Educação
Educação do campo: popular, libertadora e emancipadora
Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
Quando se fala da importância de garantir o acesso à educação básica pública e gratuita no campo, assentados e assentadas, e acampados e acampados de todo o país tem muito claro que, nas áreas de Reforma Agrária, a educação é uma prioridade para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
A defesa do MST por educação no e do campo passa pelo direito à educação em suas diversas dimensões, desde a valorização do professor, à infraestrutura necessária e de uma pedagogia que de fato responda às reais necessidades dessa população. Para tanto, o Movimento defende que o conhecimento deve ser produzido a partir da realidade local, mas também deve servir para dar um salto qualitativo no processo organizativo, no processo de produção e nas relações humanas.
Na contramão desse processo de luta do Movimento em todo país, a Assembleia Legislativa do Paraná acaba de aprovar, em primeiro turno, o projeto de Lei 342/2004, que prevê a privatização da gestão de 200 escolas públicas no estado. A Privatização da Educação Pública é um projeto que prejudica principalmente a população pobre e do campo.
Em nota, o MST no Paraná afirma que irão continuar resistindo contra o movimento privatista na educação. “Não bastasse a militarização, o fechamento de escolas, a plataformização, o congelamento do salário dos professores por quase 6 anos, a extinção da carreira dos Agentes Educacionais e a terceirização desses trabalhadores, agora, ele quer vender as escolas”, afirma a nota.
O processo de criação de uma escola do campo está atrelado a demanda local de trabalhadores rurais e seus filhos, mas também de um espaço de formação de militantes conscientes da função política exercida pelo Movimento, como lembra Rubneuza Leandro, do Setor de Educação do MST. “Nos últimos 40 anos, o MST mudou a visão sobre o campo e sobre os sujeitos do campo, tornando-se referência não só para o Brasil, mas também para a América Latina e para o mundo, a partir da Via Campesina”, lembra.
No Programa Agrário, desenvolvido pelo MST a partir de debates, seminários e encontros com sua base social, a Educação aparece como central neste tema. “O Movimento reafirma no seu programa agrário o direito à educação básica, pública e gratuita, o que está presente desde a gênese do Movimento, destacando a importância da educação no processo de Reforma Agrária e no desenvolvimento dos assentamentos. Romper a cerca da terra passa também pela luta contra outras cercas, entre elas a cerca da educação“.
Embora a Constituição Federal de 1988 garanta o direito a educação, na prática há uma negação desse direito pelas relações políticas, especialmente para a população do campo e, de modo particular, para organizações sociais como o MST, onde a educação entra como elemento político e também ideológico.
“Desde a sua gênese, o Movimento tem lutado pelo acesso a esse direito, temos ocupado secretarias de educação, prefeituras, e debatido internamente com assentados e acampados sobre a importância da educação. Internamente, o Movimento conseguiu construir a consciência de que a educação é um direito, e temos lutado coletivamente por esse acesso”, lembra Rubneuza.
Escola é luta
Historicamente, o MST enfrenta embates políticos diante da negação do acesso à educação pelo poder público, especialmente na educação básica e no ensino fundamental, que são municipalizados. Isso resulta em enfrentamentos com cada município, confirma Rubneuza. “Como resposta, o Movimento constituiu as chamadas Escolas Itinerantes, garantindo o direito à educação para a população em áreas de acampamento. Dado que a educação fundamental é municipalizada, os despejos resultam no deslocamento dessas famílias para outras áreas ou municípios, necessitando de soluções adaptativas como as Escolas Itinerantes”.
Nesta perspectiva, nem todos os estados conseguiram implementar as Escolas Itinerantes, ainda que estados como o Rio Grande do Sul, Paraná, Piauí e Alagoas obtiveram êxito. Essas escolas tinham a finalidade de garantir, pelo Governo do Estado, o direito à educação para essas famílias, independentemente do município e da situação imposta a elas. Nesse processo de instabilidade que vai da ocupação até a posse da terra, o Movimento tenta assegurar sempre a continuidade dos estudos.
“Primeiro, é preciso conseguir o direito, depois garantir as condições de funcionamento. Temos feito uma luta permanente para conseguir escolas, que geralmente são improvisadas em barracos providenciados pela comunidade, em casas de um dos assentados ou em antigas casas de fazenda. Na sua maioria, as condições são muito precarizadas, e lutamos constantemente para garantir a estrutura necessária para essas escolas”, afirma.
Além da educação básica, o Movimento discute de maneira abrangente a importância da educação infantil e, neste sentido, conseguir creches e pré-escolas para as crianças Sem Terrinha também é um grande entrave, mediado por muita luta com ocupação de secretarias e prefeituras. E isso começa ao discutir com a comunidade e construir a consciência do direito, para que a própria comunidade assuma a luta para conseguir acessar esse direito.
Pedagogia do Movimento
Ao recuperar a história de 40 anos do Movimento, é possível observar que a educação tem sido parte integral dessa luta. Quando as primeiras escolas foram conquistadas, muitas delas eram contrárias às ideias defendidas pelo Movimento, assim como muitos professores, e a luta por educação começou a tomar outros contornos.
A base do MST passa a dizer que quer escola, mas não qualquer escola. Se não é essa escola, como faremos a escola que queremos? E nisso, o Movimento vem perseguindo esse projeto educativo, de que não basta ter escola; é necessário construir a escola da luta. O Movimento teve avanços significativos, mas estamos tratando de uma escola pública sob a orientação de um Movimento particular”
Rubneuza Leandro, do Setor de Educação do MST
A Pedagogia do Movimento, a princípio, é a defensa e elaboração de projeto educativo que é construído a cada escola conquistada e a cada professor que vem ensinar. Mas esse projeto político-pedagógico não está automaticamente dado na conquista da escola, lembra Rubineuza. Segundo ela, é preciso construí-lo em uma relação muitas vezes conflituosa com o município, pois os professores são funcionários públicos vinculados à prefeitura.
Então, como garantir que o Estado forneça as condições sem ditar a direção intelectual e moral da formação, que deve ser dada pela organização social? A resposta passa por uma gestão pública democrática no processo de criação da escola e de identidade de luta como fator importante na tomada de decisões, na divisão de tarefas e na organização coletiva. E esse é um processo permanente.
“A pedagogia do Movimento compreende a educação como formação humana, combinando a leitura de mundo com a leitura da palavra. Como Pistrak* [Moisey Pistrak (1888 – 1940)] coloca, a educação é a instrução que compõe a formação humana, separada no capitalismo. O Movimento busca integrar essas duas dimensões sob a batuta da formação humana, englobando não apenas o cognitivo, mas também literatura, arte e cultura. Hoje, isso está inserido no projeto da agroecologia, que para nós é mais do que uma técnica; é uma forma de viver e estar no campo, compondo o desenvolvimento humano em sua amplitude, incluindo arte, cultura e literatura“.“
Mas para além das escolas de agroecologia, o MST também oferece formações para professores, capacitando-os para esse trabalho com melhor qualidade em assentamentos e acampamentos, integrando literatura, arte e cultura à educação, agregando diferentes setores, como o de cultura, para aprofundar esses elementos, subsidiando o setor de educação.
A introdução desses elementos na educação se dá por meio de formações com professores e atividades nacionais que colocam em movimento e debate com estudantes e comunidade. Estes espaços realizados pelo MST promovem a interseccionalidade com a educação, onde os professores se apropriam desse conhecimento e desenvolvem-no junto às crianças.
Formando formadores
“Temos um trabalho que está, se não me engano, na oitava versão, que são os chamados cursos de pedagogia do MST. Realizamos esses cursos anualmente, em um estado diferente a cada ano, envolvendo todos os estados, e o estado anfitrião geralmente inclui mais educadores. Nesses cursos, discutimos a base epistemológica da pedagogia do Movimento”, lembra Rubneuza.
Ela explica que, cada estado, a partir de sua dinâmica, realiza encontros estaduais, que são momentos de unificação, de dar uma unidade ao debate político, ideológico e pedagógico da Pedagogia do Movimento.
“Este espaço é também de agitação e propaganda, e possibilita a socialização de experiências e debates dos níveis, sobre as atividades que o Movimento realiza, como a educação infantil, o ensino fundamental e a organização do trabalho pedagógico nas escolas. Esses momentos criam motivação e um desvelamento da realidade, onde os professores se dão conta do que é a pedagogia do Movimento”.
E para que essa motivação se concretize na prática, é necessário que a escola passe por um processo de aprofundamento e organização, ou seja, a volta destes debates para a base. Esse processo depende de como o Setor de Educação está organizado em cada estado, região e área, influenciando o desdobramento da pedagogia do Movimento em cada local. Embora não haja um sistema único de educação no MST, existem princípios que orientam esse sistema. A correlação de forças e a estrutura do Movimento em cada estado é que irão determinar o nível de engajamento.
“A educação sendo municipalizada depende muito da correlação de forças em cada município e da inserção do setor [de Educação do MST] em cada área para que a comunidade passe a defender essa escola. Essas dimensões são diversificadas, mas seguem um alinhamento com os princípios político-pedagógicos da pedagogia do Movimento. O direcionamento é dado, mas se concretiza de forma diferenciada em cada estado, município e escola, dependendo da correlação de forças.”
De qualquer forma, a busca é sempre por soluções para quebrar estas estruturas, seja com a formação da pedagogia do Movimento Sem Terra em âmbito nacional, com cursos anuais, ou com cursos específicos sobre agroecologia e educação. Há também atividades com os Sem Terrinha, como encontros e jornadas literárias, que chegam às escolas e envolvem a direção e a base do Movimento. “Assim, construímos a pedagogia do Movimento na prática, dependendo da organicidade de cada estado.”
Entendendo a educação do campo
Dentre as contribuições do MST para a sociedade, a educação promovida pelo Movimento impacta não somente de forma interna, mas também contribui externamente para a educação do campo em geral. Hoje, é referência de uma educação libertadora e emancipadora e tem o reconhecimento dos pesquisadores e intelectuais, que atribuem ao Movimento essa contribuição.
Internamente, o Movimento Sem Terra tem mudado a visão dos educadores que vão ensinar no campo. Nos últimos 30 anos, através de atividades articuladas, denominadas “Educação do Campo”, foi possível influenciar a política pública nos locais em que o Movimento esteve inserido.
Para Rubneuza, os professores não se identificavam com o campo, se recusavam ou iam para essas áreas apenas para cumprir estágio probatório, sem construir vínculos com as comunidades, e sofriam do mesmo preconceito que a educação do campo enfrenta, como o estereótipo do “Jeca Tatu” e das escolinhas precárias. Ela defende que o Movimento tem contribuído para a valorização desses educadores e para a qualificação da educação no campo, colocando os sujeitos do campo como sujeitos de direito.
Conseguimos qualificar a formação do educador e a educação do campo, que antes era vista de forma muito precarizada. Havia a visão de que para o campo, qualquer coisa servia, porque o camponês só precisava pegar na enxada e não precisava saber ler e escrever. O Movimento ressignificou o papel da educação e do educador do campo, defendendo que a educação é um direito. Por isso, lutamos para que as condições e a infraestrutura das escolas no campo sejam dignas, e não apenas recebam os materiais quebrados das cidades”.
Mas apesar de sua produção significativa, a educação no campo ainda enfrenta limitações devido à relação estabelecida com “um estado burguês e capitalista, especialmente em um momento de retrocesso dos direitos sociais”, lembra Rubneuza. Diante da luta contínua tanto para conquistar quanto para manter direitos, como em um caso atual do Paraná, onde o governador tem um projeto de “colocar à venda 200 escolas estaduais”.
Rubneuza afirma que, os trabalhadores/as do MST acreditam que a união de forças é essencial, tanto no campo quanto na cidade, para defender a educação pública e a formação da classe trabalhadora. “A luta é para que as condições sejam as mesmas que na cidade, com acesso a carteiras novas, quadros e outras necessidades”. Feita debaixo de um barraco de lona ou de uma árvore, a luta é pela dignidade, para que o camponês seja visto como sujeito de direito e tenha as mesmas condições de aprendizado que as pessoas na cidade.
“Tivemos exemplos de oferecerem para nós carteiras quebradas, esperando que alguém na área pudesse consertar, enquanto o material novo era conquistado para a escola certificadora e perguntavam se não preferíamos levar os usados e deixar os novos. Não! O nosso camponês tem direito de sentar numa cadeira nova, conquistada debaixo do sol, ocupando a Secretaria de Educação. Isso ressignifica a pessoa; o camponês assentado ou acampado sentar naquela cadeira nova e saber que está sendo tratado com dignidade dá uma outra dimensão à sua experiência”, conta Rubneuza.
De toda forma, o consenso dentro do setor de Educação do Movimento é que a responsabilidade pela administração pedagógica das escolas do campo envolve a comunidade escolar através de valores como cooperação e solidariedade. “Acreditamos que precisamos juntar forças no campo para lutar por uma política pública de educação do campo”, finaliza Rubneuza.
*Essa é a primeira reportagem sobre a educação diante do programa de Reforma Agrária Popular no MST. Fique atento ao site e às redes sociais do Movimento para acompanhar a segunda parte.
**Editado por Solange Engelmann