História Negra
Liberdade é a doçura da vida: Entrevista com o diretor de “1798: Revolta dos Búzios”
Por Fernanda Alcântara
Da Página do MST
A Revolta dos Búzios, também conhecida como Conjuração Baiana ou Revolta dos Alfaiates, é um dos episódios mais importantes e menos conhecidos da história do Brasil. O levante, ocorrido em Salvador, na Bahia, foi um marco na luta da emancipação dos negros e negras, influenciado pela Revolução Francesa. A revolta teve início em 12 de agosto de 1798 e envolveu principalmente artesãos, soldados e escravizados, que clamavam por uma república democrática e a abolição da escravidão.
Antonio Olavo, roteirista e diretor do documentário, demorou 13 anos para esta reconstrução histórica, destacando não somente a relevância do evento, mas também o impacto dela para a história do Brasil.
Eu começo o filme contando essa história que começa em 12 de agosto e se estende por 15 meses depois, quando a revolta da devassa durou 15 meses e convulsionou o cenário político-social da Bahia na época”, explica Olavo.
Em entrevista, o diretor retoma a importância de recontar a história da Revolta dos Búzios, em valorizar e reconhecer a luta dos que foram marginalizados pela narrativa oficial, pessoas negras e populares frequentemente excluídas dos livros de história. Através deste documentário, Olavo traz à tona essas vozes e suas histórias, revelando um passado de resistência que ainda ressoa nos dias de hoje.
Embora brutalmente reprimido, a Revolta dos Búzios lançou sementes que germinaram até os dias atuais. Confira abaixo a entrevista completa com o diretor e roteirista:
Gostaria de começar perguntando quais foram os maiores desafios para contar essa história de mais de 200 anos?
Bom, antes de mais nada, queria dizer que foram 13 anos de trabalho para construir esse filme, não foram 13 anos apenas nos finais de semana ou em tempos livres. Tenho 49 anos de trabalho, com 19 filmes documentários, sendo 7 longas e 12 curtas, este projeto, “A Revolta dos Búzios” foi o que mais me consumiu em termos de tempo e energia. É uma história do povo negro que as elites brancas brasileiras tentaram invisibilizar ao longo dos séculos.
Entender isso é a chave para compreender como um acontecimento tão importante na história do Brasil, ocorrido no final do século XVIII, na Bahia, foi ocultado. Os conspiradores defendiam a independência do que chamavam de “continente do Brasil”, alcançada apenas em 1822. Eles também defendiam uma república democrática, algo que só foi estabelecido de forma nada democrática em 1889, com o Marechal Deodoro. Além disso, os conspiradores da Revolta dos Búzios defendiam o fim da escravidão, uma bandeira que nenhum outro movimento desta proporção, antes ou depois, levantou.
A Inconfidência Mineira de 1789, por exemplo, defendia a independência e a república, mas não mencionava o fim da escravidão. O mesmo se aplica à Conjuração Carioca de 1794, à Insurreição Pernambucana de 1817 e à Confederação do Equador, de 1824. A Revolta dos Búzios, também conhecida como Revolução dos Alfaiates, Conjuração Baiana ou Sedição de 1798, levantava essas três bandeiras.
Esse foi o maior desafio para conseguir recursos para realizar o filme. Em 2014, ganhei um edital do IRDEM, com 300 mil reais, mas gastei muito mais, quase o triplo, para concluir o filme. Outro grande desafio foi a falta de elementos iconográficos do movimento, porque não existe nenhum desenho, pintura ou gravura da época, e a fotografia surgiu muito depois, em 1839.
Sabemos que existem poucos elementos iconográficos, como foi trabalhada essa dificuldade no filme?
A única fonte que restou foram os Autos de devassa [documentos manuscritos pela polícia da época], com toda a visão ideológica conservadora de acusação, condenação e inferiorização dos envolvidos no movimento. Eu estudei esses documentos profundamente, fazendo uma leitura nas entrelinhas para construir o filme. Busquei elementos que pudessem fortalecer essa narrativa, como ilustrações de historiadores da época sobre a cidade de Salvador e a participação de atores e músicos talentosos.
Para tanto, contei com atores como Sônia de Souza, Valdineia Soriano, George Will e Fábio Santana, que atuaram como narradores adicionais, e músicos como Mateus Aleluia, que musicou um poema considerado como um hino do movimento. Também utilizei ilustrações atuais baseadas nos autos, feitas pelo ilustrador baiano Caó Vomes.
Começo o filme com uma representação de um evento aqui na Bahia, na madrugada, em um dos locais onde esses conspiradores atuaram na atividade rebelde. Trazemos um rap que fala “estava tentando entender que história é, essa que meu pai não me contou, meu avô não contou para meu pai”. Essa revolta não apenas envolveu homens negros, mas também homens brancos, causando constrangimento para a polícia ao investigar homens brancos, filhos de famílias poderosas, que bebiam da fonte do iluminismo e da Revolução Francesa de 1789, nove anos antes. Esses homens defendiam a independência e a república, e uma das principais bandeiras era o fim da escravidão.
Foram 13 anos de trabalho, mas foram necessários para construir um projeto, um roteiro e um filme com pleno entendimento. Não é um filme que trata o tema de forma superficial, é um tema que foi muito maturado. Passei centenas, talvez milhares de noites pensando na sua realização e construção.
O senhor comentou que a historiografia tradicional brasileira relaciona a história do povo negro apenas à escravidão. Como a produção busca destacar esse momento, não apenas para falar sobre a escravidão, mas para trazer dignidade, orgulho e resistência à população negra?
Na minha infância e adolescência, tenho 68 anos, para aprender sobre a história do povo negro, era preciso ligar à escravidão, à inferiorização, aos sofrimentos e humilhações. Aprendi que uma princesa branca teve pena desse povo e os libertou. Isso constrói traumas na autoestima e confiança. É muito fácil associar essa visão preconceituosa, dada por uma elite branca brasileira que dominou a sociedade por 350 anos.
A história do povo negro no Brasil, como contada pela historiografia tradicional, é a história da escravidão. Isso tem mudado nos últimos anos, mas ainda é insuficiente. Com meus filmes, tento contar a história da resistência à escravidão. Na Revolta dos Búzios, falamos de escravidão como algo distante, mas que estava muito presente na vida das pessoas.
No dia 12 de agosto de 1798, o movimento foi deflagrado quando foram afixados vários panfletos na cidade chamando para a revolução. Um trecho desses panfletos dizia:
Homens, o tempo é chegado para a vossa ressurreição; sim para ressuscitares do abismo da escravidão para levantares a sagrada Bandeira da Liberdade. A liberdade consiste no estado feliz, no estado livre do abatimento: a liberdade é a doçura da vida, descanso dos homens com igualdade para uns e outros, finalmente a liberdade é o repouso e bem aventurança do mundo.”
– Trechos dos chamados “boletins sediciosos” da Revolta dos Búzios, 1798.
Uma amiga, produtora que trabalha na TV Globo, chegou a tatuar no braço dela “liberdade é a doçura da vida, 1798“, pois é lindo isso. A história é dignificante, de pessoas que viveram esse sonho, ou o usaram para iluminar o caminho, e quatro deles, artesãos, lutaram com garra e são exemplos de dignidade que nós, povo negro brasileiro, temos. Se não fosse pela luta deles, eu hoje não estaria aqui como cineasta, fazendo um filme sobre o Brasil.
A luta deles nos ensinou que não devemos aceitar a submissão. A história da Revolta dos Búzios é uma história que o Brasil precisa conhecer e abraçar, pois ela expressa nossa identidade e autoestima.
Muitos povos colonizadores conhecem profundamente a história de sua colonização, esquecendo os males que isso provocou. Nós, no Brasil, temos uma história grandiosa que precisa ser contada. E não só a Revolta dos Búzios, mas também a Balaiada, a Cabanagem, a Praieira, a Revolta da Chibata e Canudos. Essas histórias são importantes e precisam ser conhecidas, pois mudam a forma como vivemos e como vemos o mundo.
Em 1798 eles lutaram pelo fim da escravidão, que só foi oficialmente conquistada 90 anos depois, em 1888. A conquista não foi uma benevolência das elites, e na verdade até hoje estaríamos sendo escravizados se não fosse pela luta. Essa caminhada pela liberdade deve continuar, sempre buscando construir um tempo novo e melhor.
Dignidade e orgulho são palavras muito valorizadas no MST, e o filme aborda a importância da identidade e pertencimento contra a opressão. Neste sentido, qual a conexão entre a luta da Revolta dos Búzios e o MST?
As lutas coletivas são fundamentais, e a história do Brasil é permeada por movimentos coletivos. Muitos foram derrotados, mas deixaram legados e sementes. A luta pela terra é popular no Brasil desde as capitanias hereditárias. Um momento marcante foi o movimento de Canudos, liderado por Antônio Conselheiro. Canudos era uma comunidade onde não havia polícia ou patrões, e a terra era um bem comum. Esse movimento, com milhares de pessoas, mostrou que é possível viver de forma comunitária e justa.
Então Canudos foi destruído pelo exército após quatro expedições, mas deixou um legado. E assim como Canudos, o MST luta contra o latifúndio, a opressão e a fome, buscando uma sociedade onde a terra seja de todos. Na época, a população rural era majoritária, e a propriedade da terra tinha um peso enorme. Esses exemplos nos inspiram a continuar a luta por um futuro melhor.
Eu digo que, se não fosse pela luta pela terra, que é extremamente importante, muitos produtores não teriam como viver dignamente. O Brasil ainda tem fome, principalmente nas grandes cidades. Moro em uma delas, Salvador, e todos os dias vejo pessoas nas ruas passando fome. Frequento supermercados e padarias, e vejo pessoas pedindo comida nas portas. O que mata a fome é um bem distribuído, principalmente a terra, conduzida de forma justa e igualitária. O Brasil é infelizmente muito desigual.
Essas lutas do passado, como os movimentos de camponeses, nos trazem um pensamento e uma mobilização permanente. Tenho uma filha de 18 anos, e a minha geração deixa para ela a necessidade de construir um mundo melhor. Ela terá a obrigação de deixar um legado melhor para seus filhos, assim como eu recebi um legado melhor do meu pai, que nasceu em 1907, apenas 19 anos após a abolição da escravatura. A humanidade avança lentamente, e é nosso dever usar a tecnologia para o bem.
E como podemos oferecer este legado?
A história do povo majoritariamente negro do Brasil precisa ser conhecida. A Revolta dos Búzios não é um evento isolado; existem muitos outros. Conhecer essas histórias nos dá mais orgulho do nosso país. Minha mãe, na minha juventude, falava muito em ir embora, dizendo que aqui não havia futuro. Eu encontrei motivações para criar um futuro, como resgatar essas histórias inspiradoras. Fiz este filme com muita dedicação, e ele já foi exibido em milhares de escolas públicas, terreiros de candomblé e outros espaços onde as pessoas negras estão, de forma gratuita.
Foram 13 anos de trabalho na direção e pesquisa para a realização do filme. Como foi ver tudo isso materializado? Quais lições podem ser tiradas desse processo?
Eu busco usufruir não somente do produto final, mas também do processo de construção. Esses 13 anos foram de enorme satisfação, lidando com sentimentos e emoções relacionados à minha identidade e história. A Revolta dos Búzios é a minha história e a do meu povo. Descobrir novos documentos e informações antigas me deu muita satisfação, e todos os dias, quando venho para o meu trabalho, passo pela rua Chile, onde morava João de Deus com sua esposa Luísa França, um dos alfaiates conspiradores, que tinha cinco filhos, o mais velho com oito anos de idade. Isso me lembra da importância e da coragem daqueles que lutaram por um mundo melhor.
Os outros quatro mártires foram enforcados no dia 8 de novembro de 1799, um ano e meio depois. Jovens, homens negros, como Luís Gonzaga das Virgens, que tinha 36 anos, João de Deus Nascimento, que tinha 28, Lucas Dantas, 24, e Manuel Faustino dos Santos Lira, 22 anos.
É cruel pensar na elite branca brasileira, que enforcou João de Deus, esquartejou e pendurou seu corpo na frente da sua casa. Imagino como foi para essas crianças e para a mãe, Luísa, saírem de casa e verem o corpo de João de Deus pendurado. Foi uma crueldade, e a elite branca brasileira é responsável por isso.
Hoje não temos descendentes desses conspiradores, pois, na sentença deles, foi declarado que seus nomes deveriam ser esquecidos para sempre. João de Deus não foi o único com filhos, mas eles nunca assumiram publicamente ser seus descendentes. É uma sentença cruel que afeta até a eternidade. Enquanto isso, os descendentes de Tiradentes ainda recebem pensão do Estado.
Esses homens negros lutaram e pagaram com suas vidas. Isso me enche de orgulho e me faz sentir que estou fazendo a coisa certa, por mais difícil que seja. O Brasil hoje tem 3.500 salas de cinema, e estamos em nove. Isso é uma vitória, pois até três semanas atrás, a Revolta dos Búzios não estava em nenhuma sala de cinema. Agora está em nove, em sete estados do Brasil. Minha felicidade é muito grande ao ver que a obra está circulando amplamente pelo país.
E teve a ação para que as pessoas com adereços ou roupas do MST pagarem meia entrada aqui em São Paulo. Como foi?
Esta é uma história que o Brasil precisa conhecer, uma história encampadora do povo negro, que nos leva a um autoconhecimento digno e grande. E sou muito grato ao MST, tive a honra de receber uma delegação de vocês em São Paulo, no Cine Augusta, que me trouxe uma bandeira e um boné. Fiquei super feliz e mostrei para minha esposa e minha filha. Muito obrigado a vocês, foi importantíssimo.
*Editado por Solange Engelmann