Reforma Agrária Popular
“Ocupações de terra são um direito de ação pela redução da pobreza”
Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
Ao longo dos 40 anos do MST, uma das bandeiras que mais se destacam é que, quando se trata de Reforma Agrária, também estamos abordando a reforma urbana, a solução para o acesso à moradia, ao emprego digno, à água e à qualidade de vida. Este é o caminho para abordarmos as crises complexas e urgentes pelas quais passamos hoje.
Nesta última parte da entrevista exclusiva com a advogada socioambiental Larissa Packer, ela aprofunda a revisão de políticas, práticas e sistemas que têm impactos significativos na sociedade e no meio ambiente e aponta soluções e caminhos possíveis para um modelo mais sustentável e justo, que requer não apenas a redistribuição de terras, mas também uma mudança fundamental na maneira como produzimos, distribuímos e consumimos alimentos.
Enfrentar a crise climática e alimentar, promover a inclusão social e econômica, reduzir as desigualdades é o desafio colocado ao MST e a todo o conjunto da sociedade, e isto está muito claro quando vemos sobre como funciona o “capitalismo verde” e o mercado da fome (entenda melhor nas duas primeiras partes da entrevista).
Confira:
A partir dos seus apontamentos, vimos como o Brasil se tornou um laboratório de agroinvestimentos financeiros e isso está associado ao desmatamento. Nesse sentido, as ocupações de terras poderiam ser consideradas uma forma de resistência ao “capitalismo verde”?
As ocupações de terra dentro do sistema constitucional brasileiro são, na realidade, um direito de ação. É um direito de agir da população direta e indiretamente impactada pela omissão inconstitucional do legislador e do Executivo em implementar a distribuição de terras e a Reforma Agrária para cumprir com os fins e os objetivos da República do Brasil, com a redução da pobreza e das desigualdades sociais e regionais.
Temos uma imposição de haver uma progressiva redução das desigualdades e da pobreza, devemos ler todos os capítulos da Constituição com esses fins, das políticas públicas, que devem orientar os legisladores e os intérpretes da Constituição. Há mais de 35 anos de omissão do poder público na implementação da destinação de terras públicas e na identificação das terras devolutas, na necessária discriminação e identificação de quais terras são realmente públicas e quais terras devem ter uma destinação prioritária para a agricultura familiar, para aqueles que são elegíveis como beneficiários da Reforma Agrária para cumprir com todos os dispositivos da Constituição.
E isto está na lei, certo?
Sim. O artigo 186º impõe que só há direito à proteção à propriedade privada das terras para aqueles que consigam gerar benefícios também para toda a população.
Essa propriedade privada não pode gerar desrespeito à legislação ambiental, nem à legislação trabalhista, e ao mesmo tempo, deve cumprir com a sua função econômica, produzindo alimentos e, não só commodities, para toda a população.”
Isso significa que, além da discriminação das terras devolutas e das terras públicas, devem ser destinadas, segundo o artigo 189, principalmente aos beneficiários da Reforma Agrária, ou seja, aqueles mais pobres, exatamente para cumprir com os fins da redução da pobreza e das desigualdades, também o Estado deve agir no sentido de identificar se as propriedades estão cumprindo com essas dimensões sociais, econômicas, ambientais e trabalhistas.
Nós sabemos que no Brasil temos poucos precedentes, raríssimos, de implementação da desapropriação das terras pelo descumprimento da dimensão ambiental, por violar a legislação ambiental, por desmatar vastas áreas de preservação permanente de reserva legal ou ainda pelo fato de haver trabalho análogo ao de escravo na área. Mas isso precisa começar a acontecer no Brasil para que seja possível colocar em primeiro lugar as necessidades de combate à crise ecológica, à crise climática, à crise alimentar e à crise civilizacional que estamos passando.
Existe a necessidade de se revisar o que realmente é essencial para os países começarem a implementar políticas públicas estruturantes de médio e longo prazo, e não só ficar reagindo a catástrofes”.
A crise climática e a crise civilizacional convoca os tomadores de decisão e os gestores públicos a mudarem a cartilha neoliberal, a reinterpretar as obrigações civilizacionais, as obrigações constitucionais das principais instituições democráticas e olharem isso para um programa de longo prazo para o restabelecimento das condições de vida das pessoas, principalmente as mais pobres e do planeta.
A pandemia também nos convocou a isso. Vimos que a falta de habitação, ou seja, quando você tem uma situação de desigualdade que leva a três ou quatro pessoas terem que compartilhar o mesmo quarto; quando a maior parte da população não tem acesso à água, à higiene adequada. Não havia como fazer a quarentena, o isolamento social para recuperação da pandemia e, ao mesmo tempo, essas pessoas mais pobres, que vivem no adensamento populacional nos subúrbios, nas comunidades e nas favelas, que não têm como fazer esse isolamento, também não podem parar de trabalhar. Muitas vezes, entre morrer de fome, morrer de um tiro, de uma bala perdida, ou de uma pandemia, muitos optavam por estar nas ruas, exatamente por uma necessidade de vida ou morte, uma necessidade que eles têm todos os dias.
Ao se tratar da Reforma Agrária, quais outras políticas públicas importantes que também se relacionam com isso?
Quando estamos falando de Reforma Agrária, estamos falando também de uma reforma urbana, de resolver o acesso à moradia, o acesso a trabalho digno, o acesso à água, à dignidade de vida. Portanto, a Reforma Agrária é, sim, um dos mecanismos estruturantes que precisa fazer parte de uma agenda de curto, médio e longo prazo, dentro de uma dimensão de combate à crise civilizacional e às crises que são urgentes do século XXI.
A Reforma Agrária é uma das medidas mais eficientes, com propostas de maior resiliência para o combate à crise climática e à crise civilizacional que vivemos na contemporaneidade”
A inflação dos alimentos afeta, sobretudo, a renda das famílias mais pobres, que gastam em média 40% de sua renda com alimentação e energia. Além disso, o uso intensivo de recursos naturais no agronegócio, como água e energia, levanta preocupações sobre a sustentabilidade dessas práticas a longo prazo.
Não basta apenas distribuir terras e sem realizar políticas públicas que destinem o orçamento público não para a compra de insumos para essas corporações, de commodities para as tradings, traders e comercializadores, mas para a compra de alimentos, o que a gente chama de “agronegocinho”. Não adianta mantermos a lógica de distribuição de terras sem alterar a lógica dos sistemas alimentares.
E não é possível falar de distribuição de terras, e de Reforma Agrária, sem falar na necessidade de alteração do sistema de produção, na alteração da lógica de captura dos recursos naturais e do orçamento público por parte de poucas corporações que hegemonizam os negócios de alimentos no mundo. É necessário aos países reverem a prioridade que dão às suas políticas públicas, ao seu orçamento público, de sua proteção jurídica e administrativa, a agentes que são identificados como responsáveis pelo aprofundamento das crises que assolam as populações no século XXI.
É necessário os países reverem determinações já ultrapassadas da OMC [Organização Mundial do Comércio], que estão no TRIPS – Acordo Internacional de propriedade Intelectual relacionado ao Comércio-, em que se coloca a necessidade dos países subordinarem os seus interesses, tanto com relação à soberania alimentar quanto à saúde, aos interesses corporativos. Os países devem, a partir de 1994, com a adesão à OMC e a este Tratado, alterar suas legislações para providenciar a proteção da propriedade de sementes e de outras tecnologias agrícolas para essas poucas corporações, excluindo todo o trabalho intergeracional dos agricultores relacionados ao melhoramento genético das sementes.
Existem algumas reformas estruturantes em relação a como é organizada a cadeia em torno da propriedade privada, da propriedade intelectual, que os países precisam rever. São tratados que, se os países quiserem sair dessa subordinação colonial, precisam, juntos com uma força conjunta dos países do Sul Global, se posicionar frente àquilo que já não é mais relevante e que aprofunda as desigualdades e a própria crise, essa sobreposição de crises.
Como a agroecologia propõe sistemas mais eficientes e resilientes, reduzindo a dependência desses recursos?
Temos a agroecologia como um sistema de construção e de sistematização de práticas existentes há milênios, mas também a sua atualização para o momento atual, na produção de bioinsumos, na promoção dos policultivos com baixa dependência de petróleo ou nenhuma dependência de petróleo, com pouco uso de fertilizantes sintéticos ou nenhum, sistemas de rotação, sistemas de pousio [em que a terra é deixada em descanso, por um período para a melhoria da sua fertilidade] e queima. São vários tipos de conhecimentos, técnicas e tecnologias comuns que devem ser protegidas e incentivadas pelo Estado, mas não só como nicho de mercado, mas como um conhecimento e um conjunto de técnicas que deve ser aplicado para realmente fornecer condições de combater essa crise alimentar e essa crise climática.
São alternativas de abastecimento popular que cada vez mais devem ser incentivadas, mas não como “um nicho complementar ao sistema agrícola”. Porque, se continuar dessa forma, você continua trabalhando com a agroecologia como sistema de compensação e colocando o principal foco do orçamento público, da proteção legislativa e da execução de políticas públicas novamente para um agronegócio baseado na captura, concentração de terras, água, e nas mãos de poucos atores.
Além da Reforma Agrária, é imperativo combater as crises atuais, a alteração gradativa dos sistemas agrícolas incorporando a agroecologia e outras técnicas e tecnologias, que dão “boas pistas” para que a produção de alimentos e, não de commodities, seja livre do petróleo e também da propriedade intelectual que amarra todo o sistema agrícola a poucos rentistas e a poucas corporações.
*Editado por Solange Engelmann