Aromas de Março
Nenhuma a menos
Por Jade Percassi
Da Página do MST
Foram me chamar… Eu estou aqui, o que é que há?”
— Dona Ivone Lara
Oh, abre alas, que eu quero passar!”
— Chiquinha Gonzaga
Um homem não me define, minha casa não me define, minha carne não me define, eu sou meu próprio lar…“
— Francisco El Hombre
Um dia desses, recebemos a visita ilustre de uma companheira que tem contribuído muito para sistematizar e propagar as ideias mais complexas sobre as relações entre o desenvolvimento do capitalismo e as desigualdades de gênero. Silvia Federici, autora dos livros O Calibã e a Bruxa e Além da pele, nos leva a pensar que na sociedade capitalista, o corpo é para as mulheres o que a fábrica foi para os homens trabalhadores assalariados: o principal terreno de sua exploração e resistência, na mesma medida em que o corpo feminino foi apropriado pelo Estado, pela Igreja e pelos homens, forçado a funcionar como um meio para a reprodução e a acumulação de trabalho.
Em tempos de crises múltiplas, não é de se assombrar que, para assegurar sua salvação, o capitalismo retome formas tão incivilizadas quanto as de seu início, como expropriação de terras e bens naturais, superexploração do trabalho, pauperização massiva e criminalização das pessoas “sem lugar” na sociedade; além da intensificação da violência contra as mulheres – inclusive com um retorno da caça às bruxas de nossos dias.
Quando foi que você pensou duas vezes antes de sair com determinada roupa, ou voltou pra casa para trocar, não porque alguém proibiu ou criticou a estampa, o comprimento ou o decote, mas porque você mesma não se sentiu à vontade naquele figurino? Qual foi o primeiro olhar, assobio ou palavra inapropriada que a fez sentir desconfortável na presença de um ou mais homens? Consegue se lembrar como foi que o arrepio de sentir o toque da mão de outra pessoa em sua pele deixou de ser prazeroso, transformando-se na contração dos músculos e no temor por sua integridade?
A repressão sexual, essa nossa velha conhecida, perniciosamente se expande para dentro de nós, muito mais presente do que os gritos e agressões a que muitas fomos expostas ou submetidas. Ela se reveste de obediência, bom comportamento, vergonha, adequação, subserviência, cerceando o desejo e a vontade de sentir prazer, como num filme de terror – em que se tudo estiver calmo demais, é porque em breve alguma tragédia vai acontecer.
Não podemos, nem devemos, ceder à tentação da ingenuidade de acreditar que, por decreto ou por repetição infinita do bordão “meu corpo, minhas regras”, sairemos às ruas da forma que quisermos e nada nem ninguém irá nos impedir. O medo existe porque as ameaças são reais, e as taxas crescentes de violência e de feminicídio estão aí, feito facas amoladas apontadas para cada uma de nós – para algumas, mais do que para outras, já que as vítimas têm cor e endereço.
Mas é inegável o avanço do protagonismo das mulheres no samba e no carnaval, de quando Dona Ciata e as tias baianas garantiam os territórios na invisibilidade de suas cozinhas ao processo de participação nos cortejos de cordões e blocos, chegando às campanhas massivas do #NãoÉNão.
Ao longo do século, muito além da ambiguidade entre a sensualidade e a hipersensualização e objetificação dos corpos das lindíssimas passistas, foram conquistados espaços dentro e fora das escolas de samba, tocando instrumentos, concebendo e executando alegorias, conduzindo harmonias, compondo e interpretando enredos. A cada ano, cresce o número de blocos comandados por mulheres, em que canções, coreografias e estandartes veiculam críticas e questionamentos ao sexismo e ao patriarcado, campanhas de conscientização a respeito dos direitos das mulheres, sobretudo o direito de seus corpos, sem perder a dimensão da diversão.
Diversão sim, porque a alegria é uma trincheira de resistência! E porque nossos corpos são os territórios onde semeamos e cultivamos a vontade de viver.
Não precisa de maquiagem, de glitter ou purpurina. Não precisa nem de fantasia, se não tiver ou não quiser. Mas não deixemos passar a chance de nos reconectar com essa força criativa, que é também uma forma de poder. Se não mudarmos a nossa vida cotidiana, não poderemos sustentar a luta. Se é verdade que saúde é a capacidade de lutar contra tudo o que nos oprime, é nosso dever cuidarmos de nós e de todas; precisamos estar bem para lutar melhor. Então, que seja este um exercício de liberdade:
Respirar fundo, até sentir as costelas se abrirem, e soltar o ar com som e movimento. Dançar, com ou sem música, rompendo as amarras que reprimem nossos braços, pernas e quadris. Cantar, com ou sem letra, projetando nossas vozes em todas as tonalidades. Lembrar de musculaturas e articulações esquecidas, os quintais e fronteiras que também nos habitam. Olhar nos olhos de quem está perto, fechar os olhos para fazer chegar o pensamento a quem está longe. Tocar as mãos de quem se queira bem, convidar a brincar. Experimentar a mira com confete e serpentina, e escolher uma chita bem bonita – para quando o carnaval passar.
*Editado por Fernanda Alcântara