a geração de apoio”, ou seja, mulheres de 25 a 45 anos sobre as quais recaem os cuidados e a reprodução dos ambientes rurais. A maioria delas, em razão da dificuldade em assumir esses cuidados, acaba sucumbindo e fazendo parte do êxodo, encontrando nas cidades os recursos que não possuem no campo.
O livro também propõe superar a dicotomia campo/cidade com o objetivo de estabelecer uma solução integral. Acredita que é necessária uma mudança de paradigma?
No âmbito acadêmico, já são utilizados conceitos que rompem essa dicotomia, como “rurbano”, uma vez que as comunicações e as atividades produtivas fizeram com que o mundo rural deixe de estar isolado. A partir daí, o debate está em como resolver as desigualdades entre um centro que polariza o poder político e econômico e periferias que perderam soberania e estão submetidas a ele.
A partir da economia social e solidária, aposta-se em avançar rumo ao Desenvolvimento Econômico Local (DEL). Em que consiste a proposta?
Fundamentalmente, em relocalizar – voltar a localizar – e nos reconciliar com processos comunais que já funcionavam em um passado recente, como a gestão comunal das florestas. E isso passa por estimular a economia circular e de proximidade, promover o apoio mútuo e complementar as pequenas ações autogeridas com políticas público-comunitárias que favoreçam o acesso à moradia, cultura e formação. É preciso apostar em estruturas horizontais enraizadas, em vez daquelas que, como acontece hoje, partem da verticalidade de uma capital.
Quais são as experiências que vão nesta linha?
As comunidades energéticas locais são um bom exemplo, pois estão contribuindo para reverter a dinâmica do livre mercado, compreendendo a energia como um bem a serviço dos moradores e moradoras. Nesse sentido, podem ser inspiradoras para os processos de empoderamento e de envolvimento da população em assuntos coletivos. Não só nos ambientes rurais, também nos bairros das cidades. Assim como podem ser citados alguns projetos cooperativos de turismo rural que já desenvolvem práticas responsáveis.
Isso também inclui medidas que atendam a diversidade e os coletivos mais desprotegidos?
Sem dúvida. Entre as pessoas que vivem outra identidade sexual ou criam famílias que se afastam dos cânones heteronormativos, há situações muito satisfatórias e, de certa forma, tendem a aumentar. Contudo, ainda são minoritárias, de modo que os recursos são básicos, tanto para estas quanto para outras dissidências.
Nesse horizonte democratizador que você traça, que papel as novas tecnologias podem desempenhar?
Dependerá do uso e para quem são concebidas, mas não devem ser contraditórias com a recuperação do valor da atividade primária e, consequentemente, de um modelo alimentar saudável, variado e sustentável. Da mesma forma que podem favorecer o consumo responsável, sempre que o planejamento estratégico for adequado para que a população se vincule e se veja interpelada por estas mudanças. No final das contas, o importante é que a política responda às necessidades econômicas, sociais e ambientais que devem permitir uma relação harmônica, justa e igualitária das pessoas com os ambientes rurais.