Antônio Tavares

MST e entidades pressionam governo cumprimento de sentença sobre camponês morto pela PM

Caso aconteceu em 2000 e envolveu dura repressão policial por parte do governo do Paraná, resultando em penalidades para poder público por parte da Corte IDH
Representantes das três entidades civis envolvidas no processo estiveram no Ministério dos Direitos Humanos (MDHC) na última quinta (25). Foto: Divulgação 

Por Cristiane Sampaio
Do Brasil de Fato

Uma comitiva liderada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e pelas organizações Justiça Global e Terra de Direitos iniciou um trabalho de pressão sobre o governo federal para pedir que a gestão cumpra a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) que condenou o Estado brasileiro pela repressão policial que resultou na morte do camponês Antônio Tavares no ano 2000, no Paraná. O atentado também terminou com mais de 190 feridos, incluindo idosos e crianças. A decisão, publicada no mês passado, estabeleceu uma série de reparações e outras medidas. O Brasil tem um ano para cumprir as orientações do órgão.

Representantes das três entidades civis envolvidas no processo estiveram no Ministério dos Direitos Humanos (MDHC) na última quinta (25) para uma conversa com interlocutores ligados ao ministro, Silvio Almeida. A ideia era travar os diálogos iniciais e firmar acordos para acertar a viabilização do cumprimento das determinações. “Foi uma reunião para a gente ouvi-los e saber como o governo vai aplicar a sentença. Foi muito positivo ouvir do ministério todos os passos, os procedimentos, as normativas de aplicação da sentença. Combinamos que a aplicação tem que ser um esforço coletivo do MST, das demais entidades e do governo federal pra gente conseguir atingir a meta. Então, é um grande mutirão, uma soma de energias nessa perspectiva a partir de agora”, disse ao Brasil de Fato Roberto Baggio, da direção nacional do MST pelo Paraná.

Em tese, em eventual caso de descumprimento da decisão, o governo não fica sujeito a um poder coercitivo, como ocorre diante de condenações emitidas pelo Poder Judiciário dentro do país,  mas a Corte pode estabelecer sanções de ordem moral ao Estado brasileiro, que figura na lista dos 20 países que já reconheceram a competência do órgão. A Corte IDH é uma instância de decisão vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA).

Foto: Clarice Castro/MDHC

Dentro do Brasil, cabe ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) acompanhar o cumprimento das medidas naquilo que compete às instituições do sistema de Justiça. O Ministério das Relações Exteriores (MRE) também deve monitorar os trâmites porque o Poder Executivo é o personagem-chave de todo o processo, pois é ele que responde pela execução das tarefas mais importantes.

Penalidades

No caso do agricultor Antônio Tavares, a Corte IDH entendeu que o país deve pagar indenização por danos materiais e imateriais às vítimas da repressão policial, fornecer tratamento de saúde gratuito aos familiares de Tavares e às demais vítimas do atentado e adequar o seu ordenamento jurídico em relação à competência da Justiça Militar para que não caiba mais a essa instância o julgamento de delitos praticados por militares contra civis.

“A sentença faz determinações muito contundentes e de cunho estrutural, afirmando que a Justiça Militar, tal qual existe no Brasil, é absolutamente incompatível com parâmetros internacionais e interamericanos. A Corte é categórica ao dizer que ela não pode ser competente para julgar absolutamente nenhum crime cometido contra civil”, reforça a advogada Daniela Fichino, da Justiça Global.

O Estado deve ainda incluir, na grade de formação curricular das forças de segurança que atuam em manifestações públicas no Paraná, conteúdos sobre o respeito e a proteção da população civil, principalmente crianças e adolescentes, e sobre os padrões de uso da força em cenários de protestos populares. Por fim, cabe também ao país adotar providências para proteger o monumento em homenagem a Antônio Tavares, que foi colocado no município de Campo Largo (PR), na BR-277, local do crime, em maio de 2001. Projetada pelo arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer, a obra foi reconhecida como patrimônio municipal histórico-cultural em 2023.

Outra obrigação imposta ao Brasil é divulgação do conteúdo da sentença para que ela seja amplamente conhecida por autoridades e instituições do Paraná, de forma que possa desestimular a ocorrência de outros casos semelhantes. “Depois de uma grande luta, que durou 24 anos, a justiça foi feita no sentido de restabelecer a verdade, de reconhecer que foi assassinado um militante pela Polícia Militar (PM), pelo aparato de segurança do estado. Essa justiça não foi assegurada no Brasil e a Corte nos deu, então, a possibilidade de ela ser feita agora. Por isso nós insistimos na ampla divulgação em todas as redes, aparatos de estado, instituições, para que saibam que há uma sentença que proíbe a violência política contra os trabalhadores”, comenta Baggio.

Encaminhamentos

O governo federal iniciou o cumprimento da sentença nas últimas semanas. No dia 3 de abril, por exemplo, uma portaria assinada por Silvio Almeida deu publicidade ao caso no Diário Oficial da União (DOU), conforme determina a Corte IDH nesse tipo de decisão. A gestão também começou uma rodada de publicações em plataformas de comunicação que dão divulgação à sentença. Outras veiculações estão previstas para serem feitas nos próximos meses. Na reunião com as organizações civis, a equipe do ministério firmou ainda alguns encaminhamentos.

As entidades acordaram, por exemplo, que deverão encaminhar, nas próximas semanas, a lista de documentos das vítimas envolvidas no ataque da PM aos trabalhadores, bem como a de familiares de Antonio Tavares. O objetivo é começar a organização do processo de indenização, que tem pela frente um longo fluxo interno no Poder Executivo. Pela determinação da Corte, todas as 197 vítimas oficialmente reconhecidas no processo devem ser indenizadas. As organizações também deverão listar os casos de trabalhadores que carecem de atendimento de saúde relacionado a danos provocados pela tragédia, de forma que essas informações serão repassadas ao MDHC para que haja outros encaminhamentos internos no governo federal.

Entre os demais pontos acordados está ainda a realização de um ato nacional no Paraná para dar visibilidade à sentença. A ideia é que essa agenda seja articulada pelo Executivo federal em diálogo com as entidades envolvidas e que o evento ocorra em 1º de maio de 2025, quando se completarão 25 anos do crime. “Até lá nós estaremos em mobilização permanente no sentido de que toda a sentença seja aplicada. E agora, no dia 2 de maio, vamos também fazer um ato em memória [do ocorrido] e de anúncio da sentença e, a partir daí, entraremos em um grande mutirão de preparação da aplicação de todas as partes da sentença, fechando isso com o grande ato nacional em 2024”, afirma Roberto Baggio.  

Segundo informou à reportagem a chefe de gabinete do ministro Silvio Almeida, Marina Lacerda, o teor e os encaminhamentos do encontro da equipe com as organizações civis serão repassados para o mandatário para que haja, na sequência, os devidos trâmites internos.  

Simbologia

Para as entidades peticionárias no processo, o resultado do julgamento do caso do assassinato de Antonio Tavares precisa ser interpretado à luz da simbologia da sentença. “É um caso paradigmático porque, apesar de a Corte já ter tomado decisões sobre vários casos de violência no campo, essa daqui tem uma dimensão coletiva. Há um reconhecimento da Corte de que há uma violência contra uma pessoa que perdeu a vida e contra uma manifestação de centenas de trabalhadores que foram violentados”, destaca Darci Frigo, da Terra de Direitos.

“É urgente o cumprimento dessa sentença, primeiro, porque as vítimas estão há 24 anos esperando por justiça e, segundo, porque tem várias medidas que podem servir de parâmetro para não haver o efeito de repetição de ações e violações de direitos humanos da PM contra movimentos sociais. Inclusive, também é importante para que o país avance no processo de reconhecimento do direito de manifestação para que a gente avance ainda, com isso, no direito à reforma agrária”, emendou Frigo.

A assessora jurídica Camila Gomes, coordenadora de Incidência e Litigância Internacional da Terra de Direitos, afirma que as organizações trabalham para evitar que o cumprimento da sentença por parte do poder público se resuma ao nível “burocrático”. Ela assinala a importância de a decisão da Corte IDH ajudar a promover uma mudança cultural nas instituições, de forma a superar o quadro de impunidade no Poder Judiciário do Brasil, inclusive para evitar que outros casos do tipo precisem ser levados a essa instância internacional. Em geral, o órgão só recebe processos relacionados a casos que já sofreram um esgotamento nas instâncias da Justiça nacional.

“A gente tem um acervo enorme de decisões e recomendações de órgãos e tribunais internacionais em matéria de direitos humanos e há um passivo de cumprimento. Então, a fase de implementação de uma sentença da Corte exige muitos esforços. O fato de a gente ter vindo aqui a Brasília para tratar disso é porque essa sentença vai precisar de muito engajamento. A gente não quer que aconteça com ela o que aconteceu com todas as outras da Corte IDH que versam sobre violência contra sem-terra”, afirma.

Após a reunião da comitiva das organizações com o Ministério dos Direitos Humanos, o grupo afirma que irá buscar agora o Ministério da Justiça e o Conselho Nacional de Justiça. As agendas ainda não têm nada para ocorrer.

O caso

O agricultor Antonio Tavares Pereira foi assassinado pela PM do Paraná em 2 de maio de 2000 durante o trajeto de mais de 1.500 militantes do MST que, na ocasião, viajavam à capital do estado para participarem da Marcha da Reforma Agrária, evento também relacionado à comemoração do Dia dos Trabalhadores. O comboio envolvia 50 ônibus e foi duramente reprimido pelas forças de segurança. Na época, o estado estava sob o comando de Jaime Lerner (Democratas).

A PM bloqueou a rodovia e proferiu uma série de tiros, sendo um deles o que vitimou Tavares. Os policiais não prestaram socorro aos trabalhadores. Morto aos 38 anos, o camponês deixou esposa e cinco filhos. Ele era assentado da reforma agrária em Candói, na região central do estado, e integrava o Sindicato dos Trabalhadores Rurais do Município.  O caso foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2004, após a Justiça brasileira ter arquivado o processo sem que os responsáveis fossem punidos. O caso foi admitido pela Corte IDH em fevereiro de 2021, até que se chegou à sentença dada pelo órgão em abril deste ano.

Edição: Thalita Pires