Entrevista
“A Reforma Agrária é uma política prioritária no país”, afirma nova presidente do CNDH
Da Página do MST
No último dia 8, Marina Dermamm tomou posse como Presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos. Gaúcha, Dermamm é advogada popular e defensora pública do Rio Grande do Sul. Ainda na faculdade, ingressou em coletivos de assessoria jurídica popular. Depois de formada, fez parte da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP) e do Setor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Na Defensoria Pública, com o apoio de organizações e movimentos sociais, foi eleita ouvidora-geral.
A expectativa é que esta trajetória vinculada aos movimentos sociais se reflita em sua atuação na Presidência do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). O Conselho, criado em 2014, tem o objetivo de promover a defesa dos direitos humanos, previstos na Constituição Federal de 1988 e em tratados e atos internacionais assinados pelo Brasil, além de sugerir e fiscalizar as políticas públicas sobre o tema. Além disso, pode acompanhar e denunciar casos de ameaça e violação de direitos humanos e emitir notas públicas, recomendações e resoluções, quando necessárias.
O órgão é composto por 20 conselheiros e conselheiras representantes do poder público e a sociedade civil. O CNDH conta com mais de 600 pessoas entre conselheiros e integrantes de 14 comissões, grupos de trabalho e relatorias para promover os direitos humanos em todo o Brasil.
Em entrevista para a Página do MST, Marina Dermamm falou como o CNDH pode intervir na retomada de uma política de Reforma Agrária no país. Além disso, tratou de temas como o combate à violência no campo, fome, miséria e a aprovação do Pacote do Veneno no Senado Federal.
Confira a entrevista:
Em seu discurso de posse, você disse que “os direitos humanos ainda não chegaram às milhares de famílias Sem Terra que ainda lutam pela reforma agrária debaixo de uma lona preta”. Esta é uma fala que dialoga com a tragédia que resultou na morte de 9 pessoas no Acampamento Terra e Liberdade, Pará, que estavam acampadas, lutando pela terra. Qual o papel que o CNDH deve desempenhar para assegurar a implementação de uma política de reforma agrária no país?
O CNDH tem entre as suas atribuições a de fiscalizar e monitorar as políticas públicas relacionadas com os direitos humanos, podendo fazer recomendações e resoluções para os órgãos públicos caso constate alguma violação. A política da Reforma Agrária se insere nesse âmbito de monitoramento do CNDH, visto que é uma política prioritária no país, na medida em que efetiva inúmeros direitos humanos, tais como os direitos à terra, ao trabalho, à saúde, à educação e principalmente à segurança. O Estado brasileiro não pode deixar pessoas morando em acampamentos precários na espera de terra. Precisa, urgentemente, realizar a Reforma Agrária completa. A demora do Estado submete essas pessoas a viver em situação de risco. Vimos isso na tragédia que aconteceu no Acampamento Terra e Liberdade, no Pará. A tragédia não teria acontecido se essas pessoas estivessem assentadas.
Em relação à tragédia de Parauapebas, dois conselheiros do CNDH foram ao local para acompanhar o caso, e, a partir disso, serão feitas recomendações ao poder público, para evitar novas tragédias como aquela.
A violência no campo segue sendo uma realidade em todo país. Em 2022 tivemos um aumento de 30% dos casos de assassinatos em conflitos no campo em relação a 2021, totalizando 47 vítimas. De que modo o CNDH pode contribuir para o combate ao crescimento deste e outros semelhantes tipos de violência?
Dentre as 14 comissões do CNDH temos a de Defensores de Direitos Humanos e Enfrentamento da Criminalização dos Movimentos Sociais, que se dedica a acompanhar denúncias de ameaças à defensores e defensoras dos direitos humanos. Esta é uma das comissões mais demandadas em nosso Conselho, recebendo diversas denúncias anualmente. Pela expertise de seus membros, tem atuado em espaços importantes de construção da política de proteção e segurança para defensores dos direitos humanos, liberdade de expressão e meio ambiente. Um exemplo, é a atuação ativa no Grupo de Trabalho Técnico Sales Pimenta, recentemente instituído e integrado por representantes do Poder Executivo federal e da sociedade civil. Um dos principais legados desse grupo será a proposta de uma nova legislação sobre a política pública de proteção aos/às defensores/as de Direitos Humanos, que ainda encontra fragilidades na proteção coletiva/comunitária, bem como a assistência aos/às defensores/as. A experiência do CNDH, de quase uma década de atuação na promoção e proteção dos direitos humanos, contribui sobremaneira nesses espaços.
Como você enxerga iniciativas de combate a criminalização à luta pela terra, como é o caso da criação da Frente Parlamentar Invasão Zero, que, segundo seus membros, buscam “combater as invasões no campo”? Qual o impacto deste tipo de iniciativa na garantia dos direitos humanos no campo brasileiro?
Esse tipo de iniciativa é um retrocesso social e apenas fomenta ainda mais a violência no campo. Essas iniciativas são permeadas de discurso de ódio e práticas de violência, que são crimes que deveriam ser veementemente investigados e punidos pelo Estado brasileiro.
A fome e a miséria ainda são realidade no país, com 21 milhões de pessoas ainda sem ter o que comer todos os dias. Além disso, o governo tem demonstrado dificuldade em implementar políticas importantes para o combate destas mazelas, como é o caso do PAA, que contratou menos da metade da demanda da sociedade. Como o CNDH pode intervir para superarmos a fome e a miséria no país?
O CNDH possui uma comissão permanente sobre direito humano à alimentação adequada, coordenada pelo conselheiro Wend Gasparotto, com grande experiência nessa área. Essa comissão está atenta à execução das políticas públicas de aquisição de alimentos e enfrentamento da fome, expedindo recomendações nesse sentido.
O CNDH também está atento aos impactos das emergências climáticas na realização do direito humano à alimentação. As recentes tragédias ambientais, decorrentes dos eventos climáticos extremos, atingiram diretamente a produção de alimentos no país e podem causar desabastecimento nos próximos anos. Na próxima semana, inclusive, o CNDH realizará missão ‘in loco’ nas cooperativas em assentamentos da Reforma Agrária, localizados na região metropolitana de Porto Alegre, para verificar as perdas na produção de arroz orgânico e nas hortas que abastecem as feiras orgânicas.
Tivemos, recentemente, no Senado Federal, a aprovação no PL 1459/22, conhecido como Pacote do Veneno, o qual representa um retrocesso na política de combate a agrotóxicos no país. Este PL pode prejudicar a garantir de direitos básicos da população do campo e da cidade? Como a CNDH pode atuar em casos como este?
O CNDH tem grande preocupação com o uso indiscriminado de agrotóxicos no Brasil, já tendo expedido resolução sobre a proibição de pulverização aérea de agrotóxicos, documento de referência em todo o país.
Sobre o Pacote do Veneno, expedimos recomendação ao presidente Lula para que vete integralmente a medida. Uma lei como essa, viola obrigações internacionais em matéria de direitos humanos de proteção à vida e ao meio ambiente.
Caso aprovada a lei, haverá um controle menor do Estado no processo de autorização de agrotóxicos, o que certamente favorecerá a liberação de produtos altamente nocivos para saúde humana e para o meio ambiente. O Brasil irá na contramão de países europeus, que estão banindo diversos agrotóxicos que são aprovados aqui no país, a exemplo do glifosato.
Por fim, durante os governos Temer e Bolsonaro, foi possível presenciar uma crescente restrição da participação social na definição de políticas, inclusive de direitos humanos. Neste sentido, qual o papel dos movimentos sociais na garantia dos direitos humanos?
Não poderíamos falar de direitos humanos sem a luta dos movimentos sociais. Todo o direito do povo sempre foi construído com muita luta. E só avançamos na realização desses direitos com participação social.
*Editado por Fernanda Alcântara