Agronegócio

“Violência no campo vai aumentar”, afirma professor da Unesp

Para Bernardo Fernandes, os governos são reféns do agronegócio, mas um governo progressista pode criar políticas que fortaleçam os excluídos, em uma reforma agrária “possível”
Professor da Unesp é um dos maiores especialistas em questão agrária no Brasil. Foto: José Eduardo Bernardes/Brasil de Fato

Por Alceu Luís Castilho e Nanci Pittelkow
De Olho nos Ruralistas

Movimentos e intelectuais do campo da resistência costumam dizer que no Brasil nunca ocorreu uma reforma agrária que efetivamente desconcentrasse a propriedade de terras. Para o professor Bernardo Mançano Fernandes, professor livre-docente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e coordenador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (Nera), o que temos é a reforma agrária possível. Para ele, o campo hegemônico do agronegócio e da bancada ruralista define ou aprova, por exemplo, quem será o nome à frente do Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa). A vantagem de um governo progressista é a de poder criar políticas públicas que fortaleçam comunidades e povos excluídos; e que, no médio e longo prazos, isso possa corroer o poder hegemônico. Mançano tem entre seus temas centrais de estudo o capitalismo agrário, a reforma agrária, desenvolvimento territorial, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e Via Campesina. O pesquisador aponta os movimentos sociais como impulsionadores da reforma agrária — por isso as tentativas fracassadas de criminalização, como a CPI do MST. Ele prevê mais violência no campo com o aumento das armas, mas acredita que o modelo destruidor vigente está se esgotando.  “O agronegócio não é sustentável, está morrendo; as forças populares estão nascendo”. Confira a entrevista concedida em agosto a Alceu Luís Castilho e Nanci Pittelkow.

Bernardo Mançano Fernandes, da Unesp. (Foto: Divulgação)

De Olho nos Ruralistas – Nós tivemos uma contrarreforma agrária nos governos Temer e Bolsonaro, sendo que já no governo Dilma Rousseff houve uma diminuição de assentamentos depois de um pico nos governos FHC e Lula. Agora, no novo governo de Luiz Inácio, foram anunciadas algumas medidas de retomada. A gente pode dizer que o Brasil está de novo numa marcha de reforma agrária? São medidas compatíveis para compensar os déficits dos governos anteriores?

Bernardo Mançano Fernandes – Temos diferentes leituras desse tema. Algumas entendem que a reforma agrária deve ser feita de uma única vez e deve desconcentrar a estrutura fundiária. Ou seja, se não diminuir o índice de GINI (medida de desigualdade), nós não temos uma reforma agrária, mas apenas uma política de assentamentos rurais. Na minha opinião essa leitura é muito ortodoxa, e nós sabemos que a política é sempre um processo que deve considerar cada momento. Mesmo os Planos Nacionais de Reforma Agrária (PNRA) 1 e 2, de 1985, voltados para uma fração do território com estimativa de número de famílias e área a ser desapropriada, não conseguiram cumprir essa meta. Porque o histórico do Brasil é o da concentração de terras na sua estrutura formativa, determinada pelos grandes latifúndios e pelas corporações nacionais e multinacionais que controlam esses territórios. Teríamos de ter um governo com grande poder para desconcentrar essa estrutura fundiária e isso não existe. [Desde a redemocratização] cada governo adotou medidas contra ou a favor da reforma agrária. Nunca houve uma iniciativa de estado ou governo em defesa da reforma agrária. Todas as políticas e planos já criados foram resultado da pressão dos movimentos sociais e camponeses. Esses números atuais de 1 milhão de famílias em 90 milhões de hectares de terras que foram destinadas à reforma agrária, [são terras] não necessariamente desapropriadas, porque muitas eram terras públicas, com uma parte sendo negociada e os latifundiários receberam pela terra. No Brasil, a reforma agrária não é de expropriação, mas de negociação. E isso é mérito da luta popular, que avança e recua conforma a conjuntura, que se transforma e que contribui com alimentação saudável. Nós temos a reforma agrária possível derivada da luta dos sem-terra e dos governos progressistas. Quando temos um governo conservador, o processo para completamente. Esse é um novo momento de reforma agrária. O que eu quero enfatizar aqui é que essa é uma política do futuro, porque o modelo do agronegócio é predatório, que gera alimento ultraprocessado, com desmatamento, com uso de veneno, contaminação e problemas para a saúde ambiental e saúde pública.

Lote no assentamento Padre Ezequiel. (Foto: Danilo Ramos/De Olho nos Ruralistas)

Sobre essa correlação de forças, o governo Lula não se dispõe a enfrentar o agronegócio. Faz uma distinção do agronegócio “malvado”, mas não está disposto a enfrentar uma bancada ruralista com 300 deputados. Então, como implementar uma reforma agrária nesse contexto? Será que as medidas anunciadas, ao lado da primeira-dama, não foram mais identitárias do que as realmente necessárias? Temos uma configuração de ministérios alinhadas a uma demanda internacional, de defesa do ambiente e dos povos originários, com Marina Silva e Sônia Guajajara, e atendendo a uma parte da esquerda. As velhas matrizes econômicas foram deixadas de lado nesse anúncio?

Eu entendo que o que a bancada ruralista representa é um reflexo da hegemonia do agronegócio no mundo. Ou seja, essa conjuntura de formação da bancada ruralista no Brasil se repete em outros países. Os governos são reféns do agronegócio. O Lula não vai definir quem é o ministro no Mapa, é o agronegócio quem define. A bancada ruralista é fascista, mas ele vai ter que negociar, porque parte dela faz parte da bancada de apoio do governo. É uma conjuntura que pode se romper a qualquer momento e que pode derrubar o presidente da República. É um problema seríssimo com o qual o governo tem que saber lidar. A situação da base de apoio é quase intratável, mas ela representa a hegemonia do poder. O papel do PT e do presidente é o de tentar negociar a outra parte que está excluída do processo [de poder]. Aí entra a questão identitária, os sem-terra, os indígenas, as mulheres, os negros e negras, todas as pessoas que estão fora desse processo hegemônico. O governo progressista tenta transferir uma parte dos recursos para atender as demandas dessa população excluída. E quanto mais esse povo excluído se organiza, mais ele disputa o Estado e seus recursos e fortalece o governo. E isso vem acontecendo. O governo Lula de 2003 foi a primeira experiência de um governo popular nesse país. Talvez estejamos vivendo agora a quarta experiência. Não sabemos se essa tendência será mantida ou nas próximas eleições será eleito um fascista. O mundo todo tem alternado os ciclos entre governos progressistas e conservadores, que podem ou não chegar ao fascismo, mas entre os progressistas, não passam da centro-esquerda. Não há avanço para um governo revolucionário porque não há conjuntura para isso. Por isso é fundamental construir políticas públicas para que essas populações possam alcançar melhor qualidade de vida, que possam tentar mudar o mundo e construir espaços para tentar romper com essa hegemonia, que se enfraquece pelo enfrentamento e pela sua insustentabilidade. Os contra-hegemônicos conseguem aos poucos criar estruturas para minar esse poder.

Lula e a primeira-dama, Janja, apresentam 7 medidas de retomada da reforma agrária na Marcha das Margaridas. (Foto: Divulgação/Agência Brasil)

Como avalia ponto-a-ponto esse programa, junto com o anúncio do Plano Safra 2023/2024, com cifras recordes (R$ 71,6 bilhões ao crédito rural para agricultura familiar), retomada da reforma agrária, com prioridade para famílias comandadas por mulheres e previsão de 40 mil famílias regularizadas; Programa Quintais Produtivos das Mulheres Rurais, com meta de 90 mil até 2026; Bolsa Verde, com auxílio a famílias de baixa renda vivendo em áreas a serem protegidas ambientalmente; Programa Nacional de Cidadania e Bem Viver para Mulheres Rurais; Lavanderias Coletivas, instalação de nove unidades em assentamentos em três estados do Nordeste; Criação da Comissão Nacional de Enfrentamento à Violência no Campo; Pacto Nacional de Prevenção aos Feminicídios?

Sabe qual é a grande vantagem dessas políticas? Elas existirem. Quem proporia isso do poder hegemônico? Ninguém. Quem propõe essas políticas são os próprios sujeitos, ocupando um espaço político fundamental em Brasília e construindo essas experiências. Quatro anos de desenvolvimento dessas políticas constroem novas experiências, transforma novos espaços, supera novos problemas. É por aí que é possível avançar, disputar o poder. As mulheres cantam isso há décadas. A ação das mulheres na reforma agrária é o que faz avançar essa luta. A reforma agrária não acontece sem elas, mas elas nunca foram beneficiárias de políticas como essas, que fazem parte desse território onde a vida delas acontece. Essas são sementes da transformação. Mas eu esperava nessa lista a inclusão dos mercados, para que essas mulheres possam levar a produção diretamente para aquelas que consomem. Em relação à verba, podemos avaliar que foram valores muito superiores para o agronegócio em comparação com a agricultura familiar, mas é o que a correlação de forças está permitindo. E essas forças estão nascendo, enquanto o modelo hegemônico está morrendo, essa é a diferença.

Em relação ao poder da bancada ruralista e do agronegócio face às escolhas do governo, se o governo não “obedece”, não escolhe um ministro do Mapa, por exemplo, o que acontece? O risco maior é o impeachment?

Ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro em evento na Frente Parlamentar da Agropecuária. (Foto: FPA)

Se o governo indicar alguém que esse poder aceita, tudo bem. Mas vai colocar um Paulo Teixeira (ministro do Desenvolvimento Agrário) no Mapa e vê o que acontece? Ele é ministro do MDA e não do Ministério da Agricultura porque não faz parte desse projeto político (hegemônico). Alguns ministérios são estratégicos para ceder e ter o apoio (parlamentar). Desde o primeiro governo Lula em 2003 o agronegócio “indica” o ministro. Foi o caso de Roberto Rodrigues. As corporações já estão fazendo essas negociações desde antes das eleições, declarando apoio, “mas quem vai indicar o ministro da agricultura somos nós”. Para eles, não importa quem é o governo, se é o (Gustavo) Petro (presidente da Colômbia), (Alberto) Fernández (Argentina) ou o Lula, desde que não mexam nas estruturas que controlam o capitalismo. Só avançamos por esse conjunto de políticas como essas citadas da reforma agrária. O poder progressista abre uma brecha para avançar um pouco, mas sob o controle do poder hegemônico. Se o avanço é maior do que o que eles permitem, eles usarão sua força para derrubar o governo.

O avanço da extrema direita e o governo Bolsonaro são fruto de uma percepção de que essas políticas populares permitem algum avanço?

Por que eles anularam o Pronera (Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária)? Por que associaram o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) com a produção de commodities e não com agroecologia no governo anterior? Porque o modelo da agroecologia bate de frente com o agronegócio. O Pronera parte de uma educação crítica, que vai levar ao enfrentamento com o agronegócio. Qualquer tipo de política pública que questione a hegemonia é anulada ou destruída, se possível. Ou invertem o processo, como fazer que a agricultura familiar sirva ao agronegócio.

Sobre a CPI do MST, você acompanhou as sessões? Como avaliou essa CPI?

Uma das avaliações é a estupidez da bancada ruralista. Chega a ser cômica. Eles estão tão confortáveis com a zona hegemônica que fazem perguntas que permitem respostas que desmontam tudo o que eles afirmam. Eles realmente acreditam que o MST é um movimento criminoso e aí eles perdem a noção do que é o conhecimento de fato. Durante toda CPI o que se demonstrou foi a existência de um movimento (MST) que contribui com a agricultura e com o desenvolvimento econômico do país.

A CPI teve algum poder de barganha junto ao governo Lula?

Acho que num primeiro momento eles consideraram que, como MST era um parceiro forte do governo Lula, se conseguissem desbancar o movimento, fragilizariam o governo. Mas não conseguiram. Eles iriam barganhar de qualquer maneira.

A oposição conseguiu convocar muitos depoentes, ao contrário da bancada do governo. Acha que o depoimento do (João Pedro) Stédile (líder do MST) influenciou no andamento da CPI?

João Pedro Stédile durante a CPI do MST. (Foto: MST)

A participação do Stédile foi a mais importante. De todas as participações que eu assisti, o conteúdo mais elaborado veio da defesa (do movimento), não da acusação. A acusação não conseguiu atingir seu objetivo. E o Stédile colocou uma pá de cal na CPI. Ele não ficou encurralado em nenhuma questão.

Não houve uma terceirização da bancada ruralista para os bolsonaristas assumirem a linha de frente da CPI?

A bancada ruralista não é homogênea. Há tendências mais esclarecidas, que conhecem o papel do MST, como Kátia Abreu, Roberto Rodrigues, o próprio ministro da Agricultura (Carlos Fávaro). O que ficou claro é que participou da CPI a parte mais conservadora da bancada e os bolsominions. Muitos nem sequer são ruralistas. Alguns representam, mas outros apenas se identificam, votam com o setor. Os bolsominions eram os menos preparados. Ou tiveram uma assessoria ignorante, ou não tiveram assessoria. Apesar de ser poderosa, a bancada tem diversos pontos fracos.

Considerando que temos um governo de centro-esquerda, como você está vendo a situação da violência no campo? Por exemplo, o assassinato da líder quilombola Mãe Bernadete (Maria Bernadete Pacífico), entre outros. Você vê uma perspectiva de combate à essa violência?

Se nós pegarmos todo o contexto de armamento do governo Bolsonaro, e agora estão se armando mais porque têm mais medo, as evidências apontam para um aumento, e não para a diminuição da violência. Agora, a maior parte dos assassinatos que acontecem decorrem de uma milícia que está organizada para isso no Brasil inteiro. O problema maior é que essas milícias têm o apoio da polícia. Precisaria de um trabalho muito bem-feito de criação de uma força não identificada com a bancada ruralista nem com a milícia, que pudesse apurar os crimes e capturar os criminosos de fato. Um exemplo. Eu aqui no Pontal (do Paranapanema) já fui ameaçado de morte várias vezes. Todos os boletins de ocorrência que eu fiz desapareceram. A segurança do país é uma segurança que ameaça. Esse governo poderia criar uma polícia agrária. Por exemplo, com a volta do governo Lula, os organismos de combate ao trabalho escravo, desmontados no governo Bolsonaro, voltaram a funcionar. Precisamos de instituições que não concordem com o assassinato de quilombolas, população de rua, negros, pobres.

Seria possível desmilitarizar as forças policiais?

A estrutura da corporação existe pela lógica da militarização. Desmilitarizar seria criar uma outra polícia e este seria um processo de longo prazo.