Enchente no RS
Assentamento do MST em Eldorado aguarda análise do solo para voltar a produzir: ‘começar antes do zero’
Por Luís Gomes
Do Sul21
Grande parte dos alimentos que abastecem as feiras ecológicas de Porto Alegre, como as dos bairros Menino Deus e Auxiliadora, assim como a Feira de Agricultores Ecologistas (FAE), no Bom Fim, é produzida no assentamento Integração Gaúcha, em Eldorado do Sul. Assim como toda a cidade, a zona rural de Eldorado ficou embaixo d’água por semanas no mês de maio, o que destruiu toda a produção de hortaliças que estavam prontas para serem levadas para as feiras. A estimativa é de a que produção das 64 famílias assentadas no local, que também tinha lavouras de arroz agroecológico e uma agroindústria, só comece a ser retomada em 90 dias.
“Agora é mais do que começar do zero, porque, na semana passada, vieram pesquisadores da UFRGS coletar amostra de solo para fazer análise. A gente não tem ideia do que a enchente impactou na produção”, diz Márcia Riva, que trabalha na agroindústria Pão da Terra e cultiva cogumelos na área do assentamento. “O que a gente sabe é que as águas passaram por indústrias químicas, tem esgoto, enfim. E a gente tem muito cuidado e muita responsabilidade na produção agroecológica. Então, precisamos ter uma ideia do que tem no solo para tentar fazer esse processo de regeneração e só depois cultivar e poder abastecer de novo.”
O Integração Gaúcha é um assentamento criado no início dos anos 1990, quando o conflito agrário explodia em diversas partes do Brasil. No Rio Grande do Sul, um confronto na Praça da Matriz entre policiais militares e militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) resultou na morte do cabo Valdeci de Abreu Lopes, em 8 de agosto de 1990.
Um ano mais tarde, a família de Márcia, natural de Entre Rios do Sul, começaria a se assentar na região de Eldorado do Sul, junto a outros militantes do MST. A primeira a chegar foi a irmã dela, Marinês. “Nós plantávamos fumo na região norte do estado e a gente largou tudo aquilo porque estávamos envenenados, doentes. Uma família de seis filhos, sem perspectiva”, diz Márcia.
A terra foi conquistada em um espaço que antes era usada pelo Instituto Rio Grandense do Arroz (Irga) para experiências, mas foi abandonado. Era um campo vazio, com árvores esparsas, onde foram instaladas as primeiras lonas pretas dos agricultores sem terra. No início, as mulheres iam até a cidade trabalhar como domésticas. Já os homens se dividiam entre a construção civil e os primeiros passos no trabalho na terra. Aquela renda inicial foi sendo usada para comprar ferramentas, insumos e mudas. Trinta e três anos depois, transformou-se em uma das principais regiões de produção de arroz agroecológico e sede de uma agroindústria que ocupa um galpão de 165 m², além da produção de leite e de mais de 100 variedades de hortaliças.
Então, veio a água.
Em linha reta, a Rua Che Guevara, que marca o início do assentamento, está 5 km distante do Rio Jacuí. Ali, apesar de Eldorado ser uma cidade com histórico de alagamentos, a água não costumava chegar. “A gente não estava acreditando na situação, porque todo ano aqui dá enchente. Embora nesse ano tinha muita chuva, mas a gente não imaginava que a água fosse chegar”, diz Márcia.
Começou a subir ainda no dia 2 de maio. Às 10h da manhã daquele dia, integrantes da Defesa Civil estiveram na sede da Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap), localizada na Estrada da Arrozeira, para alertar do risco de alagamento, mas sem informações precisas, recorda Márcia. Às 16h, o local já estava inacessível.
Subiram móveis dentro de casa, tentaram organizar a agroindústria colocando geladeiras e freezers em cima de mesas de inox, levaram animais para um galpão em um terreno mais alto. Nada adiantou. Márcia ficou entre os dias 2 e 18 hospedada na casa de clientes da feira ecológica no bairro Jardim Lindóia, em Porto Alegre. Na noite da quinta-feira, a água já passava por cima do portão e já não dava mais pé. Um membro de cada família chegou a ficar para cuidar dos animais. Precisaram ser resgatados de barcos e helicópteros.
“Os cachorros, a gente salvou mais da metade. As vacas, a perda foi maior. Nós temos um vizinho aqui que tinha 26 vacas, perdeu 14. E ele tentou por muito tempo remanejar, levou até a BR com barco, mas a correnteza era muito forte aqui”, diz Márcia.
As perdas na agroindústria foram quase totais. Uma das salas armazenava três toneladas de matérias primas, como açúcares, farinhas, nozes, castanha, uva passa e cafés. As pilhas chegavam até a altura de um ar condicionado, posicionado próximo ao teto. No entanto, como os açúcares estavam embaixo e foram derretendo à medida que a água foi tomando conta do espaço, tudo se perdeu. Outra sala abrigava uma tonelada de produtos prontos, já embalados. Tudo perdido também. “Foram dois dias de carrinho de mão para tirar toda a nojeira”, diz Márcia.
Alguns dos equipamentos puderam ser salvos, mas a estimativa é de perdas de R$ 440 mil na agroindústria, somando maquinário e estoques.
Márcia cultiva cogumelos do tipo Shimeji — cinza, preto e salmão — e trabalha na agroindústria. A sua estufa tinha capacidade de produção de 900 sacos de substrato simultâneos, posicionados em esteiras colocadas sob taquaras. Tinha estrutura de controle de temperatura, de umidade e de CO2, telas para impedir a entrada de organismos externos. Tudo foi perdido ou jogado fora. Hoje, só resta a estrutura de fora e, mesmo a brita do chão, ainda precisará ser trocada, porque está contaminada.
O arroz agroecológico é a principal fonte de renda dos assentados. Márcia estima que 60% da safra já tinha sido colhida. “A gente perdeu 40%, mais ou menos, na lavoura, mais os maquinários que não deu tempo de tirar. Só que nos anos anteriores, nessa época, o arroz já estava todo colhido, mas a enchente de novembro atrasou o plantio. As hortas, a gente já tinha perdido no ano passado. Fizemos de novo. Agora que tava tudo bonito, no ápice das colheitas”, diz.
A produtora explica que o assentamento é dividido em duas agrovilas. Uma delas localizada em uma área mais baixa, onde moram 36 famílias. “Todos os anos, a água destrói as hortas nessa agrovila. É raro o ano que não dá enchente. E, nesse ano, as famílias não querem mas nem voltar para as casas”, diz.
A pauta, então, é a do reassentamento. Márcia explica que os ministros Paulo Pimenta, da Secretaria Extraordinária de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, e Paulo Teixeira, do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, assim como os presidentes da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Edegar Pretto, e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), César Aldrighi, já estiveram na região nas últimas semanas para discutir, entre outras coisas, a questão. Contudo, Márcia não crê que o tema seja resolvido rapidamente. “E, nessa lógica de assentamento, como vai acontecer esse novo reassentamento? Porque o projeto de reforma agrária não é mais o da década de 80, que tem uma fazenda em algum lugar, desapropria e joga as famílias lá”, pontua.
Ainda assim, outra parte das famílias, o que inclui a de Márcia, pretende ficar. Ela destaca que o primeiro sentimento que teve ao chegar no assentamento em 18 de maio foi de desespero ao se deparar com a destruição. “Era um lugar que a gente não reconhecia”.
Aos poucos, os primeiros a retornar foram limpando o local. Inicialmente, usando a água que permanecia da enchente para tirar a lama, já que o abastecimento da Corsan estava parado e não era possível acessar os poços artesianos. Foram alguns dias dormindo em um salão utilizado para atividades holísticas, que está em um ponto mais alto.
As lavouras agora já estão limpas e aguardando o resultado das análises do solo para saber quando poderão ser retomadas. O resultado deve sair já na próxima semana. Alguns produtores se antecipam e iniciam o plantio de alimentos para subsistência.
“A gente é muito corajoso no sentido de retomar o território, até por uma certa desesperança de não termos expectativa de que esse reassentamento vai acontecer tão cedo, por ter sido a primeira vez que nós pegamos a água. Então, o pessoal aqui de cima vai cultivar as hortas tão logo a gente tenha os resultados. Agora, é um pouco angustiante, essa visão de futuro a gente não tem. A gente tinha até um mês e meio atrás. Hoje, até a gente está tentando recompor as nossas casas, que foi a nossa prioridade e se perguntando: ‘Bom, eu vou botar uma pia, eu vou botar um sofá, até quando?’ ‘Eu vou comprar uma cama boa, um colchão bom para descansar depois de um dia de trabalho.’ ‘Mas eu vou pagar um produto caro, talvez até o ano que vem ou talvez até setembro, que historicamente setembro faz enchente’. Então, é um lugar de uma certa desesperança, sabe, e de não ter perspectiva. Isso é um pouco assustador”, diz Márcia.
Por outro lado, Márcia saúda o fato de existir uma organização que dê suporte para as famílias assentadas. Com recursos angariados em uma vaquinha do MST, contrataram máquinas para realizar a retirada dos entulhos da propriedade. Também é esperado auxílio para compra de novas mudas para as hortas, de adubo e outros insumos necessários. “Vocês não vão ver aqui as montanhas de lixo que viram na cidade, aquilo é pavoroso. Isso tudo é fruto da nossa auto-organização”, afirma.
A visita dos ministros resultou na doação de cestas básicas distribuídas pela Conab, mas há ainda a expectativa do apoio financeiro governamental para a recuperação da produção. As famílias assentadas têm como grande parte de sua renda a produção comprada pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). “A gente tem tido só ajuda de parceiros, de outros agricultores feirantes. Infelizmente, até agora, do governo do Estado a gente não espera nada mais, mas do governo federal não veio nada ainda”, diz.