Genocídio

A velha aliança genocida do capital e Estado sobre os Guarani Kaiowá, no MS

Artigo discute como a defesa da propriedade privada, por grupos de milícias rurais, criminaliza a luta pela retomada dos territórios dos povos Guarani e Kaiowá
Retomada de povos Guarani e Kaiowá no MS. Foto: Reprodução

Por Gabriela Guillén, Judite Stronzake, Karina Pinhão e Katiuscia Galhera*
Da Página do MST

Artigo mostra dois lados antagônicos na história dos povos indígenas no Mato Grosso do Sul e as lutas nas retomadas dos territórios dos povos originários. São “dois projetos societários em confronto declarado, em evidente assimetria de poder. Desfilando as caminhonetes, [que] disparam fogos de artifício perto das retomadas, reforçando as ameaças e o terror. Da parte dos Guarani e Kaiowá, os mbarakas e tacuaras dos quais retiram a força da sua reza e o canto nas vozes das mulheres anciãs são os alentos coletivos para continuar a luta por seu tekoha“, informa o artigo.

O texto apresenta a primeira parte do artigo “Marco Temporal e outras armadilhas neoliberais: a velha aliança genocida do capital e Estado sobre os Guarani Kaiowá (MS)”, produzido pela autoras. Fique de olho no site do MST para acompanhar a segunda parte.

Confira o artigo na íntegra:

Violência contra os Guarani e Kaiowá e a mãe-terra

Na manhã do dia 13 de julho de 2024, no município de Douradina, Mato Grosso do Sul, o povo Guarani e Kaiowá iniciou a autodemarcação do seu território longamente esperado. A reivindicação é de uma área de 12.196 hectares em estudo e já identificada. Envolve os territórios de Gua’aroka, Yvy Ajhere, Ita´y Ka’agurusu, Pikyxi´yn, Kurupay´y, Tajasu Ygua e Guyra Kambi ́y, na qual se encontram sobrepostas  grandes propriedade de monocultivo de soja e de milho. O Mato Grosso do Sul  tem a maior concentração fundiária do Brasil: de acordo com o Atlas Agropecuário de 2017, as terras particulares configuram 92% do território do estado. Nas retomadas, as principais lideranças são as nhandesys, mulheres anciãs, sabedoras da localização da terra ancestral, acompanhadas na luta por mulheres gestantes, jovens e crianças. As terras tradicionais ou tekoha são para os Guarani e Kaiowá os lugares nos quais as comunidades podem exercer seu modo de ser em reciprocidade com a natureza. Ali, as parentelas ampliadas estabelecem relações sagradas com o território, o que possibilita a continuidade dos seus costumes e a vida, mesma através do acesso ao que resta da biodiversidade das florestas que lhes proporcionam alimentos saudáveis e variados e plantas medicinais. 

A reação violenta dos grandes proprietários rurais, cujas fazendas incidem nos territórios Guarani e Kaiowá, foi imediata. Um primeiro momento de terror com dezenas de camionetes cercando, perseguindo e disparando contra a comunidade deixou vários feridos, Guarani e Kaiowá. Posteriormente, circulou nas redes sociais um vídeo dos ruralistas organizando seu próprio acampamento e um cerco noturno de camionetes novas perto das retomadas. No vídeo veicularam frases em tom de ameaça como: “o bambu vai envergar e a tropa de choque está chegando”. A confiança que os grandes ruralistas depositam no apoio de políticos locais de extrema direita e na segurança pública descortina a desigualdade das forças em jogo: de um lado, fazendeiros e seus pistoleiros fortemente armados com dezenas de camionetes e drones e, de outro, uma comunidade liderada pelas mulheres nhandesys com seus mbarakas em mãos. 

Terras Indígenas no MST. Imagem: reprodução Maxar Technologies 2024

Dois lados antagônicos nessa história. Dois projetos societários em confronto declarado, em evidente assimetria de poder. Desfilando de dia e sobretudo à noite, as caminhonetes disparam fogos de artifício perto das retomadas, reforçando com os faróis as ameaças e o terror. Da parte dos Guarani e Kaiowá, os mbarakas e tacuaras dos quais retiram a força da sua reza e o canto nas vozes das mulheres anciãs são os alentos coletivos para continuar a luta por seu tekoha. É gritante a discrepância entre a pesada e luxuosa estrutura belicista dos fazendeiros e os barracos de lona preta erguidos pelos Guarani e Kaiowá. As imagens do conflito revelam o cenário desértico da destruição causada pelo monocultivo de commodities para exportação, refletindo o peso do Estado nesse teatro de horrores que é a produção agrícola em grande escala para acumulação de capital.

Em outro vídeo que circula nas redes sociais, é possível escutar tiros vindos das agromilícias em suas caminhonetes que ultrapassam constantemente as barricadas formadas pelos Guarani e Kaiowá. Estes atos em muito se assemelham com as ações do Invasão Zero, uma organização que reúne cerca de 5 mil membros, entre fazendeiros e parlamentares da bancada ruralista, cujo objetivo é atacar e criminalizar os movimentos do campo que lutam pela terra. O grupo surge em março de 2023 e conta com o apoio da Frente Parlamentar Invasão Zero e associações empresariais ligadas ao agronegócio. 

Na sua primeira aparição midiática, o grupo foi acusado pela morte de Nega Pataxó-Hã-Hã-Hãe durante a retomada Terra Caramuru-Catarina Paraguaçu, na Bahia. Segundo algumas lideranças indígenas, o grupo Invasão Zero funciona como uma milícia que opera através do WhatsApp. Os fazendeiros se comunicam acerca de “invasões” em suas propriedades e ali organizam operações conjuntas e, através da figura legal do “desforço imediato”, se amparam para deflagrar com as próprias mãos a reintegração da posse ilegal e violenta.

O deputado Zucco, presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) contra o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), justifica a criação do grupo pela “ausência do Estado na resolução dos conflitos agrários, [que] pode provocar uma tragédia se tivermos um enfrentamento mais duro entre índios (sic), sem-terra e agricultores”. O primeiro presidente do Invasão Zero já declarou que “a Constituição não existe na Bahia. E também não se prende ninguém pela invasão de propriedade. Dessa forma, tivemos que reagir e nos organizar para expulsar os invasores por conta própria”. O grupo atua frontal e violentamente contra a demarcação de terras indígenas e contra a Reforma Agrária espalhando o ódio e o racismo. Apesar das explícitas e reiteradas manifestações que indicam seu caráter miliciano, os órgãos públicos não tomam cartas no assunto para sua dissolução. 

Os ruralistas em Douradina vêm realizando táticas semelhantes às da Invasão Zero, lançando mão de diversos expedientes para projetar sua truculência nas retomadas como uma luta social dentro da legalidade com atos em frente ao Ministério Público, apoiados por políticos bolsonaristas. Com efeito, nos vídeos que circulam nas redes sociais, deputados federais e estaduais da extrema direita vinculados às bancadas da bala, da bíblia e dos bancos disseminam fake news e criminalizam a autodemarcação dos Guarani e Kaiowá. Imitando o grupo Invasão Zero, conclamam o Estado a perpetrar uma ação violenta de despejo ou atuarão em seu lugar. Em defesa da propriedade privada, o povo Guarani e Kaiowá é criminalizado como um empecilho ao lucro que grupos privados obtêm com a exploração da terra tradicional.

Os conflitos de terra no MS refletem um contexto mais amplo da necessidade de expansão do capital em crise sobre os territórios. Essa expansão é sustentada e legitimada através do Estado Democrático de Direito e operacionalizada pelos diferentes governos, à esquerda ou à direita, cujo papel vem sendo o de criar continuamente as condições para viabilizar a produção destrutiva do agronegócio para acumulação de renda nas mãos da burguesia agrária e do capital financeiro internacional. Essas condições envolvem uma permanente reciclagem de dispositivos legais que complementam os mecanismos violentos e de espólio perpetrados pelas classes dominantes desde os tempos coloniais. 

O saqueio vem sendo realizado contra a mãe-terra e os efeitos da mudança climática se ativaram de forma alarmante na região. No Pantanal, as queimadas de origem criminosa para desmatar e expandir o agronegócio começaram mais cedo, em 2024, disparando os focos de incêndio em 1025% nos seis primeiros meses em comparação ao ano anterior. Em 2023, a bacia do rio Paraguai apresenta seca recorde a respeito de 2023, levando o bioma a uma das piores crises hídricas da sua história em que alguns municípios pantaneiros apresentam redução da superfície de água. Em alguns lugares, os moradores estão sem água potável e precisam ser assistidos por caminhões pipa. Atualmente, o Mato Grosso do Sul, cujas cidades se cobrem da fumaça vinda do Pantanal a cada ano, é um dos estados brasileiros mais afetados pela severa estiagem causada pelo desmatamento e as queimadas. Nos últimos meses, o estado registra um clima de deserto, com índices de umidade relativa do ar entre 10% a 20% – níveis considerados críticos e de grande impacto à saúde humana. Como se isso não bastasse, a contaminação do solo, da água dos rios e dos lençóis freáticos e, inclusive, da água das chuvas pelo uso intensivo de agrotóxicos que este modelo destrutivo na agricultura exige, é um grave problema invisibilizado pela mídia hegemônica, pelos políticos locais e pelas autoridades de saúde pública. O problema se agrava quando estes químicos nocivos à saúde humana e ao meio ambiente são pulverizados nas proximidades de comunidades camponesas e indígenas, sendo em muitas ocasiões utilizados como arma de guerra contra as comunidades Guarani e Kaiowá.

Todo este cenário de destruição e violência vai de encontro à simbologia exibida na posse presidencial do Lula em janeiro de 2023. Na época, ele subia a rampa junto ao cacique Raoni, liderança dos povos originários, invocando o fim de uma conjuntura política anti-povos indígenas e anunciando uma agenda progressista em favor das comunidades do campo e da cidade. Porém, a desconexão entre o plano simbólico do espetáculo midiático e a efetivação concreta dos direitos sociais aponta para a permanência de uma dívida histórica que se enraíza na austeridade fiscal. Instrumento determinante no controle da distribuição da riqueza social, o plano de austeridade apresentado pelo atual governo através do arcabouço fiscal é a continuidade do projeto de poder neoliberal que o capital vem impondo há décadas para manter seu secular padrão de dominação.

As migalhas destinadas aos direitos sociais, seja educação, saúde, Reforma Agrária e demarcação de terras indígenas são apresentadas ideologicamente como uma grande solução e como o horizonte final ao qual o povo brasileiro deve se adaptar. Elas cumprem um papel conciliatório na dimensão ideológica, mas na prática são parciais e acabam por neutralizar as lutas tão necessárias à melhoria das condições de vida de toda a população. Neste contexto de austeridade, uma das táticas da burguesia agrária na questão das demarcações dos territórios indígenas é impor os mecanismos neoliberais do mercado e da privatização da terra, flexibilizando a Constituição de 1988. 

Os limites da política conciliatória do atual governo e a insuficiência das pseudo alternativas impostas pelo capital em crise já foi percebida pelas comunidades Guarani e Kaiowá. Para garantir formas de vida digna e a própria sobrevivência não há mais opção do que efetivar com suas próprias forças comunitárias a auto demarcação dos territórios. Um sintoma disso é a recente multiplicação de retomadas de terra Brasil afora, como expressam as lutas dos povos Avá-Guarani no Paraná, Anacé no Ceará, Guarani Mbya e Kaigang no Rio Grande do Sul, Parakanã no Pará, e dos Guarani Kaiowá em outros municípios do próprio MS, como Caarapó, que anunciam um novo ciclo de resistências.

*Gabriela Guillén, cientista social e educadora da Escola Nacional Florestan Fernandes; Judite Stronzake, cientista social e da natureza e militante do MST; Karina Pinhão, pesquisadora do Observatório da Kuñangue Aty Guasu (OKA); Katiuscia Galhera, cientista política, pesquisadora e mãe.

**Editado por Solange Engelmann