Artigo
O Direito à Terra: uma defesa da Reforma Agrária Popular
Por Emiliano Maldonado*
Do Brasil de Fato
“Yo pregunto a los presentes
Si no se han puesto a pensar
Que esta tierra es de nosotros
Y no del que tenga más
Yo pregunto si en la tierra
Nunca habrá pensado usted
Que si las manos son nuestras
Es nuestro lo que nos den
A desalambrar, a desalambrar
Que la tierra es nuestra
Es tuya y de aquel
De Pedro y María
De Juan y José (…)”
A Desalambrar – Daniel Viglietti
O mês de abril marca a luta histórica dos movimentos camponeses pela Reforma Agrária e dos povos indígenas pela demarcação dos seus territórios ancestrais. Essas duas questões revelam os níveis de desigualdade e violência que o modo de produção capitalista impôs a ferro e fogo em nossa região, que expropriou e negou o direito à Terra aos povos originários, aos povos africanos que foram sequestrados e escravizados e aos trabalhadores rurais.
Ou seja, as sociedades latino-americanas estão marcadas pela colonialidade e a dependência, que geram realidades que cotidianamente naturalizaram, invisibilizaram ou ocultaram as violências e injustiças que marcam a nossa formação sócio-histórica, pois a desigualdade da estrutura agrária brasileira possui profunda relação com o desenvolvimento do sistema capitalista e, consequentemente, com sua lógica excludente e repressiva.
Desse modo, para compreender a dinâmica dos conflitos deve-se compreender as diversas formas de violência que constituem a questão agrária, pois desde o século XVI os processos de “acumulação por despossessão” (HARVEY) tem origem na apropriação privada dos territórios comunais dos povos originários.
Assim, pode-se afirmar que a concentração violenta da propriedade da terra constituí o Brasil nacionalmente, pois o projeto colonial se estrutura a partir de institutos jurídicos que almejam dar legitimidade a essa apropriação violenta da terra.
A modificação do regime de propriedade agrária só ocorreu com a Lei de Terras (1850), instrumento jurídico que transformou a terra em mercadoria. Com essa lei foram estipulados valores altíssimos para as operações de regularização de propriedades agrárias, o que impossibilitou o acesso a maior parte da população. Soma-se a isso a prática da grilagem fundiária, que através do uso de documentação falsa possibilitou a apropriação por parte das oligarquias rurais de milhares de hectares de terras públicas ou territórios de povos indígenas, quilombolas, campesinos e povos tradicionais.
Sobre isso, um relatório da Oxfam Internacional (2019) mostrou que a América Latina tem a maior concentração de terras do mundo, 1% das fazendas ou estabelecimentos rurais na região concentravam mais da metade – 51,19% – de toda sua superfície agrícola. Especificamente no Brasil, os dados do Censo Agropecuário de 2017 apontam que 50.865 propriedades – que correspondem a cerca de 1% do total de estabelecimentos rurais – concentram 47,52% das terras agrícolas.
Portanto, a estrutura agrária brasileira remonta o período colonial e foi historicamente legitimada pelo sistema jurídico que tem servido para proteger os latifúndios produtores de commodities destinadas para a exportação, que deixam um rastro de desmatamento e poluição nas terras e águas que utiliza. Em contrapartida, as terras destinadas à produção de alimentos pela agricultura familiar vêm sendo reduzidas há décadas.
Essa desigualdade do acesso à terra está por trás dos altos números de conflitos no campo no Brasil. O país é o mais letal do mundo para defensores da terra e do meio ambiente, de acordo com os relatórios anuais produzidos pela organização Global Witness. Entre 2012 a 2021, foram 342 assassinatos no Brasil, quase 20% do total mundial. Já dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mapearam 2.018 conflitos no campo em solo brasileiro em 2022, envolvendo um total de 909.450 pessoas. Desses casos, cerca de 1.946, ou seja, 96,4%, são de ações violentas contra essas comunidades e seus integrantes, as quais resultaram no assassinato de 47 pessoas. Na comparação com o ano de 2021, no qual 36 pessoas foram mortas, verifica-se um crescimento de 30,56%.
Esse tipo de estrutura agrária contribui decisivamente para os elevados índices de desigualdade social brasileira e, por conseguinte, a falta de uma alimentação adequada e saudável para a maior parte da população brasileira.
Contudo, mesmo no período mais repressivo de nossa história a resistência no campo não diminui, sendo que no final dos anos 1970, em plena luta pela democratização do país começa a surgir o maior movimento social do Brasil. Se organizam algumas ocupações de terras, no Rio Grande do Sul, a mais famosa delas, em 1981, foi a Encruzilhada Natalino. Em 1984, na cidade de Cascavel-PR, centenas de trabalhadores rurais fundam um movimento social camponês, autônomo, que lutasse pela terra, pela Reforma Agrária e pelas transformações sociais necessárias para o nosso país, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que neste ano completa 40 anos de existência.
Ao longo de mais de quatro décadas, a luta desse movimento social campesino contra a alta concentração da propriedade da terra no Brasil, na esteira da resistência indígena e negra de séculos, tem sido a principal responsável pelo desenvolvimento da política de assentamentos rurais e pela inserção social e política dos camponeses – através da organização em acampamentos e cooperativas de produção – no escopo de pressionar o Estado para o cumprimento da Constituição Federal de 1988 que prevê a desapropriação de latifúndios improdutivos ou que não cumpram sua função social e para mostrar que é possível produzir sob o regime de cooperação alimentos saudáveis e sem veneno para a população brasileira.
Além disso, nesta semana está ocorrendo a Jornada Nacional de Lutas em Defesa da Reforma Agrária com o lema “Ocupar para o Brasil Alimentar”, são mais de 30 ações, em 14 estados da federação, mostrando a necessidade de garantir o direito à Terra e reforçando o dever constitucional de que o Estado brasileiro cumpra o art. 184, da Constituição Federal e realize uma reforma agrária que distribua terras para as mais de 105 mil famílias acampadas em todo o país.
Por isso, neste dia 17 de abril, aniversário de 28 anos do Massacre dos Carajás, reforçamos o canto de Daniel Viglietti no começo deste texto e recordamos os ensinamentos de Pedro Casaldáliga: “Malditas sejam todas as cercas! Malditas todas as propriedades privadas que nos privam de viver e de amar! Malditas sejam todas as leis, amanhadas por umas poucas mãos, para ampararem cercas e bois e fazerem da terra escrava e escravos os homens!”.
Vida longa ao MST!
Lutar, construir Reforma Agrária Popular!
* Professor, pesquisador e advogado. Professor da Faculdade de Direito (FaDir) da Universidade Federal do Rio Grande (Furg). Advogado membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (Renap). Pesquisador do Instituto de Pesquisa em Direitos e Movimentos Sociais – IPDMS. Atualmente compõe as coordenações do Comitê de Combate à Megamineração no Rio Grande do Sul e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida.