Memória

25 anos da “cidade de lona preta” erguida pelo MST em frente do Palácio das Araucárias 

Neste contexto da Jornada de Lutas Pela Reforma Agrária, resgatamos uma das grandes mobilizações que marcaram a história do MST no PR
Horta suspensa montada durante o acampamento da praça. Foto: Arquivo MST no PR.

Por Barbara Zem, Setor de Comunicação e Cultura MST no PR
Da Página do MST

No dia 8 junho de 1999, mais de 400 camponeses e camponesas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de várias regiões do estado do Paraná iniciaram o que viria a ser a ocupação mais longa realizada em frente ao Palácio das Araucárias, no Centro Cívico, sede do governo do Paraná. O objetivo principal do acampamento era mostrar o nível de violência e assassinato que estava acontecendo contra os trabalhadores rurais no estado. 

De 1995 a 2002, quem estava liderando o governo era Jaime Lerner, e seu mandato foi marcado por extrema violência no campo. Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), durante esse período 16 trabalhadores Sem Terra foram assassinados, 49 sofreram ameaças de morte, 325 pessoas ficaram feridas e 135 ações de despejo foram realizadas nas ocupações no estado.

Roberto Baggio, que na época participou da construção da ocupação e fazia parte da coordenação estadual do MST, relembra que a ideia do acampamento era ser um refúgio. “A ideia era vir para o centro de Curitiba para se proteger da violência, que é uma violência das milícias, dos fazendeiros, é uma violência pública da polícia militar e do governo do estado, do aparato de segurança contra o MST, para evitar mais mortes e violência, ao mesmo tempo exigir o avanço da Reforma Agrária”.

Ao chegarem na praça Nossa Senhora de Salete, em frente ao Palácio do governo, camponeses e camponesas organizaram o espaço como era feito em todas as suas ocupações. Dentro do acampamento, mais ou menos 100 famílias ficaram ali nos 172 dias de ocupação, sempre fazendo revezamento entre elas, sendo uma ação itinerante.

Acampamento na Praça Nossa Senhora de Salete, em 1999. Foto: Arquivo MST no PR

Edson Bagnara na época tinha acabado de entrar no MST, era militante e ajudou na construção do acampamento. Ele comenta que no início tinha cerca de 800 pessoas que ficaram permanentes em frente ao palácio, e organizaram 7 cozinhas que representavam as grandes regiões do MST no estado, cada uma delas tinha entre 50 e 100 militantes, que ficaram no local durante os 6 meses da ocupação.

Na parte organizativa, o acampamento se dividiu em sete regiões, cada uma tinha sua cozinha, seu banheiro, seus cômodos e beliches feitos de lona e tábuas de madeira. A alimentação também era organizada pelas regiões, cada uma trazia tudo que seria necessário para garantir as refeições.

“Nesse período de 6 meses organizamos uma cidade de lona preta na frente do palácio, foi organizado secretaria, padaria, o pessoal fazia pão e vendia, tinha um sistema de horta suspensa com sombrite, tipo estufa e uma escola itinerante. Nós usávamos o espaço onde hoje é o Palácio das Araucárias como sala de aula”, relembra Edson.

Sandra Mara Maier era uma das acampadas do Centro Cívico, tinha apenas 22 anos e foi professora na escola do acampamento durante todo o período. “Eu já tinha magistério, então já comecei a atuar no segundo dia do acampamento no setor de educação, na escola que a gente montou no centro cívico mesmo, na época era mais ou menos umas 600 famílias acampadas ali, então montamos a escola e começamos a dar aula pras crianças que estavam ali”.

Sandra no acampamento do Centro Cívico. Foto: Arquivo Pessoal

“Era um período difícil por causa da repressão, mas também o acampamento foi difícil, porque era um momento que a gente tava ali na cidade sem muitas condições de acampamento mesmo, mas foi uma experiência bem interessante. A gente construiu uma escola, deu aula, construímos horta ali no acampamento, fizemos uma estufa de verduras, então tivemos também no acampamento uma padaria comunitária que a gente fazia pães e até vendia pro pessoal que trabalhava no entorno”, relembra Sandra.

Durante todo esse período que ficaram em acampamento, foram realizadas formações, mística, atividade diversas, padaria, estufa com alimentos e escola para as crianças, sempre oferecendo tudo que era necessário para que esse espaço funcionasse de maneira organizada e funcional como era dentro dos acampamentos e assentamentos.

Lenise Klenk era jornalista do Bem Paraná na época, o jornal ficava próximo a praça, e ela ia caminhando para fazer a cobertura das ações daquele período. “Se naquele momento, quando era uma jovem jornalista em começo de carreira, a organização do acampamento chamava a atenção, acredito que pra muita gente de Curitiba a ocupação foi reveladora de uma realidade desconhecida. As pessoas se interessavam em visitar a estrutura, conhecer os recursos e os espaços que estavam instalados ali, embaixo de lona, como padaria, cozinha, setor de saúde e de educação”.

Espaços do acampamento, 1999. Fotos: Arquivos MST no PR

Além da questão organizativa dentro do acampamento, diariamente eram realizados apitaços, marchas e ações diversas para chamar atenção para o que estava acontecendo em várias regiões do estado, com a intenção de fazer uma pressão no governo.

“Então, foi uma experiência muito formadora, mas também um período muito difícil, um período muito frio, de muitas dificuldades de alimentação, enfim nós ficamos acampados ali, com chuva, frio, geada, então foi um misto de sofrimento e de luta também pelos nossos direitos e de aprendizados principalmente”, comenta Sandra sobre todo o período que ficaram acampados.

Marchas realizadas durante a ocupação da Praça Nossa Senhora de Salete, 1999. Fotos: Arquivo MST no PR

“Foi o período mais dinâmico, mais massivo, de maior embate, de maiores batalhas, de maiores conquistas, de maiores violências que o nosso movimento sofreu nesses 40 anos no Paraná”, afirma Roberto Baggio, que participou da construção do acampamento e na época fazia parte da coordenação estadual do MST.

Enfrentamento entre Estado e o MST

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra foi criado em 1984, durante o 1º Encontro Nacional do MST, em Cascavel, região oeste do Paraná. Desde que foi fundado, o movimento colocou como objetivo: lutar pela terra, lutar pela reforma agrária e lutar por mudanças sociais no país.

O Plano Nacional da Reforma Agrária (PNRA) de 1985 previa colocar em prática o Estatuto da Terra e assentar cerca de 1,4 milhão de famílias, porém como não era prioridade para o governo da época, apenas 6% dessa meta foi cumprida.

Roberto Baggio durante a ocupação da Praça Nossa Senhora de Salete, 1999. Foto: Arquivo MST PR

Em 18 de abril de 1999, o governo federal estadualiza o processo de Reforma Agrária permitindo que o governador Jaime Lerner nomeasse José Carlos de Araújo Vieira, assessor estadual fundiário, para o cargo de superintendente regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária do Paraná (INCRA). Essa mudança fez com que a relação do MST e do INCRA ficasse ainda mais abalada.

Por conta do desgoverno de Lerner e da grande violência contra o povo camponês, em 21 de abril do mesmo ano, o MST realizou uma marcha para a capital paranaense, pedindo liberação de verba e punição para diversos assassinatos de camponeses no estado.

De 12 a 16 de maio, o governo realizou uma série de despejos, deixando cerca de 500 famílias sem um local para morar e plantar. Em 7 de junho o MST do estado anunciou que estava organizando uma caravana saindo de Ponta Grossa para montar um acampamento na praça Nossa Senhora de Salete, no centro da capital paranaense. No dia seguinte, cerca de 400 famílias Sem Terra chegaram à capital paranaense e montaram o histórico acampamento em frente ao Palácio Iguaçu. 

“99 foi um ano bem difícil, de muita repressão do governo Jaime Lerner e eu lembro que em abril de 99 foi feito uma atividade em Curitiba, uma marcha, onde foi ficado uma semana acampado na frente do palácio e negociando a saída dos que estavam presos e também para que a polícia parasse com os despejos’, relata Edson, que hoje faz parte da coordenação do MST no Paraná. Nesse período havia cerca de 140 militantes do MST presos, e mesmo após a manifestação, os despejos e as prisões não pararam. Por isso, em junho de 1999, as famílias camponesas iniciam o que viria ser o acampamento de maior duração da história do Movimento, na frente do Palácio do governo. 

Montagem da ocupação da Praça Nossa Senhora de Salete, 1999. Fotos: Arquivo MST no PR

Diversas reuniões e diálogos foram realizados para tentar resolver a situação em favor do MST, porém o estado não cumpriu o que prometeu, o que fez com que a ocupação da praça durasse mais tempo do que o esperado.

Na época, os estados do Paraná e do Pará foram escolhidos pela elite do agronegócio para servirem como um local de ensaio para destruir o MST, conforme afirma Edson Bagnara. “Aqui no Paraná, o acampamento mesmo tendo sofrido o despejo, ele foi vitorioso porque a partir dali meio que nós freamos os despejos no estado”.

O advogado Darci Frigo, relata o clima daquela época e o papel daquela mobilização: “O acampamento durou quase 6 meses em frente ao palácio, porque a Reforma Agrária não avançava, tinha despejo, conjunto de assassinatos que estão registrados pela CPT naquele período e muita perseguição”. 

Na avaliação de Frigo, o massacre ocorrido em 2000 na BR 277, em que a Polícia Militar assassinou o camponês Sem Terra Antonio Tavares e deixou quase 200 pessoas feridas, ocorreu para impedir a chegada dos militantes do MST novamente no centro da capital. Em 14 de março deste ano, 24 anos após o crime, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o estado brasileiro pelo massacre, e impôs ações de reparação às vítimas e familiares de Tavares, proteção do monumento erguido no local da violência, em Campo Largo. A denúncia à Corte partiu do MST, com apoio das organizações Justiça Global e Terra de Direitos, entidade de Direitos Humanos da qual Frigo faz parte da fundação.

Violência do campo se repetiu no Centro Cívico

A ocupação permaneceu por 172 dias, no mesmo local, e a cada dia novas pessoas e integrantes chegavam de diversos lugares do estado. “Foram 172 dias de atividades, de formação, de marcha, de pressão, de negociação, de conversa, mas mesmo assim o resultado final você vê. O governo decide despejar, novamente utilizando a violência”, afirma Baggio sobre o resultado do acampamento, que hoje é da Direção Nacional do Movimento.

O despejo só aconteceu porque em 27 de novembro, um sábado, às 3h da madrugada, 750 policiais militares cercaram o acampamento e retiram os camponeses e camponesas s Sem Terra de maneira truculenta e violenta, agredindo e prendendo líderes e apoiadores do movimento que estavam no local. Após o despejo, os Sem Terra foram colocados em ônibus para retornarem a seus acampamentos e assentamentos.

Edson fala exatamente o que fazia no dia em que foi realizado o despejo na praça. “Em novembro a gente fez uma negociação com o estado para nos desmobilizar e ir embora. Eu lembro bem que nesse dia eu fui pra secretaria do MST na época, e fiquei tirando xerox até umas 2h da manhã, era um xerox do resumo, um texto que a gente ia estudar no sábado de manhã para preparar o pessoal pra segunda-feira de manhã voltar embora. Então o estado tinha se comprometido a colocar os ônibus pra gente ir embora e nós faríamos a preparação e desmontagem de toda a estrutura pra voltar. Aí quando foi umas 3h da manhã, eu fui dormir umas 2h30 mais ou menos, tocou o telefone eu levantei e fui atender e era alguém, que não sei quem era, avisando que o acampamento estava cercado”. 

Ele comenta que após a polícia cercar o acampamento, tentaram fazer algumas ligações para gerar mobilização na praça, porém não tinha muito o que fazer, a violência que a polícia usou com os militantes foi muito truculenta, eles retiraram tudo e todas as pessoas, e depois esparramam elas pelo estado.

Sandra também lembra do momento em que todos foram despejados. “Nós ficamos lá todo esse período, eu e o Paulo começamos a morar junto e logo engravidei da Ana ainda no Centro Cívico, então quando saímos do Centro Cívico no despejo eu tava grávida deus 4 meses já, a gente foi despejado e foi um despejo bem violento, tiraram as pessoas das camas, 2h da manhã, gritando, falando pra se abaixar se não eles atiravam, com cachorro, fizeram a gente passar no meio dos cachorros, se ajoelhar no chão”. 

Naquele dia, a violência cometida por milícias e pela polícia nos acampamentos rurais, se repetiu no centro do poder político do estado: “Foi um momento bem repressivo por parte do governo pra fazer o despejo do próprio Centro Cívico que era ali na frente do Palácio do Governo. E aí colocaram as mulheres em um ônibus os homens em outro, criança chorando, alguns foram presos e nos ônibus também tinham policiais que ficavam gritando com as pessoas, então foi um dia muito tenso”. 

Baggio e os advogados Darci Frigo, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), e Andressa Caldas, que acompanhava as ações do MST na época e era da Rede de Advogados Populares, foram rendidos no chão por policiais militares de maneira truculenta e foram impedidos de acompanhar a ação por um cordão de isolamento. Na época, o MST questionou a legalidade da operação e a validade da ordem de reintegração de posse, pois a prefeitura perdeu o prazo para apresentar argumentos contra o movimento no tribunal de Justiça. 

“Todas as prisões que tinha na madrugada, antes de vir para o palácio, era assim, a polícia cercava, isolava a área e não deixava ninguém entrar e sair, a imprensa também era proibida. Eles construíram esse método chamado “áreas congeladas”, ninguém chegava”, reafirma Baggio sobre o período de maior violência no Estado. 

Ousadia e coragem Sem Terra no centro do poder do Estado

O acampamento trouxe diversas conquistas para muitas pessoas que viveram aquele período. Nessa época Sandra estava começando a entender o que era o movimento e a fazer parte das atividades e tarefas. “No acampamento ingressei no setor de educação e já fui pra coordenação do setor, atuando na frente da educação infantil ajudando a coordenar e a desenvolver as atividades, e desde então tô na educação”, hoje Sandra é pedagoga e professora da sala de recursos na Escola Municipal do Campo Contestado, ela e seu companheiro Paulo tiveram duas filhas, Ana e Dandara, e agora um neto, Murilo, com 1 ano e 6 meses.

A participação das mulheres nos espaços comuns sempre foi de grande importância nas relações dentro do movimento Sem Terra, e teve papel fundamental durante aquela ocupação. “Eu pessoalmente sempre questionei muitas coisas e dava minha opinião nas discussões. Mas hoje, com o conhecimento que adquiri, entendo que este é um processo em evolução, na medida do avanço da consciência das mulheres e dos coletivos, mas que uma mudança mais significativa depende da mudança da sociedade”, afirma Sandra sobre ser mulher no período do acampamento.

A jornalista Lenise afirma que a ocupação foi ousada e corajosa para a época. “Ao se aproximar das pessoas que viviam na capital do estado, o MST deu visibilidade à luta pela Reforma Agrária e ao seu modo de se organizar como movimento social. Os trabalhadores rurais Sem Terra começavam naquele momento a derrubar alguns estigmas e mitos. Não conquistaram todo mundo, mas conseguiram ampliar a rede de apoio entre grupos mais progressistas do meio urbano”.

Edson comenta que o real significado da ocupação para o movimento foi uma bela luta, um grande exemplo de resistência e de capacidade organizativa. “Graças aquela batalha nós conseguimos tirar nossos militantes da cadeia, frear a violência no campo, trazendo o centro do debate da luta pela Reforma Agrária para dentro do centro do poder político do Estado”.

*Editado por Fernanda Alcântara