Direito à Comunicação
“Não tem como transformar a sociedade sem discutir e mudar a comunicação”
Helena Martins participou da Escola Nacional de Comunicação Popular do MST. Foto: Sara Sulamita
Por Douglas Fortes
Da Página do MST
Recentemente, durante as atividades da Escola Nacional de Comunicação Popular do MST, recebemos na Escola Nacional Florestan Fernandes (Enff), Helena Martins, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), integrante da DiraCom e militante pelo direito à comunicação. Em entrevista para a página do MST, Helena destacou a necessidade de regulamentar as “Big Techs” para democratizar os meios de comunicação.
A importância do assunto é tanta que o relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do 8 de janeiro deu ênfase à aprovação do projeto de lei das Fake News (PL 2630/20) e responsabilizou as plataformas digitais pelos atos golpistas que resultaram na depredação e invasão de prédios públicos no início de 2023. No entanto, apesar da rápida tramitação em maio de 2023, a votação do PL 2630/20 foi retirada de pauta, sem previsão de retomada.
Confira abaixo o olhar de Helena Martins sobre esse e outros temas:
Qual é a importância de se discutir, estudar e elaborar sobre comunicação e tecnologia na atualidade?
Quem está lendo a gente, certamente, acorda e vai direto para o celular para se informar. Essa experiência não é só individual; hoje a comunicação está reorganizando a sociedade. Nós não teríamos globalização ou mundialização do capital, como eu prefiro chamar, sequer teríamos financeirização, esses fluxos de finanças tão acelerados no mundo, se a gente não tivesse tecnologias de comunicação que possibilitam essa integração. Fala-se em capitalismo digital, sociedade da informação, para mim é o capitalismo, com seu centro organizado por elementos da comunicação e das tecnologias.
Da visão ampla à dinâmica individual, passando pelas formas como nós organizamos a nossa luta, disputamos o saber e o poder, tudo é atravessado pela comunicação. Não tem como transformar a sociedade sem discutir e mudar a comunicação.
Qual é o papel da indústria cultural na sociedade?
O capitalismo sempre busca submeter mais áreas da vida para a ideia central que move o sistema, que é de produzir mais valor e se apropriar disso. Desde o final do século XIX e ao longo do século XX, ele se apropriou de elementos para transformar a cultura, a informação e a circulação de conteúdo em dinâmicas capitalistas. Uma forma que o sistema organizou para controlar e submeter a cultura às suas próprias lógicas é a indústria cultural. Ela é uma dinâmica de industrialização e mercantilização dessa cultura, não só da arte, mas do modo de vida: organizando sistemas de comunicação altamente concentrados e controlados por mãos privadas.
Desde o início do século XX, alguns países, e mais tardiamente o Brasil, estabeleceram grandes sistemas de comunicação com o principal papel de ajudar o capitalismo a se manter, apesar das suas enormes contradições e das suas violências.
Foto: Sara Sulamita
Identificamos, através de estudos como os de César Bolaño e de outros pesquisadores, pelo menos três funções que a indústria cultural desenvolve para auxiliar na validação do capitalismo.
Primeira, a função de propaganda: ela promove e naturaliza ideias associadas ao sistema, como desigualdade de classe, gênero, raça e reforçando a visão de que o modo de vida capitalista é único e insuperável.
Segunda, a função de publicidade: ela promove o modo de vida consumista, criando necessidades que levam o capital a transformar tudo que é produzido em mercadorias para serem compradas, gerando valor e se apropriando dele em todo o circuito de produção e compra de mercadorias.
Terceira, a função de programa: uma certa tradução que não acontece de forma simples e sem desafios, por conta das nossas tradições e laços sociais que não necessariamente são organizados da forma capitalista.
A indústria cultural adapta esses elementos da cultura local, traduzindo-os para influenciar e transmitir seu próprio programa capitalista por meio dos conteúdos que promove. Pensemos, na Europa, a ideia de uma indústria cultural, de um sistema de comunicação estava muito vinculado a uma certa cultura burguesa. Aqui no Brasil não é isso, se a gente for olhar quais são os ritmos, por exemplo, mais escutados no Brasil, eles são sertanejo, funk e ritmos que têm uma origem popular. Agora, ele é o sertanejo que a gente encontra no campo e no MST? Ou ele é um sertanejo à la indústria cultural, que a gente pode dizer um sertanejo do agronegócio? Essa é a tradução que a indústria cultural faz.
Há, claro, outros elementos, uma certa ideia de fazer com que a população descanse, não pense nas contradições ao longo do dia. Por isso a gente liga a televisão brasileira, e são poucos os programas de entrevista. Porque não interessa discutir os temas, interessa ter aquele momento de relaxamento e desafogar o cotidiano de opressão que a nossa população enfrenta. São vários elementos que a indústria cultural vai desenvolvendo para transformar o sistema em algo mais palatável do que ele poderia ser.
Nas últimas décadas, as pessoas têm sofrido uma forte influência das plataformas digitais. Você poderia nos dizer quais são os impactos políticos, econômicos e sociais delas?
Durante o século XX, a TV tinha um papel ideológico e econômico, impulsionando a venda de produtos e funcionando como um sistema econômico por si só. Com as plataformas digitais, essa relação está mais entrelaçada, tornando-se impossível falar da organização de uma marca que opere em vários países para produzir um produto sem associar com essas plataformas digitais, porque elas auxiliam na organização dessa produção. Por exemplo, a produção de um iPhone envolve cerca de 30 países, e isso é possível porque você tem redes que estão o tempo todo conectando e possibilitando o controle de cada parte que é envolvida na produção de um produto. No ponto de vista da integração do sistema é muito importante.
Elas têm grande participação na dinâmica de financeirização, basta olhar os aplicativos de banco e a lógica de fluxos financeiros viabilizados pelo digital. As plataformas mais conhecidas, como Google e Facebook, estão inseridas tanto na operação econômica quanto na política e ideológica. Economicamente, estão entre as empresas mais valiosas do mundo, como mostram os rankings da Forbes e consultorias capitalistas. Empresas de tecnologia como Google, Amazon, Microsoft, Facebook (Meta) e Apple lideram essas listas, predominantemente norte-americanas, mantendo um domínio concentrado em meio a poucas concorrentes, principalmente chinesas.
As plataformas digitais têm um impacto político direto, quase toda a nossa produção cultural para alcançar mais pessoas passa por esses espaços. Assim como passava pela TV e pelo rádio, agora estamos falando de empresas transnacionais que controlam esses fluxos. Por exemplo, 90% das pesquisas realizadas no mundo são feitas a partir do Google. Se o Google quiser boicotar algum tema, as pessoas não vão ter contato com esse assunto. Apesar de se apresentarem como espaços abertos e horizontais, sua suposta liberdade é limitada, pois essas empresas exercem seu poder político quando necessário.
Foto: Sara Sulamita
Temos vários exemplos, como o papel crucial nos casos de Donald Trump nos EUA e o surgimento da extrema-direita no Brasil, elas impulsionaram conteúdos para terem mais alcance contribuindo para a ascensão dessa ideologia em nível global. Isso foi evidente durante a discussão do projeto de lei contra fake news em 2023, quando as plataformas associaram nas buscas do Google o número do projeto à palavra censura, manipulando a informação a favor dos seus próprios interesses. O comando não se dá mais diretamente na produção, mas no controle da circulação dos conteúdos. Inclusive atravessando pautas que não estão obviamente ligadas aos interesses delas, como se observa na situação de opressão de Israel em relação à Palestina. Há muitos anos, movimentos pró Palestina denunciam que a empresa Meta (Facebook, Instagram e Whatsapp) reduz o alcance e retiram do ar postagens sobre o assunto. São todas expressões dessas manipulações que são difíceis de ver, porque essas plataformas digitais operam de uma maneira muito opaca.
Nós não sabemos como esses algoritmos são desenhados, porque as pessoas recebem conteúdos diferentes e muito segmentados. De fato, é uma operação de exercício de poder por parte dessas plataformas. Para movimentos populares que buscam a esfera pública para disputar mentes e corações, é impossível abrir mão desses espaços, mas é fundamental pensar maneiras de superá-los, já que esses espaços não nos pertencem.
Você consegue identificar saídas coletivas para essas questões? quais os desafios que temos nesse sentido?
Estamos avançando no reconhecimento do problema. Antes, essas plataformas eram vistas com simpatia, as pessoas falavam do espaço de trabalho do Google com sinuca e o Facebook era o Face do Mark com uma percepção de liberdade meio hippie de uma história da tecnologia dos anos 70. Agora entendemos que são empresas com interesses próprios e práticas de manipulação que necessitam de regulação. Isso é resultado das lutas e da conscientização dos problemas que enfrentamos.
Precisamos desnaturalizar a ideia de que esses sistemas sejam privados. Devemos resgatar o debate sobre sistemas públicos de comunicação, não apenas limitados à TV e rádio, promovendo desde sistemas mais vinculados ao Estado propriamente, mas também a sociedade e as comunidades. Isso inclui repensar as infraestruturas de telecomunicações, como a internet, que antes eram públicas e foram privatizadas no Brasil em 1998. A retomada do caráter público da comunicação é fundamental para garantir uma esfera pública não baseada nos interesses privados.
Diante do avanço do neoliberalismo, é crucial implementar um programa de longo prazo para restaurar a ideia de serviço público, que foi praticamente excluída. Medidas são viáveis e importantes. Podemos criar nossas próprias plataformas, sistemas de armazenamento de dados e redes sociais para evitar depender de empresas privadas, como armazenar dados de toda a população na Amazon. Temos o conhecimento, a criatividade e as habilidades técnicas para isso. Hoje o que ocorre é o entreguismo.
Isso envolve política pública robusta, educação para mídia nas escolas e capacitar as pessoas para criar suas próprias aplicações tecnológicas. São conjuntos políticos que abrangem desde a estrutura da questão até as formas de uso, visando proporcionar acesso à internet para todos, não apenas para redes sociais, mas para explorar outras potencialidades.
Sabemos que você tem relação com o MST, acompanha as lutas do Movimento. Qual seria a importância de movimentos populares de luta pela terra incorporarem o tema da soberania tecnológica como uma bandeira de luta?
Essa incorporação já está em curso. Na Índia, Vandana Shiva, defensora da agroecologia, denuncia a posse de sementes e modificações genéticas por empresas como a Monsanto e também luta contra o domínio das plataformas digitais. Da mesma forma que a soberania alimentar envolve ter sementes crioulas e respeitar os nossos próprios sistemas agrícolas, a soberania na comunicação requer autonomia para desenvolver tecnologias próprias. São áreas que se aproximam cada vez mais, talvez a gente tenha mais para aprender com os movimentos que já discutem soberania há tanto tempo e trazer também essas pautas associadas ao debate da comunicação. Se toda produção social estiver concentrada em mãos de poucas plataformas transnacionais privadas, qual soberania nos restará? Se os dados das empresas públicas estiverem nessas corporações, o que vai acontecer? Snowden denunciou a vigilância em relação a Petrobras e a ex-presidenta Dilma, vimos que essas empresas estavam servindo para vigiar e qual foi o impacto geopolítico disso.
Para ter soberania, não podemos depender ou entregar nossas informações para as plataformas digitais.
*Editado por Gustavo Marinho