Alimentação

PEC sobre o direito à alimentação vai a votação no Congresso; entenda o que está em jogo

Proposta encabeçada por parlamentar ligado à bancada ruralista e apoiada por bolsonaristas substitui direito à alimentação por direito à “segurança alimentar”. Articulação garantiu mudança em comissão do Senado
Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

Por Leandro Melito
De O Joio e o Trigo

Uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que pode ir a votação no plenário do Senado Federal em dezembro altera o Artigo 6º, que diz respeito ao direito à alimentação – uma conquista histórica da sociedade brasileira. 

Apresentada pelo senador Alan Rick (União/AC) em abril deste ano, a PEC 17 propõe, em seu texto original, a substituição, no artigo 6º, do “direito à alimentação” por “direito à segurança alimentar”. Aparentemente sutil, a mudança acendeu o alerta em parlamentares e instituições que atuaram em 2010 para garantir a inclusão do direito à alimentação na Constituição. 

Uma articulação no Senado conseguiu aprovar uma emenda ao texto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) que mantém o direito à alimentação no texto constitucional e acrescenta, como detalhamento, o direito à segurança alimentar e nutricional. Apesar da vitória na CCJ, fontes ouvidas por O Joio e O Trigo avaliam que é preciso manter a mobilização sobre o tema e alertam para os riscos que a proposta original apresenta para o combate à fome no país.

O termo “segurança alimentar”, presente na gênese dos programas brasileiros de combate à fome, é alvo de disputa política, e aparece muitas vezes na boca de representantes do agronegócio e da indústria de alimentos como argumento em defesa de seus interesses econômicos. Por vezes, sem a qualificação “nutricional”, a expressão “segurança alimentar” é sinônimo de um alimento considerado seguro do ponto de vista sanitário. 

Aparece também em discursos de políticos da extrema direita aliados a esses setores. Em junho de 2021, por exemplo, o ex-presidente Jair Bolsonaro afirmou durante um evento do Plano Safra que o “agronegócio garantiu a segurança alimentar do brasileiro durante a pandemia”

Já o conceito de segurança alimentar e nutricional construído a partir de organizações e movimentos sociais é uma referência no mundo, ao promover uma abordagem complexa e sistêmica em torno do assunto. A Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, de 2006, traz a seguinte definição: “Consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.”

Segurança alimentar e nutricional “consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis”

Fonte: Losan, 2006 .

Bolsonaro extinguiu o Consea e desmontou as estruturas de combate à fome no país durante seu governo, que terminou com um saldo de 33 milhões de brasileiros com fome, de acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 – um crescimento de 70% em relação aos resultados da mesma pesquisa realizada em 2020.

Encabeçada pelo senador Alan Rick (União/AC), a PEC 17/2023 traz entre os propositores figuras que integraram o primeiro escalão do governo Bolsonaro, hoje com mandato parlamentar no Senado: Astronauta Marcos Pontes (PL/SP), Damares Alves (Republicanos/DF), Sergio Moro (União/PR), Hamilton Mourão (Republicanos/RS) e Tereza Cristina (PP/MS).

Alan Rick, que se tornou nacionalmente conhecido por um vídeo em que destrata funcionários de um aeroporto, é atual presidente da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), onde defende com unhas e dentes a derrubada do veto presidencial sobre o  Marco Temporal de demarcação de terras indígenas.

“Desde que assumi a presidência da Comissão conseguimos construir uma pauta bastante produtiva e demos agilidade às necessidades do agro. Obviamente, dou destaque para o Marco Temporal, que já tramitava há muito tempo no Congresso e graças à FPA pode ser aprovado também no Plenário do Senado”, disse Rick em um almoço dos parlamentares que integram a Frente da Agropecuária (FPA), em outubro. Além da frente ruralista, Rick integra as bancadas evangélica e armamentista do Congresso Nacional. O parlamentar não atendeu a nossos pedidos de entrevista.

Defensor do Marco Temporal contra povos indígenas, Rick defende um conceito “mais abrangente” de alimentação. Foto: Geraldo Magela/ Agência Senado.

O texto aprovado na CCJ

Na Comissão de Constituição e Justiça, o texto recebeu um voto em separado do senador Rogério Carvalho (PT/SE), que mantém o direito à alimentação e acrescenta a segurança alimentar e nutricional como direito. Aprovado na quarta-feira (14), o texto acolhido pela relatora, a senadora Professora Dorinha Seabra (União/GO), tem o seguinte parágrafo:

O direito social à alimentação observará os preceitos da segurança alimentar e nutricional, com a garantia de que todos, em todos os momentos, tenham acesso físico e econômico regular e permanente a alimentos suficientes e seguros, de forma saudável, cultural, social, econômica e ambientalmente sustentável, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais.

Para Rogério Carvalho, da forma como foi aprovado na CCJ, o texto da PEC manteve o direito à alimentação como parte essencial que assegura à pessoa humana o poder de se alimentar e introduz novos elementos “para aprimorar o entendimento e proporcionar uma qualidade superior à alimentação da população brasileira”.

“Ao abordar a segurança alimentar [no texto original], estamos nos referindo à garantia dos meios pelos quais as pessoas podem acessar alimentos e as condições nutricionais para manter-se saudáveis e alimentadas, contudo, sem garantir o direito à alimentação. Portanto, durante o debate, optamos por preservar o direito à alimentação, ainda que complementado pela responsabilidade constitucional do país de garantir a segurança alimentar para toda a população. Consequentemente, alcançamos um entendimento de que não representa retrocesso”, afirmou o senador a O Joio e O Trigo.

Também em entrevista, Elisabetta Recine, presidenta do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), externa uma visão semelhante. “Ter mantido alimentação no texto foi fundamental, até porque é esse o conceito que se utiliza internacionalmente. O Brasil foi um dos países pioneiros na inclusão desse direito na sua Constituição, e inspirou muitos outros países. Manter essa lógica em relação ao próprio arcabouço jurídico e legal, tanto nacional quanto internacionalmente, é muito importante.”

A presidenta do Consea avalia que o acréscimo no texto aprovado pela CCJ é um resultado “adequado e coerente” com tudo que vem sendo construído em relação ao tema. “É algo positivo no sentido de um processo de qualificação, respeita uma construção histórica tanto da sociedade brasileira, quanto das políticas públicas brasileiras.”

O texto aguarda a definição na reunião de líderes que acontece às quintas-feiras. Quando entrar em pauta, caso não seja aprovado requerimento de calendário especial, deverá obedecer às cinco sessões de discussão antes da deliberação em primeiro turno. Aprovada em primeiro turno, terá de passar por mais cinco sessões de discussão antes da deliberação em segundo turno, antes de seguir para a Câmara dos Deputados.

“Ao assegurar a segurança alimentar na Constituição, queremos garantir que programas como o Pronaf, Pnae e PAA sejam fortalecidos e que outras políticas públicas permitam que todos os brasileiros possam comer alimentos saudáveis, em quantidade suficiente, todos os dias e em todas as refeições”, postou o senador Alan Rick em suas redes após a aprovação do texto na CCJ. 

O que está em jogo?

No texto original da PEC, o parlamentar defende afirma que segurança alimentar é um conceito “mais abrangente” do que o direito à alimentação, “pois tem relação com a garantia de condições de acesso aos alimentos básicos, seguros, de qualidade, em quantidade suficiente e em caráter contínuo, sem que isso comprometa outras necessidades essenciais”.

Para as fontes ouvidas pelo Joio, porém, esse é um entendimento equivocado e que ignora a construção histórica que permitiu que o direito à alimentação fosse incluído na Constituição em 2010.

Para a presidenta do Consea, a substituição do “direito à alimentação” por “segurança alimentar”, contida no texto original da PEC, reduz a amplitude do que é garantido pela Constituição. “A ideia original era retirar a alimentação do caput e substituir por segurança alimentar. Essa substituição iria reduzir enormemente o escopo do direito, uma vez que a segurança alimentar basicamente está focada nos aspectos de produção, e o direito à alimentação é um direito amplo no sentido de garantir que todas as pessoas estejam livres da fome e tendo acesso à alimentação adequada e saudável.”

Os adjetivos “adequada” e “saudável”, ressalta Recine, dão uma amplitude para o direito à alimentação que extrapola a dimensão biológica e coloca todos aspectos ligados à cultura, ao patrimônio, aos modos de produção e ao impacto ambiental ao se pensar sobre esse direito.

O economista Renato Maluf, ex-presidente do Consea, aponta que, na prática, a mudança proposta originalmente pela PEC 17 poderia restringir o direito à alimentação para a população brasileira. “Um dos nossos temores é que trocar o direito à alimentação por segurança alimentar é trocar o direito à alimentação adequada por uma visão produtivista da alimentação”, alerta.

“Nós somos militantes da causa de segurança alimentar e nutricional, mas a segurança alimentar tem diferentes usos. Para nós, preservar o texto da Constituição é preservar um princípio mais geral que dá o estatuto de direito, assim como os outros. Essa movimentação não aperfeiçoa o texto constitucional.” 

Conquista histórica

O direito à alimentação não estava previsto no texto aprovado em 1988 pela Assembleia Constituinte. Foi dentro do Consea que nasceu uma campanha pela inclusão desse direito no artigo 6º e conseguiu, em 2010, a aprovação por unanimidade no Congresso Nacional da Emenda Constitucional 64.

“Essa decisão dentro do Consea, quando a gente consegue organizar a campanha para a aprovação no Congresso, é o resultado de um processo de conscientização da própria sociedade civil, da importância de ter essa bandeira na realização do direito humano”, destaca Recine.

A partir daquela votação histórica, o direito à alimentação passou a figurar como um direito social da população brasileira ao lado de educação, saúde, trabalho, moradia, transporte, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, e assistência aos desamparados.

“Quando fizemos a emenda constitucional nos referimos a algo que tem a mesma natureza, o mesmo estatuto que os demais elementos previstos no artigo 6º. O texto constitucional fala de educação e saúde, e nós falamos de alimentação”, recorda o Renato Maluf, que presidia o Consea naquela ocasião. “A sociedade brasileira infelizmente não tem uma cultura de direitos estabelecidos, mas a colocação na Constituição foi importante. A gente precisa avançar nos instrumentos que permitam exercer esse direito.”

*Nota da redação: Essa reportagem foi alterada às 17h45 de 4 de dezembro para corrigir uma informação. Havíamos informado incorretamente que Alan Rick é senador pelo Sergipe, mas ele é senador pelo Acre.