Organização popular

Vamos Sonhar Juntos o caminho para um futuro melhor

Confira trechos da obra do Papa Francisco, em que ele comenta sobre a importância dos movimentos populares, o direito à terra, a moradia e ao trabalho
Foto: Reprodução web

Por Papa Francisco
Da Editora Intrínseca*

(…) Abraçar a periferia é ampliar nossos horizontes, já que vemos com maior clareza e amplitude quando estamos às margens da sociedade. Precisamos recuperar a sabedoria escondida em nossos bairros e que ficam visíveis através dos movimentos populares. Menosprezar essas mobilizações, descrevendo-as como algo “pequeno” e “local”, é um erro; seria não ver sua força e relevância. Os movimentos populares têm o potencial de revitalizar nossas sociedades, resgatando-as de tudo aquilo que hoje as enfraquece.

Os encontros de movimentos populares no Vaticano e em outros lugares permitiram estabelecer um plano de mudança, que já vinha sendo desenvolvido por eles. Defenderam um comportamento que rejeita o consumismo e recupera o valor de todas as vidas, da solidariedade e do respeito pela natureza como valores essenciais; que se compromete com a alegria de “bem viver”, em vez do “bem estar” complacente e egoísta, que o mercado nos vende e que acaba por nos isolar e nos fechar em nossos mundinhos.

Reivindicaram habitação e trabalho dignos, bem como o acesso à terra aos pequenos produtores; a integração de bairros urbanos pobres na vida da cidade; a erradicação da discriminação e da violência contra a mulher; a extinção de todas as formas de trabalho escravo; o fim à guerra, ao crime organizado e à repressão; o reforço à liberdade de expressão e comunicação democráticas; e a garantia de que a ciência e a tecnologia estejam a serviço do povo. Nada disso, pode acontecer sem mudanças em cada comunidade, que, por sua vez, só pode ocorrer mediante ações concretas, com todos sendo protagonistas e que isso possa nascer da visão, do julgamento e da atitude: percebendo a necessidade, o discernindo de que caminho seguir e chegando a um consenso para, então, agir.

Algumas tentações nos distrairão: ficar ruminando uma sensação de impotência e indignação, nos perder em conflitos e reclamações; focar em slogans e ideias abstratas, em vez de ações específicas e locais. Não sejamos ingênuos: haverá sempre o perigo da corrupção. Por isso, para nos unirmos à causa dos movimentos populares, necessitamos sempre de humildade e de um pouco de austeridade pessoal; é um caminho de serviço, não uma rota para o poder. (…) Um estilo de vida sóbrio, humilde, dedicado ao serviço, vale muito mais do que milhares de seguidores nas redes sociais.

O nosso maior poder não é o respeito que as pessoas têm por nós, mas a possibilidade de servir a elas. Em cada ação que fazemos pelos outros, assentamos as bases para restaurar a dignidade dos nossos povos e comunidades, o que nos permite curar, cuidar e partilhar melhor. Embora essas ações tenham que envolver todos nós, líderes políticos e empresas podem fazer muito para facilitar a concretização dessas prioridades, que não são nada além das necessidades do povo do qual fazem parte.

Terra

Somos seres terrestres, que pertencem à Mãe Terra, e não podemos viver somente às custas dela; nossa relação deve ser de reciprocidade. Precisamos de um Jubileu, um tempo em que aqueles que têm de sobra consumam menos, para que a terra se cure, e um tempo para que os excluídos encontrem seu lugar nas nossas sociedades. A pandemia e a crise econômica nos ofereceram uma oportunidade de examinarmos nosso estilo de vida, mudarmos hábitos destrutivos e encontrarmos maneiras mais sustentáveis de produzir, fazer negócios e transportar bens.

Também podemos começar a implementar uma conversão ecológica em todos os níveis da sociedade, como propus na Laudato Si’: passando dos combustíveis fósseis para a energia renovável; respeitando ou implementando políticas de biodiversidade; garantindo acesso a água limpa; adotando estilos de vida mais comedidos; mudando nossa compreensão dos conceitos e valor, progresso e êxito, levando em conta o impacto das nossas empresas no meio ambiente. Como comunidade mundial, precisamos nos comprometer com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas para o ano de 2030. Aproveitemos os próximos anos para praticar uma ecologia integral, para que o princípio de regeneração ecológica molde as decisões que adotaremos, em todos os níveis.

Isso significa examinar de forma crítica o impacto dos nossos métodos industriais no meio ambiente e dos agronegócios nos pequenos produtores. É necessário pôr mais terra à disposição de pequenos agricultores, cuja produção é voltada para o consumo local e que utilizam métodos orgânicos e sustentáveis. É preciso que nossas terras produzam, não somente alimentos, mas também solos saudáveis e a preservação da biodiversidade.

Os bens e os recursos da terra são destinados a todos. Ar fresco, água limpa e uma dieta equilibrada são vitais para a saúde e o bem-estar dos nossos povos. Devemos colocar a regeneração da terra e o acesso universal aos seus bens no núcleo do nosso futuro pós-pandemia.

Teto

Por “teto” me refiro, obviamente, à casa onde vivemos; mas, num sentido mais amplo, também ao nosso habitat geral.

A concentração nas cidades é cada vez maior, e o que acontece nelas é crucial para o futuro da nossa civilização. É difícil termos consciência da nossa dignidade quando estamos submersos em centros urbanos sem alma, sem história. É difícil falar de pertencimento e responsabilidade conjunta se pensarmos em grandes áreas urbanas que promovem o anonimato, a solidão e o desamparo. A degradação do nosso ambiente urbano é um sinal de esgotamento cultural. Quando o nosso ambiente é caótico, fragmentado ou saturado de ruído e feiura, é difícil ser feliz e falar de dignidade.

Restaurar a dignidade dos nossos povos significa prestar atenção ao nosso oikos, à nossa casa comum. Há muito a fazer para humanizar o nosso ambiente urbano: criar, cuidar e investir em áreas comuns e espaços verdes; assegurar habitações sustentáveis e adequadas para as famílias; desenvolver bairros e sistemas de transporte público de qualidade, que reduzam a contaminação e o ruído e favoreçam uma mobilização ágil e segura. É necessário, ainda, dignificar as zonas periféricas das nossas cidades, integrando-as por meio de políticas sociais capazes de reconhecer e valorizar o aporte cultural que podemos trazer. Transformando nossas cidades dessa forma, iremos gerar riqueza cultural e social, o que possibilitará e estimulará o cuidado com o meio ambiente.

Mas, todos esses esforços devem ser conduzidos pelos agentes locais, a partir de sua própria cultura, apoiados pelos Estados, claro, mas respeitando sempre a voz e a atuação dos habitantes do lugar e de suas instituições. A meta deve ser criar uma estrutura em que as redes de pertencimento e solidariedade prosperem, restaurando vínculos de comunidade e fraternidade, conectando instituições que tenham fortes laços com a comunidade e os movimentos populares. Quando as organizações atuarem juntas, transcendendo fronteiras de crenças e etnia para alcançar objetivos concretos para a comunidade, então, poderemos dizer que nossos povos reivindicam de volta sua alma.

Trabalho

Deus nos deu a terra para cuidar e cultivar. Nosso trabalho é condição fundamental para a nossa dignidade e bem-estar. Não é privilégio exclusivo dos empregados nem dos empregadores, mas um direito e um dever para todos os homens e mulheres.

Como será o nosso futuro, quando 40% ou 50% dos jovens não tiverem trabalho, como já acontece hoje em alguns países? O povo pode precisar de assistência específica por um tempo, mas não deveria precisar viver de auxílio-desemprego. Cada um precisa alcançar uma vida digna por meio do trabalho, para manter sua família e se desenvolver como pessoa, em primeiro lugar, mas também para enriquecer seu ambiente e a sua comunidade. O trabalho é a capacidade que o Senhor nos concedeu para contribuirmos com sua própria ação criadora. Através do trabalho, nós moldamos a Criação.

Por isso que, como sociedade, devemos assegurar que o trabalho seja não apenas uma maneira de ganhar dinheiro, mas de expressão, participação e construção do bem comum. Priorizar o acesso ao trabalho deve ser uma meta central das políticas públicas de uma nação.

Muitos termos do mundo dos negócios sugerem o objetivo fraternal da atividade econômica, que precisamos restabelecer nos dias atuais. Por exemplo, companhia: vem de partilhar, juntos, o pão; corporação: quer dizer integração no corpo. Os negócios não são somente uma iniciativa privada; devem servir ao bem comum. Comum: vem do latim cum-munus: “cum”, significa em conjunto, enquanto “munus” é um serviço dado como presente ou por um senso de dever. Nosso trabalho engloba tanto uma dimensão individual como uma comum. É uma fonte de crescimento pessoal e também chave para restaurar a dignidade dos nossos povos.

Com bastante frequência, o que vemos é o completo oposto: apesar de gerarem valor, os trabalhadores são tratados como elemento descartável pelas empresas. Ao passo que alguns acionistas, com seu interesse limitado a maximizar os lucros, são quem tomam as decisões. A nossa definição do valor do trabalho também é muito restrita. Devemos superar a ideia de que o trabalho de quem cuida de pessoas ou de um voluntário num projeto social, que assiste centenas de crianças não é trabalho, porque não há salário.

Reconhecer o valor do trabalho não remunerado para a sociedade é vital para repensarmos o mundo pós-pandemia. Por isso, acredito que seja hora de explorar conceitos como o de renda básica universal, também conhecido como imposto de renda negativo: um pagamento fixo incondicional a todos os cidadãos, que poderia ser distribuído através do sistema tributário.

A renda básica universal poderia redefinir as relações no mercado laboral, garantindo às pessoas a dignidade de rejeitar condições de trabalho que as aprisionam na pobreza. Daria aos indivíduos a segurança básica de que precisam, eliminando o estigma do seguro-desemprego, e facilitaria a mudança de um trabalho para outro, como cada vez mais os imperativos tecnológicos no mundo trabalhista exigem. Políticas como essa também podem ajudar as pessoas a combinar o tempo dedicado ao trabalho remunerado e o tempo para a comunidade.

Com o mesmo objetivo, é bem possível que seja também hora de considerar uma redução no horário de trabalho, com o ajuste salarial correspondente, o que paradoxalmente pode aumentar a produtividade. Trabalhar menos, para que mais gente tenha acesso ao mercado de trabalho, é um aspecto em relação ao tipo de pensamento que precisamos explorar com certa urgência.

Ao tornar a integração dos pobres e o cuidado com o meio ambiente objetivos centrais da sociedade, podemos gerar trabalho e humanizar nosso entorno. Com uma renda básica universal, liberamos e garantimos que as pessoas sejam capazes de trabalhar em função de sua comunidade de forma digna. Ao adotar métodos sustentáveis mais intensivos na produção de alimentos, regeneramos o mundo natural, criamos trabalho e uma biodiversidade para vivermos melhor.

Tudo isso significa ter metas para o bem comum do desenvolvimento humano, em vez de confiar nas falsas suposições do famoso “efeito de gotejamento”, o qual prega que o crescimento da economia fará todos mais ricos. Se focarmos na terra, no teto e no trabalho, poderemos recuperar uma relação saudável com o mundo e crescer a partir do serviço aos outros.

Desse modo, transcenderemos a mesquinha mentalidade individualista do paradigma liberal, sem cair na armadilha do populismo. A democracia, então, se revitaliza, graças às preocupações e à sabedoria do povo ligado a ela. A política pode voltar a ser uma expressão de amor através do serviço. Ao pôr a restauração da dignidade dos nossos povos como objetivo central do mundo pós-pandemia, fazemos com que a dignidade de todos seja o que move nossas ações. Garantir um mundo em que a dignidade seja valorizada e respeitada por meio de ações concretas não é apenas um sonho, mas o caminho para um futuro melhor.

*Trechos da páginas 137 a 144.

**Editado por Solange Engelmann