Aromas de Março
Quem depende de quem? A falta de salários e a desigualdade salarial das mulheres
Por Mahara Jneesh
Da Página do MST
A afirmação de que as mulheres são dependentes é uma generalização que não reflete a diversidade de experiências de trabalho e situações das mulheres ao redor do mundo. É verdade que as mulheres, de maneira geral, enfrentam desafios adicionais no acesso a oportunidades econômicas iguais, como disparidades salariais e barreiras de acesso a certos setores profissionais, além da sobrecarga de trabalho doméstico e cuidados.
Mesmo que as realidades das mulheres são diferentes a depender do contexto histórico socioeconômico e cultural, o fato é que a responsabilidade pelo trabalho doméstico e de cuidados, bem como o acesso a salários menores é quase uma regra ao redor do mundo na vida das mulheres. As mulheres foram historicamente colocadas como responsáveis pela casa, pelo espaço privado, e suas atividades exercidas são desconsideradas como trabalho, no entanto, todas as pessoas dependem desse trabalho para sobreviver, então, quem depende de quem?
Ademais, as mulheres trabalhadoras sempre ocuparam os dois espaços, público e privado, no exercício principalmente do trabalho doméstico e de cuidados. Muitas mulheres em diferentes épocas, passaram por situações que para a garantia de sua sobrevivência e de sua família, se colocaram para lavar roupas para fora, cozinhar alimentos para vender nas ruas, limpar casas de outras famílias e cuidar de crianças que não eram as suas, dentre outras inúmeras atividades necessárias para a existência humana. Assim, temos um quadro de desvalorização do trabalho doméstico e de cuidados sendo ele gratuito, que se quer é considerado um trabalho, ou remunerado com baixos pagamentos, que muitas vezes não alcançam o salário-mínimo, e com condições de trabalho precárias.
Trabalho doméstico no Brasil tem gênero, classe e raça
Segundo os dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 2016, o Brasil é o país com maior quantidade de trabalhadoras domésticas em todo o mundo, são 6,158 milhões de empregos domésticos, destes, 92% são ocupados por mulheres. Essa ocupação segue sendo a opção para grande parte das mulheres pobres e com baixo nível de escolaridade. As mulheres negras representam 65% das mulheres empregadas domésticas, ao mesmo passo que possuem menor índice de escolaridade e formalização no emprego que as mulheres brancas, conforme dados Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Ou seja, o emprego doméstico no Brasil tem gênero, classe e raça bem definidos.
O trabalho doméstico no Brasil tem suas características próprias de um passado colonial, que carrega até hoje em seu imaginário e em suas casas o lugar de servidão, este reservado, principalmente, às mulheres negras. Não é possível analisar o trabalho doméstico no Brasil sem entender as questões de poder envolvidas a partir do racismo e do patriarcado. Os estudos que fazem menção ao trabalho doméstico e às peculiaridades da construção social brasileira desde o seu período colonial podem ser encontrados, no trabalho de Saffioti (2013), nos quais é possível entender como a entrada das mulheres no mercado de trabalho capitalista é subordinada à acumulação capitalista.
O atraso é tamanho que o reconhecimento do emprego doméstico no Brasil possui recente regulamentação. O Projeto de Emenda Constitucional nº 72 de 2013, a PEC das domésticas, é um bom exemplo para refletir sobre a situação atual do emprego doméstico no Brasil. Uma emenda que garante os mesmos direitos já aplicados aos outros trabalhadores no que diz respeito à jornada de trabalho e aos direitos trabalhistas, agora também para a trabalhadora doméstica, foi um ponto criticado pelas classes que contam com esse serviço, mas o valorizam pouco. Guita Debert (2016) qualifica essa PEC enquanto uma “segunda abolição” para tratar especificamente das mulheres negras, a maioria das mulheres que realizam o trabalho doméstico assalariado no país.
Outra característica que dispõe das vicissitudes das mulheres no mundo do trabalho é a existência de uma bipolaridade do emprego feminino, conforme explica Bruschini (2007). De modo genérico, essa bipolaridade explica a concentração das trabalhadoras em dois polos distintos: um precário e desvalorizado, e outro, compreendendo profissões de maior prestígio, como médicas, advogadas, magistradas, ocupantes de cargos executivos em empresas do setor formal etc., apontando novamente as desigualdades entre as mulheres. No polo desenvolvido, que concentra as profissões técnicas, científicas e assemelhadas, a presença das mulheres demonstra que há um avanço nas ocupações predominantemente ocupadas por homens. Isso se deu graças a uma intensa transformação cultural que se concretizou a partir dos anos de 1970, garantindo a expansão da escolaridade das mulheres e sua entrada nas universidades.
A segregação também é constatada pelo diagnóstico de ocupações vistas tipicamente como femininas nos setores social e de serviços. Hirata (2001) enfatiza que a atividade feminina está concentrada em serviços: atendentes, secretárias, recepcionistas, atendentes de telemarketing. Na saúde e cuidados pessoais, as mulheres são a maioria em profissões como enfermeiras, babás e cuidadoras. Nesse polo inferior ocorre o crescimento do número de postos de emprego mal remunerados e sem perspectiva de carreira, sobretudo sob as formas de trabalho em tempo parcial, temporário e com contratos de tempo determinado.
Tendo em vista a existência desses dois polos, os dados revelam que as mulheres recebem um salário 19,4% menor em comparação com os homens no Brasil, com variações na disparidade conforme o grupo ocupacional.
Mas afinal, por que o trabalho de reprodução da vida, exercido principalmente pelas mulheres, apesar de fundamental para a existência humana, não é visto como parte fundamental da economia? Sem esse trabalho seria possível a existência humana? As respostas não são simples, mas nos dão condições de afirmar que a sociedade e a economia capitalista é que dependem das mulheres para existirem. Trabalhos exercidos de maneira gratuita e com baixas remunerações sustentam a acumulação capitalista.
Para entender o funcionamento dessa lógica, é preciso trazer a crítica ao pensamento econômico dominante, que valoriza como econômico apenas o que é ligado à esfera pública, masculinizada e monetizada, segregando tudo o que não é econômico à esfera privada, em que as relações e o trabalho doméstico e de cuidados realizados sequer são considerados trabalhos, estão na vida das mulheres praticamente como uma obrigação natural. É preciso valorizar o trabalho realizado pelas mulheres na reprodução da vida e produção do viver como um sustentáculo importante da economia, enxergando suas experiências na sustentação da vida e se propondo a discutir a redistribuição do trabalho doméstico e de cuidados, bem como o centro da economia ser o cuidado com a vida, não a busca incessante por lucros.
A ideia hegemônica de que o trabalho deve estar diretamente relacionado ao mercado, entretanto, foi difundida durante a construção da ciência econômica, tal como sugerem Carrasco, Borderías e Torns (2011, p. 20). Segundo elas, “desde finais do século XVIII, o pensamento econômico, ao associar progressivamente o trabalho ao mercado e ao salário, contribuiu de maneira muito decisiva para a desvalorização econômica do trabalho doméstico e de cuidados”. É a partir daí, também, que se pode observar a formação da ideia de que as mulheres são dependentes de salários de outras pessoas que não o delas. Uma visão de dependência que deixa ainda mais explícita a produção da invisibilidade do trabalho doméstico, uma vez que, na verdade, são dependentes aqueles que se mantêm vivos a partir do trabalho de alguém.
Afirmar que a economia existe muito além do mercado, reforça a importância da reformulação do conceito de trabalho, extrapolando a sua identificação como conjunto de atividades meramente orientadas para obter recompensa monetária, apesar desta ser fundamental. Por isso, merecem destaque, nessa experiência, a análise das relações que não envolvem trocas monetárias, partes fundamentais do funcionamento da economia a partir do cotidiano das mulheres rurais, identificadas nas práticas de doações, permuta e produção para o consumo próprio.
De acordo com um relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura, realizado no ano de 2023 em vários países, as mulheres que atuam no campo enfrentam condições desfavoráveis para exercer sua atividade como agricultoras. Elas têm acesso limitado a oportunidades, frequentemente enfrentam jornadas de trabalho mais longas e recebem salários inferiores aos dos homens. Foi revelado que as mulheres envolvidas na agricultura recebem apenas US$ 0,82 para cada US$ 1,00 auferido pelos homens.
Ademais, o controle sobre a produção que é comercializada não é feito pelas mulheres, embora elas participem diretamente das atividades da produção. A comercialização que é realizada, na maior parte dos casos, com o Cadastro de Pessoa Física (CPF) do homem (Siliprandi e Cintrão, 2015). Produtoras rurais têm, em geral, dificuldades de participar da comercialização em função de suas atribuições de gênero. Isso gera uma situação de subnotificação das atividades das mulheres no campo, o que faz parecer que elas não têm a real importância que possuem como protagonistas na sustentação da vida.
A política de valorização do salário-mínimo é uma pauta importantíssima encampada historicamente por sindicatos e movimentos sociais. Para grande parte das mulheres, como foi visto, que se encontram no polo precarizado, sendo assalariadas, é uma importante conquista. Valorizar o salário-mínimo acima da inflação é garantir diretamente maiores ganhos às mulheres. A recém-inaugurada, Lei de Igualdade Salarial, também é importante na atenção às iniciativas que possam garantir trabalho e salário igual aos homens e mulheres em diversos setores.
Por último, cabe destacar as iniciativas não governamentais, protagonizadas pelos movimentos sociais e populares que colocam a obrigatoriedade da participação e representação política igual para homens e mulheres em diversos espaços, a justa divisão dos trabalhos de produção e reprodução da vida, na coletivização de trabalhos como o cuidado de crianças e alimentação, por exemplo. Tais iniciativas não se esgotam nos exemplos mencionados, mas são fundamentais para enfrentar essa realidade desigual vivenciada principalmente pelas mulheres, para que essa noção de dependência seja revertida na valorização dos trabalhos de reprodução da vida.
Referências:
CARRASCO, C.; BORDERÍAS, C.; TORNS, T. El trabajo de cuidados: historia, teoría y políticas. Madrid: Los libros de la Catarata, 2019.
DEBERT, G. G. Migrações e o Cuidado do idoso. Cadernos Pagu, Campinas, v. 46, p. 129-149, 2016.
HIRATA, H. A precarização e a divisão internacional e sexual do trabalho. Sociologias, Porto Alegre, n. 21, p. 24-41, jan./jun. de 2009.
ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Trabalho Doméstico. Brasília, jun. 2016. Disponível em: <https://www.ilo.org/brasilia/temas/trabalho-domestico/lang–pt/index.htm%20acesso%20em%2020%20de%20fevereiro%202019>. Acesso em 20/04/2024
PINHEIRO, L. S., JUNIOR, A. T. L., FONTOURA, N. O. et. al. (Org). Mulheres e Trabalho: breve análise do período 2004-2014. (Nota Técnica nº. 24). Brasília: IPEA, 2016.
SAFFIOTI, H. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. 3. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2013.
SEMPREVIVA ORGANIZAÇÃO FEMINISTA (SOF). Práticas feministas de transformação da economia: autonomia das mulheres e agroecologia no Vale do Ribeira. São Paulo: SOF, 2018.
SILIPRANDI, E.; CINTRÃO, R. As mulheres agricultoras no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Segurança Alimentar e Nutricional, Campinas, v. 18, n. 2, p. 13-32, 2015.
* Economista, especialista em Economia e Desenvolvimento Agrário e mestre em História. Militante do Setor de Formação da MST, com trabalhos escritos a respeito da Marcha Mundial das Mulheres e o Feminismo Camponês e Popular.
**Editado por Solange Engelmann