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Soja, milho e pecuária dominam 60% de território do povo Avá-Guarani (PR), revela estudo
Por Relatório de Impacto Comissão Guarani Yvyrupa | 2023
Da Página do MST
Mais de 60% de uma Terra Indígena no Oeste do Paraná está dominada pelo agronegócio, enquanto o povo Avá-Guarani resiste em 1,3% da área, com roças tradicionais. É o que revela o diagnóstico Impactos da produção de commodities agrícolas às comunidades Avá-Guarani da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá/Oeste do Paraná, produzido pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY).
Os municípios de Guaíra e Terra Roxa, nos quais a TI Tekoha Guasu Guavirá se insere em sua quase totalidade, têm atualmente 80% de suas áreas destinadas ao agronegócio. Nesta Terra Indígena vivem mais de 3000 indígenas do povo Avá-Guarani, cercados por grandes lavouras de soja, milho e eucalipto. As consequências deste cenário vão da fome até a intoxicação por agrotóxicos, passando por ameaças à biodiversidade, aponta o relatório.
O documento também indica a presença dos roçados e quintais das tekoha ou aldeias de Guasu Guavirá como pequenas ilhas de grande diversidade de plantas alimentícias e medicinais, sendo essa uma forma de driblar a homogeneização de espécies industriais das lavouras do entorno e a escassez alimentar que permeia as aldeias.
“Conseguimos plantar alguma coisa mas não em quantidade suficiente para manter a nossa sustentabilidade. As dificuldades de manter essas sementes se dão devido à falta de espaço, ao agrotóxico e também às mudanças do clima”, salientou Ilson Soares, coordenador regional da CGY e uma das lideranças da tekoha Y’hovy em entrevista.
Fome, agrotóxicos e os impactos à biodiversidade
Para enfrentar situações de extrema vulnerabilidade alimentar imposta pelo confinamento territorial, os indígenas Avá-Guarani, confinados a uma parcela de 1,3% do total reivindicado para demarcação, vêm recorrendo às doações de cestas básicas do governo federal, assim como ao consumo da merenda escolar no caso da alimentação das crianças, aponta o estudo. Ainda assim, há casos de famílias que dependem dos restos de alimentos que pegam no lixão de Guaíra.
“O confinamento territorial, atravessado pelos efeitos climáticos severos, são mutuamente agravantes do risco da perda da agrobiodiversidade, com consequências também sobre a fome”, explica a geógrafa Teresa Paris, consultora da CGY e uma das autoras do estudo.
A pesquisa da CGY aponta que, segundo dados do Censo Agropecuário de 2017, dos 661 estabelecimentos de Guaíra, 509 declararam utilizar agrotóxicos, enquanto 144 declararam não utilizar. Em Terra Roxa, dos 1.209 estabelecimentos, 921 utilizaram agrotóxicos e 281 declararam não utilizar. Diante disso, relatos sobre danos à saúde dos indígenas, com o aparecimento de sintomas como dores de estômago, dores de cabeça e diarreia após a dispersão dessas substâncias são recorrentes.
“Um ancião morador desta aldeia relatou que frequentemente encontram galões de armazenamento de agrotóxicos jogados no rio, no local onde as crianças se banham e onde algumas famílias pescam, em vez de serem corretamente descartados”, descreve o estudo referindo-se à tekoha Guasu Guavira.
Além disso, são mencionados impactos nas plantações e sobre a vida dos animais. “Muitas vezes algumas pessoas chegam a passar mal, os animais morrem, como os franguinhos sempre acabam morrendo. Toda vez que passam agrotóxicos as pessoas da comunidade ficam com dor de cabeça, náuseas, às vezes tem vômito e diarreia. E como a gente não tem saneamento básico de qualidade, a gente fica mais exposto”, apontou Karai Okaju.
O mesmo ocorre na aldeia tekoha Pohã Renda, onde relataram a morte de inúmeras galinhas não apenas como efeito da aspersão dos agrotóxicos, mas também pelo fato de os animais ciscarem sementes de milho envenenadas que são jogadas no plantio de eucalipto, contígua à aldeia, a fim de atingir as saúvas, retrata a pesquisa.
Com exceção de três aldeias localizadas na área urbana, todas as tekoha de Guasu Guavirá fazem limite com as lavouras de soja, chegando, em alguns casos, a ter um espaço menor de dois metros de distância entre o plantio e as casas. Dessa forma a exposição à deriva dos agrotóxicos é sistemática.
Os Avá-Guarani já testemunharam até mesmo o uso de agrotóxicos como arma química, isto é, sendo pulverizados intencionalmente sobre as aldeias com o objetivo de atingir casas, roçados e os próprios indígenas. “Eles aproveitam essas ferramentas e usam como se fossem armas químicas. A gente teve esse problema do fazendeiro passar veneno em cima da comunidade e deixar todo mundo doente, já aconteceu em pelo menos duas comunidades, passaram veneno com o trator e uma vez de avião”, diz Karai Okaju.
Nesse cenário, Teresa ressalta que “é indispensável proteger as comunidades e o território da contaminação, assim como preservar a agrobiodiversidade e as práticas e saberes associados próprias dos Avá-Guarani, bem como fortalecer o projeto de soberania alimentar das comunidades, garantindo o acesso aos alimentos em quantidade e qualidade necessários a todas as famílias de Guasu Guavirá.”
Empresas lucram às custas da fome
Ainda assim, os faturamentos obtidos pelas principais cooperativas e empresas agropecuárias da região como a C.Vale Cooperativa Agroindustrial (C.Vale), Copagril, Integrada e I.Riedi Grãos e Insumos multiplicam ano a ano batendo recordes, mostra o diagnóstico.
Diante desta conjuntura, a CGY chama a atenção para a narrativa de que o agronegócio brasileiro supostamente alimenta o mundo, usada inclusive pelo governador do estado, Ratinho Junior (PSD). “No contexto fático do país maior produtor de soja do mundo, ao contrário do que propaga a narrativa ruralista hegemônica de que o agronegócio brasileiro alimenta o mundo, 125,2 milhões de pessoas enfrentavam algum nível de insegurança alimentar e nutricional e 33,1 milhões de pessoas enfrentavam a forma mais grave da fome – não tinham o que comer no final de 2021”, ressalta o estudo.
A pesquisa evidencia também o fato de que a produção de alimentos básicos da dieta da população, como o arroz, a mandioca e o feijão, perdem cada vez mais espaço em Guaíra e Terra Roxa, na medida em que avançam as lavouras para a produção de commodities agrícolas, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) inseridos na investigação. No caso da soja o crescimento foi de mais de 200% de ha plantados entre 1974 e 2020, no município de Guaíra, e em Terra Roxa aumentou-se 245% os hectares cultivados de soja na região.
Aliada à produção em larga escala foi promovida uma grande devastação ambiental nos dois municípios, sendo que em 2014 a porcentagem de matas e florestas naturais correspondiam a apenas 9% em cada cidade, revela o Diagnóstico.
A vegetação nativa que sobreviveu à devastação ambiental constitui atualmente apenas 12,4% da área delimitada da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, aos quais os indígenas têm muitas vezes o acesso impedido por proprietários privados. “Isso significa que o acesso às áreas florestadas fundamentais para os Avá-Guarani é extremamente restrito”, diz uma parte do relatório.
Saiba mais
A situação em que se encontra atualmente a TI Tekoha Guasu Guavira se dá sobretudo por um histórico de esbulho territorial do povo Avá-Guarani, marcado por remoções forçadas, mortes, devastação ambiental e alagamento parcial de seu território pelo reservatório da Usina Hidrelétrica (UHE) de Itaipu a partir da década de 1980.
De acordo informações do relatório de identificação produzido pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), em 2018 incidiam sobre a Tekoha Guasu Guavirá cerca de 165 fazendas, essas posses originaram-se da concessão indevida das terras de ocupação tradicional dos indígenas, cedida pelo Estado, em favor de empresas e proprietários privados individuais.
Além disso, segundo o estudo, “após a Constituição de 1891, que transferiu a competência da titulação de terras aos Estados, várias concessões foram feitas pelo Estado do Paraná, então governado pelas oligarquias associadas à exploração da erva-mate e de madeira.” Nesse contexto foram concedidos títulos incidentes no atual município de Guaíra pelo governo paranaense à Companhia Mate Laranjeira e outras empresas obrageras.
Apesar das inúmeras dificuldades, a partir do final da década de 1990, famílias então removidas à força ocuparam parte das terras que não ficaram submersas após a operação da UHE Itaipu, reafirmando a necessidade do reconhecimento dos direitos territoriais da Tekoha Guasu Guavirá.
A situação de vulnerabilidade em que vivem as comunidades Avá-Guarani, marcada pela negação constante de garantias e direitos fundamentais, se agrava diante da morosidade do Estado em reconhecer seu direito às terras tradicionalmente ocupadas. O processo administrativo de identificação e delimitação da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá foi oficializado apenas em outubro de 2018 com a publicação do resumo do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da TI Tekoha Guasu Guavirá, elaborado pela Funai. Contudo, em seguida o processo administrativo foi suspenso por decisão judicial do TRF4, favorável à Federação dos Agricultores do Estado do Paraná, e na sequência anulado em decisão da Justiça Federal do Paraná favorável ao município de Guaíra.
Sob a gestão do Governo Federal do presidente Jair Bolsonaro, a Funai, que deveria agir de acordo com sua obrigação constitucional na defesa dos direitos territoriais indígenas, informou falta de interesse em recorrer da sentença que anulou o procedimento demarcatório de Tekoha Guasu Guavirá, com a edição da Portaria nº 418, de 24 de março de 2020. Apenas em abril de 2023, sob o governo Lula, a presidente da Funai, Joênia Wapichana, anulou tal Portaria, tornando novamente válido o relatório de identificação e delimitação.
Nessa conjuntura soma-se à insegurança territorial, o racismo e consequentemente o desemprego e os efeitos psicológicos graves sobre os indígenas, que são marginalizados pelo setor ruralista das cidades. Karai Okaju narra como se deu o movimento orquestrado para impedir a continuidade da demarcação da TI Tekoha Guasu Guavira. “Fizeram manifestações na BR e manifestações silenciosas com faixas na entrada da cidade, que diziam: ‘Invasão indígena não combina com ordem e progresso’, com adesivos em carros que diziam: ‘Não à demarcação de terras indígenas’”, conta.
A partir daí as práticas racistas, segundo ele, tornaram-se ainda mais extremas. “A ponto de termos parentes sendo assassinados a tiros, por linchamento, por atropelamento e também outros impactos psicológicos. O suicídio virou uma epidemia com o preconceito na cidade, a falta de emprego e a discriminação nas escolas”.
*Editado por Fernanda Alcântara