Solidariedade Real
É preciso “cultivar a solidariedade real e radical entre os povos”, defende líder quilombola
Por Franciele Rodrigues/Portal Verdade
A necessidade de fabular futuros e mundos outros, para além da lógica capitalista e suas múltiplas opressões, foi o tema central da mesa “Batalhas de ideias e construção de hegemonia cultural: Solidariedade e Internacionalismo dos povos”, que ocorreu na tarde desta quinta-feira (22), integrando o primeiro dia da programação da Jornada Latino-Americana e Caribenha de Integração dos Povos.
O evento, que ocorre até o próximo sábado (24) – quando acontece o retorno das delegações – em Foz do Iguaçu, reúne aproximadamente 2 mil pessoas, entre lideranças sindicais, representantes de movimentos sociais e autoridades políticas do Sul Global.
Ayan N’goma Muzunguê, membro da Comunidade Kilombola Morada da Paz, localizada às margens da BR-386 à altura do município de Triunfo, no Rio Grande do Sul, foi um dos palestrantes. Ele destaca a importância do encontro para a conquista da soberania e autodeterminação das populações latino-americanas e caribenhas. De acordo com Muzunguê, não há como criarmos outros modos de vida, mais sustentáveis e igualitários, sem refletirmos sobre as lógicas exploratórias, racistas, sexistas, xenófobas e antropocêntricas que estruturam o cotidiano.
“Nós estamos pensando dentro da Jornada Latino-Americana e Caribenha de Integração dos Povos em alternativas para o futuro, mas não tem como pensar sobre ele sem refletir sobre como foi construída a situação que nos encontramos hoje. Essa hegemonia cultural do capital é muito importante destacar porque criou-se uma cultura, mentalidade disseminada entre as populações latino-americanas que é necessário este capital, é o que gira tudo”, diz.
A liderança enfatiza a necessidade da luta e da solidariedade entre os povos: “se não a gente vai morrer e seremos marcados por pessoas que desistiram da luta. Precisamos reafirmar esta luta para que a gente possa morrer com dignidade. Um debate muito importante, para que a gente chegasse a esse ponto que é cultivar a solidariedade real e radical entre os povos”, defende Muzunguê.
O quilombola compartilhou a experiência de sua comunidade cuja organização está orientada pelo bem-viver em oposição à lógica mercantilista de acumulação do capital. “Na Comunidade Kilombola Morada da Paz, sabemos que as coisas têm muito valor, mas não tem preço e essa lógica quebra o capital. Então quando a gente pensa a crise de valores, não só os valores do capital, mas quais são os valores que nós enquanto sociedade colocamos nas mesas, nas rodas, na educação, para que a gente possa quebrar com este sistema capitalista. Se a gente não discutir a lógica, a essência, vamos continuar disseminando essa ideologia”, adverte.
Educação para decolonizar imaginários
Durante as falas, os participantes destacaram a urgência de tomar a educação como um campo de disputa, o que de acordo com eles, já tem sido explorado por segmentos da extrema-direita. Um dos principais resultados, pontua Daiane Araújo, vice-presidenta da UNE (União Nacional dos Estudantes), membra do Levante Popular da Juventude, é o aumento das violências.
“Acho que a cena que vivemos hoje na política é muito consequência do avanço que vivemos da extrema-direita no mundo todo, então, temos o avanço da violência de gênero, racismo, xenofobia. Fazer o debate sobre a construção de novos valores sob a perspectiva de contra hegemonia ao sistema capitalista é primordial para os rumos que vamos construir e para unidade, não só programática, mas de ação, de lutas das organizações populares”, avalia.
Ainda, Muzunguê compartilhou a experiência da Ipalaiê Escola de Desenvolvimento Infantil presente em sua comunidade. Segundo o conferencista, no espaço são criadas formas de contato afetivo com a terra, além do desenvolvimento de ações antirracistas e práticas que valorizam a ancestralidade e a sabedoria popular.
“A educação foi utilizada como arma para gente chegar aonde está hoje, para disseminar essa ideia, didática que é para integrar as pessoas dentro do sistema capitalista, para passar no vestibular, fazer uma universidade, sair dali exercendo uma profissão, lutando por uma aposentadoria que hoje está cada vez mais difícil conseguir. Só que esta lógica é muito aprisionante, quando a gente rompe de trabalhar para o capitalismo, e passa a trabalhar pela vivência, pela memória e para construção de um futuro, precisamos entender que a educação tem que ser revolucionária”, observa.
“Precisamos quebrar estas didáticas que foram utilizadas até hoje, entendendo a educação como espaço de disputa de ideologia, de luta, porque se não ocuparmos os espaços educacionais do mundo inteiro, não vamos construir um futuro já que as outras gerações estão ali. Se eles continuarem sob esta lógica capitalista, eles não vão ter ferramentas para lutar”, acrescenta.
A Comunidade Morada da Paz foi reconhecida como território quilombola pelo governo federal em 2016, durante a gestão da presidenta Dilma Rousseff (PT).