LGBT+ Sem Terra

Por que o MST discute a transexualidade na luta pela terra?

Na semana em que comemoramos o Dia Nacional do Orgulho Travesti e Transexual, 15 de maio, MST demarca a importância dessa parcela da população nas fileiras da luta
Foto: MST

Por Anidayê Angelo*
Da Página do MST

“Deu meia noite

Era quase meio dia

Xica Manicongo que destrave sua língua

A saia rodava e sua boca remexia

Que a contradição nos banhe com sua feitiçaria

Sua língua é uma faca

Faço dela o meu perfume

Sacrifico o meu sangue

Transaciono no negrume”

Esses são os versos da cantora Linn da Quebrada, na canção “amor amor” presente no álbum Trava Língua (2021). Nessa música, como também em outras faixas do álbum, a cantora tenciona a cis-heterenormatividade ao falar, principalmente, de amor como uma das formas das pessoas travestis e transexuais resistirem ao “Cistema”. Ao resgatar Xica Manicongo, hoje reconhecida como a primeira travesti do Brasil, como essa imagem que rompe os limiares da compreensão da época, Linn demarca a luta histórica dessas pessoas contra os preconceitos que atingem a comunidade LGBTQIAPN+ até os dias de hoje.

Andressa Victtoria, integrante do Coletivo LGBTI+ Sem Terra de Brasília. Foto: MST

É nesse contexto de enfrentamento às opressões resultantes do sistema capitalista que surgem as diversas organizações. Nesta última quarta-feira, 15 de maio, é celebrado o dia do Orgulho de ser Travesti e Transexual. Isso porque em 1992 no Rio de Janeiro (RJ) nasceu a primeira Organização Não Governamental (ONG) de Travestis e Transexuais da América Latina, conhecida como Associação de Travestis e Liberados (ASTRAL). 

Essa movimentação partiu de seis travestis, sendo elas Jovanna Baby, Jossy Silva, Elza Lobão, Beatriz Senegal, Raquel Barbosa e Munique do Bavier, com o objetivo de lutar por cidadania plena, o direito à saúde de qualidade, inclusão na sociedade e enfrentamento às diversas formas de violência (BENEVIDES, 2018). 

“O dia do orgulho de ser Travesti e Transexual também não vem se contrapor a data de 29 de janeiro, Dia da Visibilidade Trans, pois as datas dialogam entre si e não divergem”, afirma a matriarca do movimento transexual, Keila Simpson.

A importância de se discutir essa temática e a organização política dessas pessoas é uma urgente necessidade quando se depara com os altos números de violências contra pessoas trans no Brasil, que pela 15° vez esteve liderando o ranking como o país que mais mata essas pessoas (BENEVIDES, 2024). 

Luana Oliveira, da Coordenação Nacional do Coletivo LGBT, destaca essa relação entre o Brasil como o país que mais mata pessoas transexuais e travestis é também o país com uma alta concentração de terra. Para ela, “a relação de poder que aprisiona terra para criar gado, produzir commodity para vender para o exterior e não produzir alimentação para o povo brasileiro é o mesmo sistema de poder capitalista racista, misógino, patriarcal que aprisiona corpos, que silencia corpos que são diversos, que não estão no padrão da heteronormatividade, que não estão no padrão da branquitude”.

Frente a isso, o MST, reconhece que desde o seu surgimento existe a presença de Travestis e Transexuais atuando nas fileiras de luta da organização e como a temática da diversidade sexual e processo auto-organizativo da militância LGBT (Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais) é parte fundamental do projeto de emancipação do Movimento.

Isso porque o projeto de Reforma Agrária Popular do MST não envolve somente plantar sem veneno ou conquistar a terra, esse é um projeto de sociedade onde os sujeitos emancipados se relacionam de outra forma entre si e com a natureza. Quebrando, assim, os papeis sociais, tabus e preconceitos estabelecidos historicamente pela sociedade capitalista, que afetam não somente a comunidade LGBT. Afinal, é comum os ditos populares que “homem não chora”, que “rosa é cor de menina e azul é de menino”, que “lugar de mulher é na cozinha”, que “gays, lésbicas e travestis são um perigo para a família e a sociedade”.

Essa visão de mundo classifica os sujeitos úteis de acordo com a utilidade que possuem para o sistema capitalista, já que garantem a divisão sexual do trabalho e reforçam a dominação social. Gerando, consequentemente, a intolerância, o preconceito e a violência contra todos, todas e todes que não se encaixam no modelo ideal ditado por essa sociedade: homem cis, burguês, branco e heteressexual. Em oposição a isso, o projeto de sociedade que o MST luta e ousa construir diariamente considera que todos os seres humanos devem ser livres para amar, que a diversidade e a liberdade sexual também integrem esse projeto.

Jesus Fiel, Daiane Vasconcelos e Thaisson Campos compartilhando suas vivências enquanto pessoas trans no MST. Foto: Anidayê Angelo

“Malditas sejam todas as cercas que nos privam de viver e de amar”

A participação das LGBT no MST não é tão recente quanto à construção dos espaços de auto-organização desses sujeitos. A partir de 2013 essa criação se inicia, em articulação com o Setor de Gênero do MST, e em 2015 é organizado o primeiro seminário “O MST e a Diversidade Sexual” na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF).

O Seminário construiu um documento final que deu visibilidade organizativa aos sujeitos LGBT no MST como sujeitos da luta, que possuem sua diversidade tanto no campo do gênero, como no da sexualidade, e são militantes fundamentais da organização.

“Os sujeitos LGBT sempre existiram na luta desde o corte de arame, só que nós não tínhamos nosso local de entender nossa participação na luta, de compreender nosso recorte enquanto sujeitos LGBT campesinos, na produção, no diálogo com a juventude e com a infância. Estamos organizados no MST há 10 anos e temos desafios em cada período histórico e seguimos em luta na construção da Reforma Agrária e contra as violências”, afirma Flávia Tereza, da direção nacional do MST.

Foto: MST

Nesse sentido, é evidente a presença das pessoas LGBT nos assentamentos, nos acampamentos, nas trincheiras lutando pela Reforma Agrária Popular. Assim, para avançar essa discussão, o MST realizou dos dias 6 a 10 de maio, em Fortaleza (CE), o 1° Encontro Nacional de Travestis e Transexuais do MST, contando com a participação de militantes travestis e transexuais de todas as regiões do país. A realização desse encontro é um marco histórico e um novo início de ciclo organizativo dentro do próprio Coletivo LGBT do Movimento, compartilhou Thaisson Campos, integrante do Coletivo LGBTI+ Sem Terra no estado do Paraná.

Para  Daiane Vasconcelos, também do Coletivo, porém atuando no estado do Mato Grosso do Sul, “este encontro também é estratégico para o mapeamento das pessoas Trans Sem Terra, para que, além de adquirirem formação política, possam contribuir para a formação de outras companheiras e companheiros nos seus territórios.”

Durante a programação do Encontro, foi debatido a história do movimento travesti e transexual no país, a temática das políticas públicas, o Programa de Reforma Agrária Popular, o VII Congresso do MST e, além disso, a organicidade interna com debates nas regiões.

Entende-se, portanto, que discutir a transexualidade na luta pela terra, bem como realizar espaços de formação e organização política das pessoas travestis e transexuais é romper o silêncio sobre a existência das pessoas LGBTI+ no campo, principalmente em torno das letra T dessa sigla. É a construção de uma sociedade em que esses sujeitos não sejam obrigados/as/es a viverem em um “armário” que não permite expressar de forma plena sua identidade ou orientação sexual. É uma criação em que Xica Manicongo vive em cada travesti e transexual, munindo-se de ousadia para enfrentar o “Cistema”, como cantou Linn.

Daiane Vasconcelos, integrante do Coletivo LGBTI+ Sem Terra do estado do Mato Grosso do Sul. Foto: MST

REFERÊNCIAS

BENEVIDES, Bruna G. Dia do Orgulho de Ser Travesti e Transexual. Associação Nacional de Travestis e Transexuais, 15 de maio de 2018. Disponível em: <https://antrabrasil.org/2018/05/15/dia-do-orgulho-de-ser-travesti-e-transexual/>. Acesso em: 15 de maio de 2024.

BENEVIDES,   Bruna   G. Dossiê:   assassinatos   e   violências   contra   travestis   e transexuais brasileiras em 2023. ANTRA, 2024. Disponível em: <https://antrabrasil.org/wp-content/uploads/2024/01/dossieantra2024-web.pdf>. Acesso em: 15 de maio de 2024.

QUEBRADA, Linn Da. amor amor. São Paulo: Estúdio Brocal, 2021. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=POBIyOZKAwA&ab_channel=LinndaQuebrada>. Acesso em: 15 de maio de 2024.

*Anidayê é travesti Sem Terra, integrante do Coletivo LGBTI+ do MST no estado de Alagoas e comunicadora popular

**Editado por João Carlos