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3ª Copa Estadual da Reforma Agrária – Ceará 2024 

As arquibancadas contaram com a presença de curiosos e familiares que acompanharam suas equipes no deslocamento entre seus respectivos municípios", lembra artigo.
3ª Copa Estadual da Reforma Agrária no Ceará. Foto: Aline Oliveira / MST-CE

Por Aira Bonfim*
Da Página do MST

No sábado, dia 1º de junho de 2024, foram realizadas as finais da 3ª Edição da Copa Estadual da Reforma Agrária no Estádio Raimundo Oliveira, em Caucaia, Ceará. Essa edição foi uma realização do Governo do Estado, por meio da Secretaria de Esporte, executada pela Associação de Cooperação Agrícola do Estado do Ceará (ACACE), com o apoio do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). 

A competição contou com a participação recorde de 125 equipes representantes de 42 municípios cearenses, e com o total de 2790 atletas, sendo 2170 homens cisgênero, 599 mulheres cisgênero e 1 atleta transgênero. 

Com duração de três meses, as partidas de futebol compreendem as fases municipal, regional e estadual. A final masculina contou com o assentamento Novo Horizonte, de Tururu, contra o assentamento Massapê, de Mombaça – esse último, vencedor dessa edição. Já na categoria feminina, as finalistas foram representantes do Assentamento 10 de Abril, do Crato, contra o Assentamento Transval, de Canindé (as últimas, campeãs do certame). 

As arquibancadas contaram com a presença de curiosos e familiares que acompanharam suas equipes no deslocamento entre seus respectivos municípios até o estádio em Caucaia, localizado a 15 quilômetros de Fortaleza. A 1a Edição da Copa, realizada em 2019, contou com a cessão da Arena Multiuso – conhecida popularmente como Arena Castelão – como palco final da competição masculina e feminina. Vale destacar que essa ocasião marcou a estreia da maioria do público presente para a Copa da Reforma Agrária dentro do maior estádio do Nordeste, inaugurado em 1973 e reformado em 2012 para receber a Copa do Mundo da FIFA masculina em 2014 – em 2024 o local estava com a agenda interditada pela CONMEBOL. 

A Copa da Reforma Agrária é um dos maiores eventos esportivos dos assentamentos e acampamentos do MST no Brasil. Entre os objetivos da atividade está o de oportunizar a prática de modalidades esportivas nas áreas rurais, contribuindo na integração, inclusão e trocas de experiências entre os adultos e jovens que vivem nos assentamentos e acampamentos do MST no estado do Ceará. 

Com 40 anos de existência, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terrano Brasil (MST) é um dos maiores movimentos sociais do mundo, e seus objetivos principais têm sido bastante consistentes ao longo dos anos. A luta pela redistribuição de terras improdutivas para famílias de trabalhadores rurais é o cerne do movimento desde a sua criação. O MST busca promover a justiça social no campo ao garantir que a terra seja utilizada de maneira produtiva e sustentável, beneficiando diretamente as famílias que nela trabalham. 

Nessa última década a luta por soberania alimentar alavancou dentro do movimento social a defesa da produção de alimentos saudáveis e acessíveis para a população brasileira, o que inclui a promoção de práticas agrícolas sustentáveis e agroecológicas. Isso também envolve a oposição ao agronegócio, dominado por monoculturas e uso intensivo de agrotóxicos.

De forma mais ampla e holística, o MST investe na formação educacional e cultural de seus membros e das comunidades onde atua. Isso inclui a criação de escolas, a promoção da alfabetização e a formação técnica e política. O movimento também busca resgatar e valorizar as culturas locais e tradicionais, respeitando as especificidades desses territórios. E entre olhar o que é único e o que é comum, o futebol tem se apresentado como um esporte gregário entre seus militantes e uma ferramenta de muito potencial para diferentes fins. 

A compreensão do futebol como um exercício de lazer nos permite rememorar que o acesso ao lazer é um direito assegurado pela Constituição Brasileira de 1988, refletindo a importância desse aspecto na qualidade de vida das pessoas. Este direito está inserido no Artigo 6º e inclui o lazer entre os direitos sociais dos brasileiros, juntamente com outros direitos fundamentais como a educação, saúde, trabalho, moradia, segurança, previdência social, proteção à maternidade, à infância aos desamparados. 

Além disso, o Artigo 217 da Constituição destaca o papel do Estado na promoção e incentivo das práticas desportivas formais e não-formais como um direito de todos, o que se relaciona diretamente com o lazer – e que nem sempre nos é garantido. O artigo estabelece que é dever do Estado fomentar atividades esportivas, tanto profissionais quanto amadoras, incluindo o apoio às práticas de lazer que envolvem o esporte. 

O reconhecimento do lazer, e consequentemente do futebol, como um componente essencial para o desenvolvimento humano integral, visa garantir que todas as pessoas possam usufruir de momentos de diversão e descontração, essenciais para a saúde mental e física, contribuindo para uma sociedade mais equilibrada e justa. 

Além disso, o lazer é visto como um meio de promoção da cultura, da inclusão social e do bem-estar, tornando-se assim uma ferramenta importante para a formação de uma cidadania plena. Organizar os espaços, os jogos, os encontros e as regras de qualquer prática esportiva permite que os indivíduos participem ativamente da vida comunitária, promovendo a coesão social e fortalecendo vínculos sociais. 

Jogar bola no “país do futebol” nem sempre é ou foi uma condição universal e portanto, acessível para todos e todas. Somos um país que por mais vantagem que tenhamos obtido sobre essa identidade esportiva aos olhos no mundo, num passado não tão distante proibiu trabalhadores braçais, negros, mesticos e principalmente mulheres de praticarem e sonharem com a profissionalização nesse esporte. 

Ou seja, praticar o futebol, principalmente na sua condição amadora, é um ato político de ocupação de um território que não foi criado para a maioria da população brasileira. Questionar o modelo do jogo que é popularizado hoje e até mesmo os regramentos deste esporte nos meios mais massificados também nos é permitido dentro e fora das quatro linhas. 

No nível macro, o futebol espetacularizado e masculino não tem sido uma seara de grandes exemplos para a sociedade, mas ainda assim, se apresenta como um tema extremamente popular, de encontro, de diferentes pertencimentos. E por essa razão, podemos e devemos negociar e brigar pela representação do futebol que desejamos para o futuro. O jogador brasileiro Vini Jr., por exemplo, é uma exceção potente ao lutar por uma modalidade sem o racismo naturalizado dentro do cenário esportivo internacional dos grandes clubes. 

No nível micro, em meio aos territórios dos assentamentos de todo o país, vale ainda nos questionarmos se a prática do futebol é realmente acessível aos atletas para além do cronograma de 3 meses da Copa da Reforma Agrária. Se as relações de cuidado (com serviços domésticos, militância, crianças e idosos) são negociadas no cotidiano das mulheres que desejam jogar. Se as categorias masculinas e femininas são de fato inclusivas dentro de um mundo que tem rompido as categorias de gênero visando incluir cada vez mais adeptos aos esportes que historicamente foram excluídos da sua participação. E as crianças, como absorvê-las dentro dessas atividades e principalmente, considerar que a maneira como comportamos, dentro e fora de campo, são modelos a serem reproduzidos pelos pequenos e pequenas desde já. 

A tradição esportiva se refere apenas ao ato de acessar o jogo (os jogos), e não a maneira de jogar. Sempre haverá outras formas de jogar o próprio futebol, com regras e condutas competidoras que nos desafiem como seres humanos melhores dentro desse ambiente. Resumindo, o futebol é resultado do seu tempo. 

E por mais que os desafios sociais enfrentados pelo Brasil atualmente sejam complexos e multifacetados, refletindo tanto problemas históricos quanto novas questões emergentes, o futebol, ou mesmo outros esportes, se prova para o MST como mais uma ferramenta em potencial para requer políticas públicas eficazes, investimento em infraestrutura social, e um compromisso constante com a justiça social e a igualdade de oportunidades para todos os cidadãos – e tudo isso jogando bola! 

Em outras palavras, iniciativas como as edições da Copa da Reforma Agrária realizada no Ceará são iniciativas de muita potência, ainda que incipientes e experimentais, entre a comunidade dos assentamentos de todo o país, bem como um modelo a ser observado por outros movimentos sociais mundiais. 

Se o direito ao lazer, consagrado na Constituição de 1988, representa um avanço significativo na promoção dos direitos humanos no Brasil, assegurando que todos os cidadãos tenham acesso a atividades que proporcionem bem-estar e desenvolvimento integral, a Copa da Reforma Agrária, mesmo que despretensiosamente, tem afetado e contribuído significamente com a qualidade de vida de seus participantes. 

*Aira Bonfim é historiadora do esporte com pesquisas sobre os futebóis. É amiga do MST e esteve presente na 3ª Copa Estadual da Reforma Agrária, em Caucaia, Ceará, em junho de 2024.

**Editado por Fernanda Alcântara