Agrotóxicos
Em ação inédita, organizações da América Latina denunciam Bayer à OCDE
Por Caroline Oliveira
Do Brasil de Fato
Em ação inédita, quatro organizações de países da América Latina e uma da Alemanha se juntaram para denunciar a empresa de bioquímica Bayer na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) pelos impactos do agrotóxico glifosato no meio ambiente e na saúde humana.
A denúncia foi feita ao Ponto de Contato Nacional (PCN) da Alemanha, onde está localizada a sede da Bayer, em Leverkusen, a 560 quilômetros de Berlim. O órgão é responsável por promover as diretrizes da OCDE para empresas multinacionais, bem como tratar de casos a partir de mecanismos de reclamação não judicial.
Entre as organizações que peticionam a denúncia, estão a Centro de Estudios Legales y Sociales, da Argentina; a Terra de Direitos, do Brasil; a BASE Investigaciones Sociales, do Paraguai; a Fundación TIERRA, da Bolívia; e o European Center for Constitutional and Human Rights (Centro Europeu dos Direitos Constitucionais e Humanos, em português), da Alemanha. A denúncia foi peticionada virtualmente, mas um ato simbólico foi realizado nesta quinta-feira (25), em frente ao Ministério da Economia da Alemanha.
O objetivo é dar visibilidade para a responsabilidade da empresa Bayer sobre os impactos negativos ao meio ambiente e à vida devido ao uso de produtos geneticamente modificados, como sementes e agroquímicos modificados à base de glifosato. De acordo com as organizações, esses impactos violam direitos humanos dos países do Cone Sul durante os últimos 30 anos.
Christian Schliemann-Radbruch, do European Center for Constitutional and Human Rights, explica que a Lei da Cadeia de Abastecimento, sancionada em 2021 e em vigor desde o ano passado, obriga as empresas alemãs com mais de mil funcionários a se responsabilizarem pelo cumprimento dos direitos humanos nas cadeias de abastecimento globais. Isso envolve, por exemplo, proteção contra trabalho infantil, à saúde humana e ao meio ambiente.
Apesar de estar em vigor, as organizações defendem que a atuação da Bayer, que tem 100 mil funcionários, sendo 22 mil apenas na Alemanha, foge aos critérios estabelecidos pela legislação.
“Sobre responsabilidade empresarial, não só da Bayer, como se outras grandes empresas que têm o mesmo negócio, se espera das empresas a garantia de que os direitos humanos não serão violados em sua cadeia de valor descendente, ou seja, da produção ao consumo do usuário final”, afirma Schliemann-Radbruch.
O advogado explica que, a despeito das sementes transgênicas serem proibidas na Alemanha, a tecnologia para este tipo de produto provém de quatro empresas que têm a maioria do poder de mercado. “Duas dessas empresas, a Bayer e a Basf, são da Alemanha, que estão produzindo esse tipo de sementes. Existem relações contratuais e com essa tecnologia, as empresas têm influência sobre toda a cadeia de valor nesses países”, afirma.
“Dado esse poder, tem também uma responsabilidade para os impactos. Com essa perspectiva, temos que voltar à Alemanha para analisar o que podemos fazer, porque a sede está aqui, porque o dinheiro que as empresas ganham vai para a Alemanha. Então também tem a ver com a sociedade alemã. Se aqui está seguro, não é a mesma coisa quando estamos exportando e produzindo impactos negativos na saúde e em outros diretos em outros países.”
O Ponto de Contato Nacional (PNC) da OCDE não tem poder judicial e, portanto, não pode determinar punições do tipo à empresa. Após a apresentação da denúncia, a OCDE tem um prazo de aproximadamente três meses para decidir se admite ou não o caso.
Caso a denúncia seja admitida, é feita uma mediação com a empresa para receber as solicitações e chegar a um acordo final. Caso isso não seja possível, o PCN publicará uma declaração final explicando as questões levantadas, as razões pelas quais não foi alcançado um acordo e poderá fazer recomendações à empresa para a aplicação das Diretrizes da organização.
Glifosato
O glifosato é o princípio ativo do Rondup, o agrotóxico mais vendido mundialmente para eliminar as ervas daninhas das culturas agrícolas e mesmo dos espaços públicos. O pesticida era produzido pela agroquímica Monsanto, desde a década de 1970, comprada pela Bayer por US$ 66 bilhões (o equivalente a R$ 346 bilhões, de acordo com a taxa de câmbio de hoje), em 2018, consolidando a empresa como o maior grupo de agrotóxicos e transgênicos do mundo.
No ano passado, os 27 Estados-membros que compõem a União Europeia se reuniram para decidir sobre a proibição do agrotóxico, mas distante de um consenso, a autorização de produção e comercialização do glifosato acabou sendo prorrogada por mais 10 anos, até dezembro de 2033. A autorização anterior, que foi renovada em 2017 por cinco anos, expirou-se em dezembro de 2022. A licença, então, foi prorrogada por mais um ano à espera de uma análise científica e da União Europeia sobre a sua proibição.
Na Alemanha, uma das promessas do primeiro-ministro Olaf Scholz, do Partido Social-Democrata (SPD), em dezembro de 2021 – ano em que foi eleito para assumir a chancelaria alemã – era a de acabar com a produção e comercialização do glifosato até o ano passado. As organizações relacionam a demora principalmente ao Partido Liberal, que junto do Partido Verde forma a coalizão de centro-esquerda do governo, por barrar projetos no sentido da proibição do agrotóxico.
Outros países europeus têm algum nível de restrição ao químico, mas sem uma proibição total, tendo em vista que não há um consenso sobre se os países-membros da União Europeia podem legislar sobre o assunto a despeito das decisões do Comitê Europeu. Na França, seu uso por particulares está proibido desde 2019, bem como nos Países Baixos e na Bélgica. Em Portugal, a proibição é para espaços públicos.
No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) emitiu algumas restrições ao glifosato, em dezembro de 2020, mas manteve a sua utilização. No ano anterior, em março de 2019, o órgão publicou um parecer apontando que o glifosato “não apresenta características mutagênicas e carcinogênicas” e que “não é um desregulador endócrino”, ou seja, não interfere na produção de hormônios.
Nesse cenário, a Bayer lidera o mercado de agrotóxicos, bem como de sementes geneticamente modificadas no Brasil. Segundo um relatório de 2022 da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), o glifosato é o agrotóxico mais vendido em território brasileiro. Apenas naquele ano foram comercializadas cerca de 800 mil ingredientes ativos de agrotóxicos, sendo 230.519 toneladas de glifosato. Apenas no Paraná, foram 31.270 toneladas do ativo.
Na mesma linha, dados da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida mostram que dos 2.007 novos agrotóxicos registrados no governo Bolsonaro, de primeiro de janeiro de 2019 até 20 de novembro de 2022, 30% são proibidos na União Europeia. Outro dado utilizado na denúncia contra a Bayer é que em 2019 foram contabilizadas 8.412 intoxicações por agrotóxicos, o que representa um aumento de 109% em relação a 2010. Entre as crianças de zero a 14 anos, foram 9.806 intoxicações de 2010 a 2021. Destas, 91 morreram intoxicadas.
A discussão sobre a proibição do glifosato ocorre paralelamente a movimentos de estudos internacionais que apontam para o aspecto cancerígeno do agrotóxico. Em 2015, a Agência Internacional para a Pesquisa do Câncer (AIPC), órgão ligado à Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou um relatório em que afirma que o glifosato é um agente potencialmente causador de câncer, mais precisamente o linfoma Non-Hodgkin.
Caso brasileiro levado à OCDE
Na denúncia levada à OCDE, o caso brasileiro em questão é o impacto do uso do glifosato sobre três aldeias indígenas Avá-Guarani nos municípios de Guaíra e Terra Roxa, a cerca de 645 quilômetros de Curitiba, capital do Paraná, e na divisa entre Brasil e Paraguai. De acordo com as organizações peticionárias, 509 dos 661 estabelecimentos agropecuários de Guaíra e 921 dos 1.209 estabelecimentos agropecuários de Terra Roxa usam agrotóxicos, predominantemente nas plantações de soja e milho.
“O uso intensivo de agrotóxicos contamina rios, alimentos, animais e povos indígenas. Os pesticidas são usados como arma química para confinar os povos indígenas a uma faixa de terra cada vez menor. Dependentes de rios e nascentes para acesso à água, as aldeias relatam doenças frequentes, como vômitos, dores de cabeça, abortos espontâneos, dificuldade para respirar, entre outras, principalmente entre idosos e crianças”, relatam as organizações.
Também afirmam que há “o desaparecimento de espécies silvestres de pássaros, abelhas, borboletas, animais de caça e diminuição do número de peixes nos rios e perda da capacidade de produção de alimentos devido às águas e rios contaminados, gerando impactos na soberania alimentar dessas pessoas. Existem áreas fumigadas com agrotóxicos próximas às casas ou estradas indígenas”.
Um levantamento de 2023 da Comissão Guarani Yvyrupá (CGY), que reúne coletivos do povo Guarani nas regiões Sul e Sudeste do Brasil na luta pela terra, mostrou que, com exceção de três aldeias localizadas na área urbana, todas as demais aldeias Avá-Guarani estão ao lado dos plantios.
Em alguns casos, a distância entre as plantações e as casas dos indígenas é menor do que dois metros, muito aquém do que determina a Portaria 129/2023 de uma distância mínima de 50 metros de mananciais de captação de água, núcleos populacionais, escolas, entre outros, para aplicação terrestre de agrotóxicos. O levantamento aponta ainda que as aldeias estão com cerca de 60% de seus territórios apropriados pelo agronegócio, estando apenas 1,3% ocupada por roças e moradias indígenas e 12% por áreas florestadas.
Jaqueline Andrade, advogada da Terra de Direitos, explica que “as aldeias estão cercadas por grandes fazendas, com a monocultura, principalmente, da soja transgênica, com alto uso de agrotóxicos. Então as aldeias indígenas têm denunciado um processo de confinamento territorial”.
“Pela presença do agronegócio aos arredores dessas aldeias, o nível de contaminação do solo, da água e intoxicação dos indígenas, tanto a intoxicação aguda como crônica, é latente. Somado a isso o fato de que os indígenas denunciam o processo de perda da biodiversidade, perda dos cultivos para subsistência, como mandioca, milho e feijão, porque os agrotóxicos atingem essas plantas, essas plantas murcham, as raízes apodrecem e os frutos não vingam”, afirma.
Nas palavras da advogada, trata-se também de um estado de “insegurança alimentar” somado às questões de saúde latentes. Há “casos relatados de coceira na pele, febre, vômito, dor de cabeça, que são sintomas clássicos da intoxicação aguda, bem como muitos casos de depressão e suicídio. Pelos estudos que a gente já tem aprofundado, os agrotóxicos cumprem um papel relevante na contribuição do adoecimento mental”.
“Também há registro de abortos espontâneos justamente por conta da deriva dos agrotóxicos. Há vários estudos que comprovam que a presença de agrotóxicos nessas áreas representa um risco justamente porque há uma influência por doenças endócrinas e cancerígenas, doenças que influenciam a contaminação, inclusive, do leite materno.”
Também há o registro de proximidade entre as fazendas e as aldeias, chegando em alguns casos a menos de dois metros da residência das lideranças indígenas, o que contraria as normativas brasileiras que estabelecem distâncias mínimas para a aplicação de agrotóxicos, seja por pulverização terrestre, aérea ou com drones. “Esses fazendeiros estão violando as próprias normativas que são criadas por órgãos ambientais ou mesmo pelo Ministério da Agricultura e Pecuária, que estabelece essas distâncias mínimas.”
Além disso, em algumas situações, afirma Andrade, “os agrotóxicos são utilizados como armas químicas contra as comunidades indígenas” com o objetivo de expulsá-los de territórios em processo de retomada e de luta pela demarcação, que incluem áreas ocupadas por fazendas.
De acordo com Jaqueline Andrade, os estudos das organizações mostram que grandes cooperativas nos municípios adquirem produtos da Bayer, que detém uma posição dominante no mercado. O herbicida Roundup, usado para dessecar a soja, é um dos principais agrotóxicos empregados para essa finalidade.
Casos de outros países
Além do caso brasileiro, situações enfrentadas por populações da Bolívia, Paraguai e Argentina também compõem o conteúdo da denúncia. Cerca de 60% da Colônia Yeruti, localizada no leste do Paraguai, a cerca de 212 quilômetros da capital Assunção, está ocupada pelo cultivo mecanizado às custas das famílias camponesas que ali vivem, a despeito de ser um território oficialmente destinado para a reforma agrária.
Além da perda do espaço para o agronegócio, as constantes e intensas fumigações com agrotóxicos fez com que parte da comunidade fosse hospitalizada com sinais de intoxicação por agrotóxicos. Em 2011, um dos camponeses veio a óbito, e seu caso foi denunciado ao Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), que, por sua vez, deu um parecer favorável às vítimas do caso.
Na Argentina, o bairro Villa Alicia, que faz divisa com os campos de soja, em Pergamino, famílias inteiras começaram a enfrentar sérios problemas de saúde, incluindo alergias e complicações respiratórias, atribuídos às fumigações de agrotóxicos na região. As análises clínicas revelaram altas concentrações de glifosato e seu metabólito, ácido aminometilfosfônico (AMPA), na urina de alguns moradores, que tiveram de mudar de residência por recomendação médica.
Um dos casos está em processo judicial, que culminou, em setembro de 2019, em uma medida cautelar: ficou proibida a pulverização de agrotóxicos a menos de 1.095 metros de qualquer área urbana em Pergamino, a 230 quilômetros de Buenos Aires, e a uma distância mínima de 3 mil metros para fumigação aérea.
Naquele ano, três produtores rurais foram processados por serem coautores do crime de “contaminação do meio ambiente em geral, de maneira perigosa à saúde, através da utilização de resíduos classificados como perigosos (agrotóxicos)”. Além disso, dois funcionários municipais, vinculados às Secretarias de Produção e Secretaria-Geral, foram processados por negligência contínua em suas responsabilidades públicas.