Internacionalismo
Um espaço para cultivar a rebeldia: 15º Encontro de Paradigmas Emancipatórios reuniu movimentos de toda a América Latina em Cuba
Por Gabriel Vera Lopes
De Brasil de Fato
“A primeira coisa que tivemos que aprender foi a derrotar a derrota”, disse Sandra Moran Reyés em um tom comovido, enquanto o auditório explodia em aplausos. Com sua voz lenta e forte, ela fala em pé no meio do palco.
Reyés é uma importante ativista pelos direitos humanos e uma das fundadoras do coletivo que organizou a primeira marcha do orgulho LGBTIQ na Guatemala. Discorre sobre a experiência política de seu país, sem deixar de refletir sobre a experiência coletiva que atravessa todo o continente latino-americano.
Sob o título “Dominação imperialista, guerra contra a vida e disputa hegemônica”, o painel corresponde à abertura do XV Encontro Internacional sobre Paradigmas Emancipatórios, realizado em Havana na última semana de fevereiro.
A mistica de abertura foi dedicada a denunciar o genocídio sofrido pelo povo palestino na Faixa de Gaza. Em nome das mais de 30 mil pessoas mortas, foi lido o testemunho de uma jovem palestina que estuda medicina em Cuba.
“Não me esqueço da mensagem de minha mãe no início dessa tragédia, ela me disse: minha filha, sei que suas circunstâncias são difíceis, estamos expostos ao perigo a qualquer momento e não há lugar seguro aqui. Recomendo que continue seus estudos e seu sonho pelo qual lutou tanto. Resista e enfrente, levante nosso nome e o nome da Palestina.”
Organizado pelo Instituto de Filosofia de Cuba e pelo Centro Memorial Martin Luther King, o Encontro Internacional de Paradigmas Emancipatórios é uma reunião que ocorre a cada dois anos com a intenção de criar um espaço para que movimentos sociais, ativistas, pesquisadores, educadores populares e estudantes que lutam contra diferentes formas de opressão se encontrem e troquem conhecimentos.
Encontros reúnem movimentos sociais, ativistas, pesquisadores, educadores populares e estudantes que lutam contra diferentes formas de opressão. Foto: Nieves Molina Fleites
Aprendendo o mais difícil: ouvir
“A importância desta reunião sincera, transparente e sem duplas intenções, é a de nos conhecermos, nos reunirmos e ouvirmos uns aos outros. Sem que ninguém ponha o pé no outro. Mas ouvir um ao outro de uma forma verdadeiramente horizontal”, diz Javier Larrain, membro da revista Correo del ALBA, para o Brasil de Fato.
De forma crítica, Larrain observa que, no passado, a esquerda frequentemente negligenciou as agendas ligadas às lutas ambientais, aos povos indígenas, às lutas feministas e à diversidade de gênero. Os Encontros Internacionais sobre Paradigmas Emancipatórios têm sido espaços de diálogo entre essas diferentes experiências.
“Para nos conhecermos, ouvirmos uns aos outros, refletirmos e traçarmos rotas em direção a um futuro que não conhecemos em termos orgânicos. Será um futuro baseado mais em perguntas do que em certezas. Mas, sem dúvida, ele nos dará as respostas para o que queremos”, diz ele.
O compromisso com a construção coletiva do conhecimento emancipatório sempre acompanhou o espírito dos encontros. Inspirados nas concepções de educação popular, os encontros foram concebidos como espaços que não se resumiam a uma mera troca de informações, nem a uma reunião em que todas as perguntas já estivessem previamente respondidas. Pelo contrário, nasceram como um espaço de troca de conhecimentos e experiências, onde as diferentes esquerdas puderam desenvolver vínculos e significados que contribuíssem para a ação e a reflexão política por meio do diálogo fraterno. Dessa forma, a memória da primeira reunião deixou claro o espírito que marcaria os encontros: “a primeira ideia clara e distinta de nossas oficinas é a necessária construção coletiva de nosso próprio paradigma emancipatório”.
“Esses espaços nos permitem ver que há algo além do que identificamos como zonas de conforto”, explica Ania Torrero, ativista feminista cubana e jornalista do portal Cubadebate, ao Brasil de Fato.
“Eles permitem que nos aliemos, geremos estratégias, procuremos colegas, busquemos outras maneiras de fazer as coisas. Experimentar o que funcionou ou o que não funcionou, como outros fazem, e, acima de tudo, nos unirmos. Para nos aconchegarmos e recarregarmos nossas baterias para que possamos continuar a empreender as batalhas.”
Uma construção coletiva necessária
O primeiro Encontro Internacional sobre Paradigmas Emancipatórios foi realizado em 1995. Naquela época, Cuba atravessava o que é conhecido como “período especial”, um dos momentos mais dramáticos e difíceis de sua história.
O colapso da União Soviética, seu principal aliado político e comercial, em 1991, desencadeou uma crise econômica sem precedentes na ilha. O PIB de Cuba sofreu uma contração de 36%, o que levou ao desmantelamento de grande parte dos resultados materiais que a Revolução havia conseguido construir. Enquanto isso, com o desmoronamento do sistema de países que formavam o que era conhecido como campo socialista, Cuba ficou completamente isolada do mundo.
Nesse contexto, os Estados Unidos surgiram como o único e indiscutível árbitro internacional. O “consenso de Washington” e as políticas neoliberais foram impostas em todo o mundo: o triunfo do capitalismo como o único modelo possível parecia imparável.
A crise, porém, não era apenas política e econômica. O imaginário emancipatório que havia sido articulado em torno das lutas da classe trabalhadora, dos processos de descolonização e das revoluções do século XX parecia estar em crise. Foi nesse contexto, hostil e adverso, que nasceram os Encontros Internacionais de Paradigmas Emancipatórios.
“Pensamos em uma maneira de nos encontrarmos novamente, para reviver o espírito da revolução, o espírito de esperança e força”, lembra a filósofa cubana Yohanka León del Río ao Brasil de Fato.
A primeira vez que Yohanka participou do evento foi em 1997. Desde então, ela sempre esteve envolvida na organização dos encontros. Durante todos esses anos de esforços coletivos, os Encontros Internacionais de Paradigmas Emancipatórios reuniram uma grande variedade de intelectuais, representantes de organizações sociais, artistas e ativistas de diferentes partes do continente. Tornaram-se um espaço para a construção coletiva do pensamento crítico.
Yohanka lembra que naqueles primeiros anos, quando começaram as reuniões, os discursos acadêmicos e políticos dominantes costumavam falar sobre o “fim das utopias”, referindo-se à ideia de que não poderia mais haver nada fora do liberalismo e do capitalismo.
“Começamos a nos reunir para dizer que não, não há fim das utopias. Existem muitas utopias. Há muitos paradigmas emancipatórios sendo construídos. Porque existem as lutas e as esperanças das pessoas, juntamente com sua resistência. Portanto, eles não mataram a utopia. A utopia de uma humanidade humanizada ainda está viva”, diz ela.
Em um contexto adverso, em que a extrema direita está novamente ganhando terreno, Yohanca enfatiza a importância de continuar aprendendo com as experiências vivas das lutas dos povos.
“Essa direita vem para tirar tudo, porque o único mundo que eles concebem é um mundo para eles mesmos. Portanto, é uma direita com um ódio expresso pela humanidade. É anti-humanismo da maneira mais explícita. Acho que isso está claro para o povo. As reuniões nasceram da convicção de que todas as experiências tinham algo a ensinar e algo a aprender. Cada educador, cada ativista, cada camponês, cada comunidade tem algo a contribuir para todos nós” reflete.