Indústria de Agrotóxicos

Veneno de terno, gravata e jaleco: os alvos do lobby da indústria de agrotóxicos

O lobby da indústria de agrotóxicos vão dos campos às mesas e das escolas às universidades, atingindo os poderes judiciário, legislativo e executivo
Foto: Bárbara Cruz / Greenpeace

Por Susana Prizendt
De Mídia Ninja

Cerca de seiscentas páginas: esse é o espaço ocupado pelos estudos científicos que compõem o Dossiê Abrasco – Um alerta sobre os impactos dos agrotóxicos na saúde. Trata-se de uma compilação de dimensões hercúleas, organizada pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva, com centenas de pesquisas feitas em várias regiões do país por integrantes de entidades consagradas no setor acadêmico, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Não, não estamos falando de achismos.

Lançado em 2012 (com um complemento posterior, publicado em 2015), a obra – uma leitura fundamental para todos nós que lutamos por um modo de cultivar que não destrói a vida -, não deixa espaço para dúvidas em relação à gravidade da situação que enfrentamos no país. Estamos sendo envenenados, seja através dos alimentos que chegam às nossas mesas, da água que sai de nossas torneiras e até do ar que respiramos, sobretudo no caso de quem vive em áreas próximas às grandes monoculturas, com seus aviões pulverizadores a cruzarem os céus.

Infelizmente, a expressão “chuva de veneno” não é uma metáfora. Também não é somente uma alegoria no título de um documentário dramático que retrata uma escola atingida pelo conteúdo tóxico de uma pulverização aérea, em 2013. Embora o caso retratado seja especialmente trágico, vitimando crianças – que precisaram de socorro hospitalar na época e que, passados tantos anos, ainda sofrem consequências do ocorrido – ele está longe de ser o único. Os despejos de cargas tóxicas por aviões do agronegócio sobre os territórios brasileiros vêm sendo usados até mesmo como uma arma contra as populações campesinas, indígenas e quilombolas, já que, para expulsar os povos dos campos, das florestas e das águas de suas moradas ancestrais, a máfia do veneno recorre até a guerra química, aproveitando a facilidade com que se consegue, em nosso país, substâncias altamente agressivas, muitas delas cancerígenas e proibidas em países do norte global.

Para quem acha que carreguei demais, ao usar a expressão “máfia do veneno”, sinto informar que a união das grandes corporações transnacionais, produtoras de agrotóxicos e sementes transgênicas, com uma elite rural brasileira altamente reacionária, formada na esteira da colonização escravista, deu origem a uma organização extremamente poderosa, que opera sem nenhuma preocupação com qualquer parâmetro ético e, muitas vezes, até mesmo com parâmetros legais.

Se temos hoje um parlamento dominado por setores que agem para “passar a boiada”, compondo o que é chamado de “bancada do boi” (embora eu prefira deixar o boi fora dessa e chamá-la de “bancada do trator”, “tratorando” nossos direitos mais básicos), é graças à rede mafiosa que se formou para sustentar tamanha desproporção representativa. Nossa população teria que ser formada por 117 milhões de fazendeiros para que a atual Câmara dos Deputados fosse compatível com ela, já que esta possui 58% das cadeiras na casa. No caso do Senado, o número seria semelhante. É óbvio que são distorções gigantescas da chamada “democracia representativa”, já que não há representatividade de fato nos espaços legislativos que estão aí.

A pergunta chave é: por que? A resposta envolve um termo muito mencionado no mundo do ativismo socioambiental, mas que segue ausente no vocabulário do povão – o lobby.

Quem banca a bancada do veneno

Magno Borges /Agência Murala

Estrangeirismo de difícil tradução na língua portuguesa, a palavra lobby é comum nos bastidores de espaços de decisão, como Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas, gabinetes de prefeitos e governadores e agências públicas reguladoras. A tentativa de influenciar no que será decidido pelas pessoas responsáveis pela condução das políticas públicas a nível local, regional ou nacional é um ato inerente ao campo da política e é mais do que legítimo que grupos que militam por uma determinada causa se organizem para que suas pautas sejam atendidas. Se você é sensível à causa animal e tem disponibilidade para unir um conjunto de pessoas que também têm essa sensibilidade e procurar um parlamentar para reivindicar o fim da criação de galinhas em gaiolas ou a proibição do uso de peles de animais selvagens na moda, tem todo o direito de fazer isso.

De fato, quando saímos da esfera da democracia representativa e entramos na esfera da democracia participativa, é natural que organizações da sociedade civil frequentem espaços públicos de decisão e atuem vibrantemente para viabilizar o que acreditam ser melhor para a coletividade. Nós, ativistas da Agroecologia, temos feito isso constantemente e foi graças a esse protagonismo que pudemos avançar até hoje, com conquistas como a Lei da Alimentação Escolar Orgânica no município de São Paulo e a Lei pela proibição da pulverização aérea no estado do Ceará, conhecida como Lei Zé Maria do Tomé, em homenagem ao líder comunitário que, em 2010, foi assassinado na Chapada do Apodi. Então, podemos falar com a boca cheia que, sim, fizemos, fazemos e faremos lobby enquanto houver algo pelo que lutar!

O problema é que, no caso das organizações que representam setores como a indústria de agrotóxicos e de transgênicos, há um elemento profundamente desequilibrante: o poder econômico descomunal. Eu e você chegamos até a fazer vaquinha para imprimir os materiais que levamos a vereadores e vereadoras da nossa cidade para tentar convencê-los a agir em prol da nossa causa, não é? Já no mundo corporativo, a escala de valores é outra e pode chegar à casa dos milhões de dólares. Departamentos inteiros de advogados, publicitários e até cientistas financiados por grandes empresas trabalham ininterruptamente para que os interesses de seus “patrões” prevaleçam em decisões tomadas na esfera pública.

Sabe aquela desproporção de que falamos em relação ao número de parlamentares que fazem parte da “bancada do trator”? Pois é. Nada é por acaso. Eles só foram eleitos desse modo desproporcional à população do país porque têm uma potente estrutura econômica “bancando” suas bancadas e carreiras políticas. Além disso, boa parte deles é – ou passa a ser quando entra nos parlamentos – dona de latifúndios.

No livro O Partido da Terra, o jornalista Alceu Castilho apresenta um panorama das propriedades territoriais de deputados e senadores e traz números chocantes, mostrando que o chamado “coronelismo” segue imperando na política nacional. Portanto, como já deu para perceber, ao promoverem mudanças nas leis que afrouxam as regras de proteção social e ambiental, eles beneficiam-se duplamente. De um lado, ganham mais liberdade para explorar suas próprias terras e seus trabalhadores. De outro, contam com as benesses econômicas concedidas pelos poderosas empresas de agrotóxicos, fertilizantes químicos e organismos geneticamente modificados, agradecidas por se livrarem de leis mais restritivas.

A arte da persuasão

Foto: Who is Danny / Shutterstock.com

Podemos afirmar que o que não faltam são comprovações de que o modelo produtivo praticado pelo Agronegócio é totalmente insustentável. Ele não preserva a natureza. Ele não traz riqueza para a população brasileira. Ele não mata a fome. Os dados estão aí e podem ser conferidos em estudos, como O Agro não é tech, o Agro não é pop e muito menos tudo, produzido pela Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA) e pela FES Brasil; em artigos, como As top 5 mentiras do agronegócio, disponibilizado pelo Greenpeace e em relatórios, como o Atlas dos Agrotóxicos – Fatos e dados do uso dessas substâncias na agricultura, lançado há pouco tempo pela Fundação Heinrich Böll.

Sendo assim, vale nos perguntarmos: como é que a maior parte da sociedade acredita que esse setor é o motor da economia, que produz de forma sustentável, que alimenta não só o Brasil, mas boa parte do globo terrestre – chegando ao absurdo de propagar que cerca de um bilhão de pessoas no planeta são nutridas por ele? A resposta está, mais uma vez, na “força da grana que ergue e destrói coisas belas”, como canta Caetano Veloso.

Sim, uma carteira farta pode fabricar “verdades”. Está aí o mundo do marketing para provar como isso pode ser feito. Fumar já foi considerado benéfico à saúde graças a essa capacidade de distorcer a realidade. Com vultuosos maços de dólares destinados a cientistas, governos e marqueteiros, foi possível popularizar os maços de cigarros até em regiões remotas, como a Oceania. E a receita vem sendo seguida com muito afinco pelo agronegócio. Quanto você acha que custa cada segundo de anúncio na emissora de TV mais assistida do país? Não, nossas vaquinhas ativistas não dão conta de entrar nesse páreo.

Imagens de fazendas exuberantes, altamente tecnológicas, com trabalhadores sorridentes e rebanhos saudáveis, acompanhadas de números muito bem selecionados para não mostrar realmente tudo o que eles representam – deixando meticulosamente de lado as chamadas “externalidades” -, surgem diante dos olhos dos espectadores nos horários de maior audiência televisiva. Como não se orgulhar desse Agro Pop?

Por outro lado, quantas pessoas sabem dizer que nosso país permite a utilização de vários agrotóxicos que são proibidos na União Europeia devido aos danos que causam em seres humanos e na natureza? Que os índices de abortos espontâneos e malformações fetais são muito maiores em regiões de grandes monoculturas? Que polinizadores essenciais ao cultivo de um imenso conjunto de espécies comestíveis estão sendo dizimados pelos venenos agrícolas, como é o caso das abelhas? Que nosso país utiliza o mesmo tanto desses biocidas que as duas maiores potências globais, EUA e China, usam juntos e a média por hectare é de cerca de 5 vezes mais do que é usado em cada um desses gigantes territoriais? Dossiê Abrasco, o que é Dossiê Abrasco? Aliás, o que é mesmo que significa a palavra “dossiê”? É mais fácil as pessoas recitarem dados detalhados sobre os artistas famosos do momento ou frases inteiras ditas pelos pastores nas igrejas do que compreenderem termos como “Dossiê Abrasco” ou “Atlas dos Agrotóxicos”.

A necessidade de mostrar para a população que o Agro é tóxico foi um dos motivos da criação da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, em 7 de abril de 2011. A data, Dia Mundial da Saúde, não foi mero acaso, já que o envenenamento a que nosso povo está sendo submetido tem feito explodirem os casos de distúrbios neurológicos, endócrinos e reprodutivos – e até de câncer, inclusive junto ao público infantil. Ainda em 2013, escrevi um artigo para o Relatório dos Direitos Humanos no Brasil que se chamava “O Envenenamento da Infância”, trazendo um alerta para o aumento da ocorrência de carcinomas em crianças, o que se mostrou relacionado, com bem demonstrou a Dra Silvia Brandalise, à exposição a determinados agrotóxicos, inclusive aos inseticidas que são usados para controlar mosquitos. Nos 10 anos que se passaram desde que escrevi o artigo, pouco se falou na mídia comercial sobre essa tragédia, mostrando como o interesse de seus veículos pelos valores que recebem dos anunciantes é maior do que pela saúde das meninas e meninos que representam o futuro do país. Mas voltemos ao tempo da criação da Campanha…

Um dos instrumentos mais poderosos usados por ela em seus primeiros meses de vida foi o filme O Veneno está na Mesa, dirigido por Silvio Tendler. Me lembro muito bem como era a reação das pessoas quando fazíamos sessões nos mais diferentes lugares, sempre acompanhadas de debates, através do nosso comitê paulista. Realmente, o poder que os vídeos têm de impactar nossa reação é imenso e seria muito melhor se eles pudessem ser mais usados para mostrar a realidade e como ela pode ser transformada rumo ao equilíbrio, ao invés de virar uma ferramenta de lavagem cerebral, como a que é feita pelos marqueteiros do Agro que é Tóxico.

Desde as sementes – inclusive de gente

Ilustração: Lfier

Se a política e a mídia, como já vimos, são massivamente usadas pela máfia do veneno como instrumentos de perpetuação e ampliação de seus poderes, eles não são os únicos. O trabalho de envenenamento cognitivo, assim como ocorre com o envenenamento biológico, começa pelas sementes.

Um dos motivos pelos quais não adianta lavar ou descascar os alimentos cultivados com agrotóxicos é porque a contaminação deles é sistêmica. Isso significa que a planta toda é atingida por essas substâncias tóxicas e remover a superfície de seus frutos pode até aliviar um pouco a carga, mas não vai resolver o problema. De fato, o (des)tratamento químico delas se dá desde as sementes e segue durante o tempo em que viverem. Isso vale ainda mais no caso das que têm as sementes geneticamente modificadas, já que, muitas vezes, elas “ganham” até a capacidade de produzir por si mesmas uma toxina contra futuras “pragas”, conceito que, vale sempre reforçar, não existe no modelo agroecológico de cultivo.

Assim, se você age sobre uma semente, tem grandes chances de interferir na vida de um indivíduo de uma espécie vegetal por toda a sua existência. Podemos dizer que isso pode valer para a nossa espécie também. A indústria alimentícia é campeã em direcionar sua publicidade para que ela atinja com precisão nossas sementes de gente – as crianças -, no intuito de fazer com que, desde bem pequenas, elas criem hábitos favoráveis à lucratividade de suas empresas. Acho que nem é preciso dizer que tais hábitos são diametralmente opostos aos que seriam favoráveis à saúde. Não é à toa que os anúncios publicitários de produtos ultraprocessados utilizam personagens e outros recursos lúdicos para atrair a atenção dos pequenos – o que é complementado por um lobby altamente agressivo na esfera política, como o que têm dificultado a tributação de produtos nada saudáveis, como os refrigerantes.

É essa mesma rede corporativa que assedia o ensino fundamental e chega a distribuir cartilhas “educativas” às escolas públicas e privadas, disseminando conteúdos que valorizam seus próprios produtos e mascaram os danos que eles podem causar. No caso da indústria venenosa, isso também vem acontecendo, inclusive através de movimentos “sociais” organizados pelo Agronegócio, como o Mães do Agro, que coordena uma ação intitulada De Olho no Material Escolar. Desde muito cedo, portanto, a população é levada a acreditar que o modelo agroalimentar convencional é benéfico tanto no nível individual como no coletivo.

Das creches às universidades, o assédio vai se refinando e sabemos que, em cursos de graduação, como o de agronomia, os estudantes são levados a acreditar que precisam aprender a “receitar” (acho a palavra imprópria para essa ação, já que agrovenenos não são remédios) todos os tipos de inseticidas, herbicidas, fungicidas e biocidas sintéticos em geral, para poderem atuar profissionalmente. Esse é um dos motivos em termos tanta dificuldade para levar assistência técnica adequada a quem não quer plantar dentro do modelo convencional envenenado e está em busca de uma forma agroecológica de cultivo. Enquanto as faculdades de ciências rurais forem fábricas de receitadores de agrotóxicos, as indústrias que fabricam essas substâncias vão seguir ampliando seus lucros e deixando um rastro de sofrimento e destruição no país.

Jaleco envenenado

Foto: Freepik

Se o lobby veneneiro atinge em cheio os profissionais que vão orientar agricultores e agricultoras, ele também vem sendo dirigido a setores que atuam em uma outra ponta do sistema agroalimentar. Estamos deixando a esfera dos campos e entrando na esfera das mesas. Como mostra matéria recente feita por Mariana Costa para O Joio e o Trigo, nutricionistas brasileiros foram considerados um alvo estratégico para o departamento marqueteiro-científico de empresas líderes no setor, como a Bayer.

Pressionada pelo efeito do aumento das preocupações da sociedade mundial em relação à crise ambiental, a gigante agroquímica investiu em publicações digitais destinadas a estudantes de nutrição e profissionais já graduados em nossa Terra Brasilis. Alega que, aqui, o conhecimento sobre agricultura nos cursos de formação da área é deficiente – o que, infelizmente, é mesmo uma realidade. Nestes anos de militância na Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, temos testemunhado uma falta expressiva da noção de como funciona o mundo rural tanto em faculdades quanto em hospitais e consultórios. Isso se traduz em uma crença de que alimentos cultivados de forma convencional são seguros e adequados para a população, o que está a léguas de ser verdadeiro.

De fato, nós, ativistas por uma alimentação saudável, também achamos que é necessário preencher essa lacuna tão problemática, já que se trata da falta de saber por parte justamente de quem vai recomendar o que as pessoas devem ou não comer. Se profissionais da área da saúde, como é o caso de nutricionistas, dizem para alguém que ele não deve ter receio de ingerir alimentos cultivados com agrotóxicos – quando sabemos que a verdade é que há um conjunto de pesquisas científicas sérias que provam o contrário -, a tendência é que essa pessoa confie na orientação recebida, já que veio da parte de quem ela considera que tem autoridade para falar sobre o assunto.

Sabemos que faz toda a diferença quando alguém vestindo um jaleco em um consultório recomenda que a gente faça ou não faça algo, não é? Supostamente, ele ou ela estudaram exatamente para nos informarem do que é correto fazer. Só que, nas publicações que a Bayer produziu para evangelizar estudantes e profissionais de nutrição, o termo agrotóxico, que é o correto de acordo com a legislação nacional, virou “protetor de cultivos”; assim como seus níveis de permissão de uso no Brasil, muitas vezes milhares de vezes maiores do que na Europa e totalmente incompatíveis com a manutenção da saúde, foram enquadrados como seguros, já que todas as substâncias autorizadas no país teriam passado por uma rígida avaliação, de acordo com o conteúdo veiculado.

O resultado é que a doutrina da Revolução Verde, que diz que somente com a adoção de imensas monoculturas envenenadas e mecanizadas podemos nutrir o mundo e garantir a segurança alimentar, vai seguir reinando na cabeça de muita gente. Da colonização da mente ao cotidiano no prato, alimentos com agrotóxicos seguirão sendo consumidos como se não fossem responsáveis por inúmeras doenças e por desequilíbrios ambientais dramáticos. Ponto para o lobby do Agro.

Que os vetos não caiam

Mais de 2500 novos agrotóxicos foram aprovados nos últimos 5 anos no Brasil. Isso representa cerca de metade do total das substâncias permitidas no país. Um salto gigantesco em relação ao que foi aprovado nos governos Lula e Dilma 1 e 2. O ponto em que se iniciou essa aceleração pode ser facilmente localizado: o golpe de 2016. Uma das primeiras ações realizadas por Michel Temer, ao sentar na cadeira de presidente do país, foi autorizar a pulverização aérea nas cidades com o objetivo de combater os mosquitos transmissores de doenças como a dengue. E, em sua gestão, assistimos, pela primeira vez, à aprovação de mais de 400 novos agrotóxicos em um ano.

Durante os quatro anos do governo Bolsonaro, a situação só piorou. Mais de 500 novos venenos liberados anualmente, acompanhados de um boicote sistemático às políticas que favorecem a Agricultura Familiar e a Agroecologia. Era a consolidação do que podemos chamar de Agrofascismo, o reinado absoluto da bancada do trator, responsável pela proposição de medidas agressivas contra a natureza e os povos tradicionais que a protegem.

Nesse cenário de terror, o Brasil se tornou um pária mundial, sendo eleito como o país que pior lidou com a pandemia, ao deixar que ela vitimasse mais de 700 mil pessoas, quando teria todas as condições de impedir boa parte dessas mortes. Como se não bastasse matar a população com a negligência frente ao combate do vírus, o governo da época se empenhou para que o chamado Pacote do Veneno tramitasse na Câmara dos Deputados, onde foi aprovado e encaminhado à apreciação dos senadores. No apagar das luzes do último ano da gestão Bolsonaro, o Senado ameaçou aprovar o Projeto de Lei e detonar de vez nossa legislação reguladora de agrotóxicos, mas o governo de transição, já que Lula havia sido eleito e se preparava para tomar posse, entrou em cena e fez um acordo para adiar a votação naquele momento.

Foi assim que tivemos o desgosto de ver, alguns meses depois, sua aprovação em pleno governo progressista, após uma jornada de tantas décadas pelo parlamento. Fazia parte do que foi combinado e, nesse meio tempo, os partidos da base do governo conseguiram modificar um pouco o PL, reduzindo modestamente sua capacidade de causar danos à sociedade. E a bola foi passada para o poder executivo, a quem cabe vetar ou sancionar o que vem do Congresso. Era hora da rede de ativistas socioambientais pressionar o governo e o que não faltou foram gritos de “Veta, Lula!” nas redes sociais e nos espaços de participação cidadã, incluindo a divulgação de um manifesto assinado por um conjunto expressivo de organizações.

No último dia de prazo, dia 27 de dezembro de 2023, o governo federal decidiu por vetar 14 trechos da monstruosidade, sendo o mais importante o que diz respeito ao papel da Anvisa e do IBAMA na decisão de aprovar ou não um novo agrotóxico, já que, pelo PL aprovado, ambos seriam apenas consultivos e o poder se concentraria mesmo no MAPA, historicamente dominado por representantes do Agronegócio. Fim do ano, férias, recesso parlamentar, Carnaval e cá estamos nós. Com a volta dos trabalhos no Congresso, cabe aos deputados e senadores manter ou derrubar os vetos e à militância anti-veneno lutar contra a derrubada.

A Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida reivindica a retomada do Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos (PRONARA), que depende do poder executivo e segue mobilizando a sociedade para pressionar os membros da Câmara Federal e do Senado e evitar que o estrago seja maior do que já foi, o que acontecerá caso os vetos caiam. Mais uma vez, somos nós, com nossa coragem e esperança, na luta contra a bancada do trator, sustentada pelo conglomerado financeiro da cadeia veneneira com seu poder imensurável de comprar corações e mentes, seja via lobby direto ou disfarçado de contribuição à educação de nossas crianças, nossos jovens e nossos profissionais, dos campos às mesas, de norte a sul, de leste a oeste.

A Justiça não é surda

Se o trator do veneno ganhar nas esferas legislativa e executiva essa queda de braços – tão desigual do ponto de vista econômico -, resta a nós recorrer ao poder judiciário para tentar que a corte declare que a lei é inconstitucional e ela não entre em vigor. Sabemos que a Justiça está longe de ser surda em relação ao canto da sereia entoado pelos poderosos e que ela já cedeu ao lobby corporativo várias vezes.

É preciso que nossas vozes cantem mais alto do que cantam os donos da grana. Temos que ampliar e afinar nosso coro, unindo nele todas as pessoas que acreditam que é possível viver em um mundo que não seja intoxicado por substâncias cada vez mais letais; que ainda sentem pulsar dentro de si a força das terras, das águas, das florestas e dos seres vivos que formam a teia vibrante que faz da VIDA algo tão maravilhoso; que ainda não tiveram sua sensibilidade entorpecida pela sedução do consumo imediatista e insaciável e não se tornaram definitivamente parte do que o Xamã David Kopenawa definiu como o povo da mercadoria; que sonham em encontrar, como propõe Mestre Nêgo Bispo, um caminho de envolvimento, ao invés de um caminho de desenvolvimento ambiental.

Se a Justiça não é surda, cantemos juntos, juntas e juntes, nossa canção de amor e de luta. Que nossas encantadas e nossos encantados, tremulando aos quatro ventos, abençoem e amplifiquem o nosso canto, sacralizando nossa jornada.

Susana Prizendt é ativista anti-veneno, integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e do Movimento Urbano de Agroecologia – MUDA. Escreveu os artigos “O Envenenamento da Infância”, “Da Água ao Caldo Tóxico” e “Uma Overdose de Veneno”, publicados em Relatórios de Direitos Humanos no Brasil e colabora com diversos coletivos sociais e veículos da mídia independente.

*Editado por João Carlos