Alimentos Saudáveis
Assentamento Califórnia: agroecologia rompendo cercas do agronegócio
Por Comunicação do MST no Maranhão
Da Página do MST
O Assentamento Califórnia, localizado no município de Açailândia, às margens da BR-010 (Belém-Brasília), no estado do Maranhão, tem uma extensão de 5.800 hectares e abriga hoje 214 famílias assentadas, que somando às agregadas, são 280, em um total de cerca de 1.900 habitantes, graças à luta pela Reforma Agrária organizada pelo MST a partir de uma das maiores ocupações que se tem na história do movimento no estado.
A ocupação ocorreu no ano de 1996, em dois momentos: o primeiro no dia 26 de março daquele ano, com aproximadamente 300 famílias. Após serem despejadas, as famílias ficaram às margens da via, na altura do assentamento Vila Conceição 1 e 2, zona rural da cidade de Imperatriz, por aproximadamente três meses e meio.
A partir de então, a militância, agora com mais algumas pessoas inseridas, passa a viver nas periferias das principais cidades da região tocantina, localização geográfica banhada pelo rio Tocantins do lado do estado do Maranhão, onde estão os municípios da sul do estado: Imperatriz, Açailândia, Cidelândia, São Francisco do Brejão, João Lisboa, Ribeirãozinho, Itinga e tantos outros.
Apesar de espalhadas, as famílias receberam suporte do trabalho de base do movimento, e junto ao acampamento que permanecia às margens da BR-010, foi retomado o processo de ocupação na área da chamada Fazenda Califórnia, desta vez com cerca de 850 famílias, dando origem a cinco agrovilas, dentro de dois Projetos de Assentamentos (PAs), em razão do grande número de pessoas.
No primeiro Projeto de Assentamento, foi mantido o mesmo nome da fazenda, por decisão coletiva, por isso hoje chamado Assentamento Califórnia, já o segundo é o Projeto de Assentamento Açaí, na região do “Quilômetro 30”, dando origem às comunidades e agrovilas: Nova Conquista, Macaúba, Sudelândia, Conquista da Lagoa e Nova Vitória.
Esse conglomerado de pequenos assentamentos sustentam a cidade de Açailândia, mantendo-a com o básico da agricultura familiar, sobretudo, com a produção de mel, que é o grande destaque, acompanhado da produção de hortaliças e leite que abastecem a cidade.
No último 26 de março, o Assentamento Califórnia completou 28 anos de resistência e fortalecimento, período em que sempre esteve ligado à luta do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra, enquanto território estratégico para os encontros de organicidade e também na formação de militantes da comunidade que contribui na organização do movimento de modo geral.
Desafios frente ao avanço da mineração e do agronegócio
Com pouco mais de 110 mil habitantes, o município de Açailândia, do qual faz parte o Assentamento Califórnia, já foi considerado uma das 20 metrópoles brasileiras do futuro no ano de 2010, sob o destaque de “cidade média – aonde o futuro já chegou”, segundo reportagem especial da revista Veja e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que chamava atenção para a expansão do polo siderúrgico na região.
No entanto, a quem serve esse modelo de desenvolvimento com base no sistema capitalista? A riqueza produzida na região é exportada para outros países e provoca permanente embate entre as famílias do Assentamento Califórnia, em defesa do meio ambiente e da vida digna no campo, frente aos impactos do avanço da mineração e do agronegócio.
O território está localizado em área estratégica de produção e exportação de soja, como também cercado pelos plantios de eucalipto destinados à Suzano Papel e Celulose S/A, e esta, além da monocultura, também é responsável pela pulverização aérea de veneno, que ao longo dos anos causa vários problemas à saúde da terra, a morte de animais e danos à vida das pessoas que moram naquela localidade.
O assentamento, desde sua ocupação, também vive os impactos do Programa Grande Carajás (PGC), criado pelo Governo Federal em 1980, que serviu de base para a instalação do setor siderúrgico na região, trazendo o minério do Pará para ser transformado em ferro-gusa para exportação em siderúrgicas e carvoarias industriais de Açailândia, alvos de inúmeras denúncias de poluição, exploração infantil e trabalho escravo.
Com uma das carvoarias instalada há pouco mais de 300 metros do assentamento, organizadas, as famílias historicamente tem atuado no sentido de denúncia e cobrança aos poderes públicos em relação aos impactos e em defesa da vida, exigindo inclusive a redução da capacidade de produção e a implantação de filtros nos mais de 70 fornos industriais instalados na região, além de acesso a serviços de educação, saúde e melhorias na qualidade de vida.
Organizar para resistir, produzir e viver
Ainda no período do acampamento, as famílias deliberaram pela implantação de um regimento interno que orientava as formas de trabalhar e produzir na terra, como utilizar os recursos naturais e quais os direitos e deveres dos assentados, organizados por meio de núcleos familiares, organicidade essa que durou alguns anos e fortaleceu a garantia de constituição do assentamento, a divisão de lotes, o acesso a créditos e fortalecimento da produção.
Ao longo dos anos as famílias passaram a ser organizar por meio de associações e coletivos, a partir de suas afinidades, especialmente no ramo da produção. Hoje estão ativas seis associações de produtores e duas organizações de esporte, além de coletivos como o de mulheres.
E quem fala sobre esse período é o apicultor, assentado e professor Ozias Carvalho, que chegou ainda no período da ocupação e lembra que as famílias encontraram terra fértil, ainda sem tantos males, por isso abundava a produção de alimentos como arroz, macaxeira, milho, feijão, entre outros.
“Com o decorrer do tempo, com a falta de assistência técnica, de recursos financeiros, associado principalmente à baixa fertilidade do solo, a agricultura de subsistência passou a perder um pouco de espaço, levando os assentados a migrarem também para outras atividades, como a criação de gado e foco nas hortaliças”, explica Ozias.
A produção de hortaliças teve início nos chamados agroquintais, que ganharam força após o programa ‘Luz para Todos’, implantado pelo governo Lula no ano de 2003, que universalizou o acesso à energia elétrica, priorizando inclusive áreas de assentamento.
“Isso possibilitou que as áreas produtivas tivessem a possibilidade de acesso à água, que ajudou no desenvolvimento da produção de hortaliças no assentamento e, até hoje, parte dessa produção é vendida para o mercado institucional e outra parte nas feiras. Algumas famílias tem as hortaliças como principal fonte de renda da casa”, complementa.
No campo da produção agroecológica estão então as hortaliças, leite, queijo e animais de pequeno porte como porco e galinha caipira, vendidas nas feiras livres da região, mas o destaque mesmo, é a produção de mel, que acontece com o apoio da Associação Agroindustrial Vale de Açailândia (AAVA).
A AVAA foi fundada fora do assentamento, em 1º de maio de 1995, mas retomada a partir do assentamento sob as mãos de Ozias, que levou as primeiras caixas de abelha para a área em 1997.
No ano de 1999, o apicultor chamou atenção da comunidade, que ainda cultivava medo em relação à apicultura, coletando sozinho cerca de 900 quilos de mel. A partir de então, mais pessoas foram se inserindo na atividade, conquistando especialmente jovens e em 2023 a associação alcançou a produção histórica de mais de 11 toneladas de mel.
“A nossa produção já esteve muito melhor, mas como o agronegócio tem entrado na região, a gente tem encontrado algumas limitações. A gente tem companheiro que já perdeu o apiário por envenenamento próximo ao plantio de soja ou milho e, se a gente esperava ter um assentamento muito produtivo, com renda significativa, a gente tem tido dificuldade e precisamos buscar áreas além do assentamento”, explica Ozias.
Hoje a atividade apícola é o carro chefe no ramo da produção da associação e vai muito além da produção de mel. Ainda que de maneira rudimentar, desde 2021 a associação produz a apitoxina, veneno que tem origem na espécie de abelha Apis melífera com alto potencial medicinal, utilizado em uma série de tratamentos anti-inflamatórios, analgésicos, antitumoral, cicatrizante e neuroprotetor.
Esse é um dos produtos mais valorizados no ramo, com cem ou mais vezes superior ao do mel, e inclusive, pode ser produzida no verão, período em que não é possível produzir o mel. Além disso, desde 2023 também é produzido o própolis, transformado em extrato de alta qualidade e vendido diretamente aos consumidores.
Cultura, lazer e educação popular para o movimento avançar
Na compreensão e construção da identidade do MST, o bem viver no campo deve ser compreendido não apenas com o acesso à terra e condições de produção, mas também contemplando toda a dimensão humana que diz respeito ao acesso à saúde, cultura, lazer e educação, afinal, lutamos por “terra, arte e pão”.
Dessa maneira o Assentamento Califórnia também tem como desafio e parte estrutural do seu desenvolvimento a relação com a mística Sem Terra, por meio de atividades culturais, religiosas, de lazer e educação.
A comunidade tem profunda relação com a igreja católica, que com um perfil mais voltado à ótica da teologia da libertação tem fortalecido a luta por direitos, a exemplo da realização da 13ª Festa da Colheita no assentamento, no ano de 2023, reunindo produtores familiares de toda a região sob o tema “Agricultura Familiar: Plantar, Resistir e Esperançar”, que teve como destaque a denúncia às violências cometidas contra o povo do campo no Maranhão, em especial a pulverização aérea de agrotóxicos.
Nos campos da saúde, cultura e lazer, graças à luta coletiva, a comunidade dispõe hoje de uma quadra poliesportiva, da Praça Manoel Almeida, com estrutura de brinquedos infantis e banheiros, posto de saúde, grupos de danças tradicionais, além de festas que já compõem o calendário anual, como aniversário do assentamento, festas juninas e dia das mães.
Na área da educação, os avanços são significados e apontados pelo professor Francisco Andrade, militante histórico do movimento e coordenador pedagógico da escola do assentamento, Escola Antônio de Assis.
A escola foi fundada oficialmente no dia 11 de agosto do mesmo ano de fundação do Assentamento Califórnia, em 1996, ainda que de maneira precária, debaixo das árvores. Somente em 1999, um prédio foi garantido, formalmente vinculado ao Ministério de Educação.
Hoje são 280 crianças e jovens matriculados, da educação infantil ao 9º ano, e desde 2004, também há garantia do ensino médio funcionando com suporte de um prédio da cidade, com cerca de 70 alunos, salas de aula, sala de professor, espaços administrativos improvisados e biblioteca comunitária.
Com o apoio de professores dedicados à educação popular, a escola mantém um forte vínculo com os ideais do movimento, a exemplo da conquista histórica de garantia da disciplina de Agroecologia e manutenção da execução do hino do MST nas atividades.
Ao concluírem os estudos básicos nas escolas, os jovens do ensino médio são estimulados a cursar técnicos na Casa Familiar Rural ou cursos de graduação nas universidades próximas ao assentamento, mantendo e fortalecendo o vínculo com a família, o campo e o movimento.
*Editado por João Carlos