Memória e Justiça

‘O Brasil precisa debater um projeto de nação’, defende Stedile em debate sobre golpe

Organizado pela AJD, na UniRitter, evento sobre 60 anos do golpe também contou com a participação da juíza aposentada Antônia Mara Loguercio
O evento fez parte do calendário de atividades para relembrar e denunciar os 60 anos do golpe militar. Foto: Uniritter

Do Brasil de Fato

Organizado pela Associação Juízas e Juízes para a Democracia, integrante da Coalizão Brasil por Memória, Justiça, Reparação, Verdade e Democracia, aconteceu na última sexta-feira (12) o debate “Ditadura: Memória, Verdade, Justiça e Reparação – Não Repetição”, na UniRitter, em Porto Alegre.

O evento contou com a participação de Antônia Mara Loguercio, ex-presa e perseguida política e Juíza do Trabalho Aposentada, e João Pedro Stedile, ativista social do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e economista. A atividade fez parte do calendário da Coalizão para relembrar e denunciar os 60 anos do golpe militar.  

“A importância da memória parece que não é nada, mas ela é muito. A importância da memória para que a gente saiba o que aconteceu, porque durante 21 anos a gente não pode tomar conhecimento. E durante todo o outro período de democracia nós não fizemos coisa alguma que institucionalmente fizesse com que os fatos fossem conhecidos pela grande maioria do povo brasileiro”, iniciou sua fala a ex-presa e perseguida política e Juíza do Trabalho Aposentada Antônia Mara Loguercio. 

“A gente sabe o que é lutar por qualquer direito dentro de uma ditadura”. Foto: Uniritter

A juíza recuperou sua história e trajetória durante o período da ditadura militar e no processo posterior da retomada da democracia. Ao Brasil de Fato RS, Mara comentou que agora a sociedade está começando a dar ‘crédito’ ao que se passou naquele período. “Talvez pelas próprias coisas que tenham acontecido ultimamente, se imagina do que eram capazes em termos de política do ódio e todas as perversidades que foram feitas. Estamos aqui para divulgar a verdade. Chega de ditadura, não toleramos mais ditadura”, frisou. 

Segundo pontuou, a ditadura vem todas as vezes que um governo se aproxima da soberania nacional ou de qualquer coisa que beneficie as camadas mais pobres, os trabalhadores do campo e da cidade. “A justiça de transição é uma coisa importantíssima de se recuperar, a comissão das mortes e desaparecidos. Porque o crime contra elas é continuado, ninguém assume que morreram, que mataram, que deixaram insepultos, ou que jogaram no mar, que incineraram. Fica até hoje a família sonhando com o corpo, procurando.”

No Brasil, em 2014, a Comissão Nacional da Verdade reconheceu, em seu relatório final, 434 mortes e desaparecimentos de vítimas da ditadura militar no país, entre essas pessoas, 210 são desaparecidas. “Isso tudo precisa ser contado mais, nas faculdades, para os jovens, e não foi ainda contado para o grande público. Ficou parecendo uma coisa só de militantes.”

Sobre a questão da reparação, Mara pontuou que só não deveria receber reparação nenhuma se tivesse acontecido uma das duas hipóteses do Código Civil que prevê a reparação. “Se tivesse sido uma coisa lícita o que eles fizeram, não era. Tinha o presidente eleito, democraticamente. Eles é que foram subversivos, que romperam, rasgaram a Constituição para fazer aquilo. Era um ato ilícito e me causou prejuízos, físicos, de trabalho e morais. Eu deveria ser reparada. Assim como todos.”

Luta contra a ditadura

Conforme afirmou a experiência própria, de lutar contra todas as injustiças, é muito mais fácil numa democracia do que numa ditadura. “Eu já era militante quando chegou 64, já lutava contra as injustiças e continuei lutando. A gente sabe o que é lutar por qualquer direito dentro de uma ditadura.”

Por sua vez, ao Brasil de Fato RS, Stedile pontuou que a ditadura empresarial militar que deu o golpe em 1964 foi um golpe das elites brasileiras apoiada pelos americanos. “Usaram as Forças Armadas para, na verdade, interromper um projeto de desenvolvimento nacional que era defendido pelo governo João Goulart. E dentro do projeto de desenvolvimento nacional, a reforma agrária era uma das propostas de reforma de base.”

Na sua opinião, as consequências foram uma tragédia para todo o povo, “porque no caso dos camponeses, inclusive, eles fecharam todas as organizações camponesas, interromperam aquele debate sobre reforma agrária, prenderam os seus líderes, alguns foram torturados, mortos e outros tiveram que amargar o exílio, e depois foi feita uma repressão sistemática durante os 21 anos da ditadura”. 

Um estudo inédito realizado pelo pesquisador colaborador da Universidade de Brasília (UnB) e ex-preso político Gilney Viana, 78, aponta que 1.654 camponeses foram mortos ou desapareceram desde o golpe de 1964 até a promulgação da Constituição, em 1988.

Stedile reforçou que a crise do modelo econômico e o reascenso do movimento de massa levaram ao fim da ditadura militar. De acordo com ele, de 1979 a 1984, com a crise do modelo econômico da ditadura militar, foi um período muito rico da mobilização social, em que ressurge os movimentos sociais e, no campo, o MST, com as primeiras ocupações no RS.

“Usaram as Forças Armadas para, na verdade, interromper um projeto de desenvolvimento nacional que era defendido pelo governo João Goulart”. Foto: Uniritter

“Há uma simbologia, do fim da ditadura e do ressurgimento da luta pela reforma agrária, na figura do tenente coronel Curió, que foi enviado para Encruzilhada Natalino para tentar acabar com o acampamento do MST, que resistiu. Era um sinal de que era possível derrotar a ditadura. E aqui estamos na luta pela reforma agrária e, sobretudo, não só a luta por democracia, este país precisa urgentemente de um projeto popular de desenvolvimento nacional.”

Para ele, o Brasil precisa debater um projeto de nação, senão não resolve os problemas econômicos, não resolve as desigualdades sociais, não resolve a reforma agrária, que não é desapropriar uma fazenda aqui e a outra lá.

“A reforma agrária é um modelo de reestruturação da agricultura brasileira para produzir alimentos, para produzir na forma de agroecologia, para garantir o enfrentamento da pobreza do campo.”

Confira o debate na íntegra:


Edição: Katia Marko