Terras Indígenas

O Marco Temporal e outras armadilhas neoliberais

Artigo apresenta a problemática da demarcação de terra que nunca sai do papel
Povos Guarani e Kaiowá no MS cobram demarcação de terras indígenas. Foto: Reprodução

Por Gabriela Guillén, Judite Stronzake, Karina Pinhão e Katiuscia Galhera*
Da Página do MST

Confira a segunda parte do artigo sobre o “Marco Temporal e outras armadilhas neoliberais: a velha aliança genocida do capital e Estado sobre os Guarani Kaiowá (MS)”, produzido pelas autoras.

Demarcação de terra que nunca sai do papel

O processo demarcatório da Terra Indígena (TI) Panambi-Lagoa Rica iniciado em 2005, está suspenso desde 2011 por uma ação judicial no Tribunal Regional Federal (TRF3), a partir de sentença favorável ao produtor rural em fase de recurso. Em 2016, o processo de demarcação foi anulado na 1ª Vara Federal de Dourados por um juiz que se baseou na tese do Marco Temporal, a qual obriga os povos originários a comprovar a ocupação dos territórios em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição como condição para efetivar a demarcação.

Durante décadas a fio, a Reforma Agrária e a demarcação dos territórios indígenas têm sido sistematicamente engavetadas nos labirintos dos rituais burocráticos apesar de serem transformações estruturais necessárias à concretização dos direitos sociais e da dignidade dos povos do campo e da classe trabalhadora, em especial dos povos originários. O congelamento das demarcações de terras indígenas previstas na Constituição de 1988 responde, por um lado, ao  bloqueio histórico das reformas estruturais outrora prometidas pela industrialização fordista e escamoteadas no período neoliberal. Por outro lado, as saídas impostas autoritariamente pelas classes dominantes brasileiras e internacionais em tempos de hegemonia financeira apontam para o viés neoliberal e privatizante do mercado. A flexibilização da Constituição de 88 se efetiva através da lei 14.701/23, ainda que todas as ações judiciais que se baseiam no Marco Temporal estão suspensas por determinação do STF.

Ao  instituir o Marco Temporal através desta lei, a bancada ruralista promoveu aumento significativo da violência e da insegurança física e jurídica dos povos originários, implicando graves retrocessos como o questionamento de territórios em processo de demarcação ou já demarcados, a anulação da voz das comunidades indígenas referente à entrada nos seus territórios de projetos extrativistas de mineração e grandes empreendimentos, e a legalização de práticas de arrendamentos destinadas à produção de commodities agrícolas.

A lei 14.701/23 promulgada pelo Congresso ignorou a decisão colegiada do STF que rejeitou o Marco Temporal e se posicionou a favor de sua inconstitucionalidade. Apesar deste julgamento, o STF considerou viável a figura de indenização prévia da terra nua aos não indígenas, leia-se grandes proprietários de terra. É importante ressaltar que apenas a indenização das benfeitorias (e não da terra nua) e o eventual acionamento da permuta são mecanismos permitidos dentro do processo de demarcação para a desintrusão da terra, sobretudo para que pequenos produtores tenham seus direitos garantidos quando suas propriedades incidem em territórios indígenas. A União é obrigada a ressarcir as benfeitorias ou a oferecer a permuta como alternativa, ao nosso ver justa, para reassentar os pequenos produtores que não contam com os recursos necessários para o recomeço das suas vidas. Tudo isto é viável desde que estes procedimentos estejam atrelados ao reconhecimento da tradicionalidade dos territórios indígenas e em observância dos ritos do processo demarcatório segundo a Constituição.

O entendimento do STF, apenas uma semana após considerar inconstitucional a tese do Marco Temporal, é de que a indenização prévia da terra nua é um importante instrumento de conciliação de conflitos. Porém, esta determinação que valida a compensação monetária antecipada pela terra, e realizada fora do processo demarcatório estabelecido por lei,  viola a constituição e responde à operacionalização da lógica mercantil e neoliberal nas políticas de demarcação de territórios. Estes dispositivos cumprem duas funções muito importantes: 1) Recriam as condições de acumulação e expansão do capital na agricultura; 2) Do ponto de vista ideológico desmontam perigosamente a noção de tradicionalidade da terra indígena, também prevista constitucionalmente.

Foto: Reprodução

A ocupação pelos povos indígenas de suas terras tradicionais e por eles habitadas em caráter permanente são direitos originários, segundo os artigos 231 e 232 da Constituição de 1988. Isto significa que a ocupação é anterior às leis fundiárias e de parcelamento do solo em propriedades privadas e antecede qualquer normativa legal da sociedade brasileira. O questionamento do direito originário através da indenização prévia da terra nua e a permuta implementada fora do processo administrativo demarcatório cumpre a função de colocar as terras tradicionais das comunidades no balcão do mercado nacional e internacional.

A substituição do arcabouço constitucional por estas políticas parciais e mercantilizantes vem tomando conta dos operadores burocratizados do Estado e dos governos de turno, independentemente da cor político-partidária. Há uma convergência unânime em torno da compra de terras para indenizar os fazendeiros ou a permuta por fora dos processos demarcatórios. Em  evento de oficialização da exportação de carnes rumo à China, realizado no frigorífico da JBS em Campo Grande no começo deste ano, o presidente Lula anunciou a compra de uma fazenda para os Guarani e Kaiowá na beira da estrada. Ao mesmo tempo, conclamou o governador do estado, Eduardo Riedel, a criar uma parceria para a compra de propriedades rurais para assentar os indígenas. O conhecido empresário e ruralista, Riedel organizou o Leilão da Resistência quando era presidente da Federação de Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), em 2013 (1). Há 11 anos atrás, Riedel já apontava para essa saída e inclusive participou da criação do Fundo Estadual para Aquisição de Terras Indígenas (FEPATI), cujo objetivo é a captação de recursos públicos e privados para a compra de fazendas que incidem em Territórios Indígenas – com o consentimento do governo federal, inclusive de políticos locais ligados ao Partido dos Trabalhadores (PT). A proposta não contempla a devida consulta às comunidades indígenas, passando por cima da tradicionalidade da terra, sendo que já há terras identificadas e reconhecidas como tradicionais e originárias. Esta imposição se configura como mais um processo de desterritorialização das comunidades que teimam em acampar nas beiras de estrada próximas aos seus almejados territórios.

O Ministério dos Povos Indígenas, através de seu gabinete da crise, vem também sinalizando como solução aos conflitos a retribuição monetária dos fazendeiros pela terra. No fundo, dá continuidade à política do Governo Federal de conciliação dos interesses antagônicos entre fazendeiros e os Guarani e Kaiowá. Porém, esse mecanismo abre um perigoso precedente de vincular os direitos originários à capacidade da União em arcar com os preços de mercado da terra exigidos pelos fazendeiros, não levando em conta que essas terras são fruto de violências expropriatórias contra os indígenas durante a  história republicana do Brasil, que vai desde a cessão de 5 milhões de hectares de terra à Companhia Matte Laranjeiras, que passa pela Marcha para o Oeste durante o governo Vargas e perdura até os dias atuais. Também, em um contexto de austeridade fiscal para os direitos sociais, a morosidade de pagamento das terras aos fazendeiros se converte em mais um mecanismo que retarda o acesso à terra. 

A liberalização dos Territórios Indígenas, efetuada a partir da deslegitimação ideológica da tradicionalidade pela via da indenização prévia da terra nua, abre a possibilidade de que variantes distorcidas de permuta sejam realizadas de forma completamente diferente do estabelecido por lei. Grandes proprietários podem passar a oferecer terras altamente degradadas às comunidades que reivindicam territórios condicionando a entrega da terra ao recuo das comunidades e a saída das retomadas. Esta situação aconteceu na recente audiência conciliatória entre comunidades indígenas e fazendeiros no Ministério Público Federal pelo conflito da TI Panambi-Lagoa Rica, em que grandes proprietários ofereceram 150 hectares de terra degradada aos indígenas. Perante os 12.196 hectares reivindicados, esta troca representou uma barganha inaceitável para os Guarani e Kaiowá, que no ato recusaram dignamente o ardil. Os mesmos 150 hectares de terra oferecidos como forma de negociação mediada pelo MPF, foram objeto de ordem de reintegração de posse em favor dos fazendeiros. Se efetivado este tipo de “saída” na TI Panambi Lagoa-Rica se abre a possibilidade de um precedente de aplicação em nível nacional além de promover a desobrigação do Estado no avanço das demarcações.

O paroxismo com que o agronegócio busca ludibriar os mecanismos institucionais que garantem direitos sociais e meio ambientais expressam uma crise estrutural muito profunda em que o capital não mais aceita barreiras ao seu processo de expansão. Subordinada às grandes corporações transnacionais e pressionada pela feroz concorrência no mercado internacional de commodities, a burguesia agrária local não consegue reproduzir seu padrão de acumulação e domínio sem um alto grau de destruição de seres humanos e da natureza, levando a humanidade aos limites da catástrofe e da mera sobrevivência através da acumulação por espoliação.  

Torna-se essencial o controle político através das bancadas no Congresso Nacional, dos representantes ideológicos  ao interior do STF e da ocupação de pastas no Governo Federal, onde redes de burocratas, cujos interesses estão intimamente vinculados à estabilidade do sistema, operacionalizam a drenagem da riqueza socialmente produzida via cadeias globais de acumulação comandadas pelos grandes monopólios do capital financeiro internacional. Os dispositivos acionados são os mais diversos: isenções fiscais através da antiga Lei Kandir e, mais recentemente, da reforma tributária, o perdão das dívidas ao setor e, caso notável que escancara a assimetria de poder econômico e político é a do Plano Safra 2024-2025, que destinou um montante de R$ 600 bilhões ao agronegócio. As propostas de indenização prévia da terra nua e de permuta em suas inúmeras variantes junto com a flexibilização da Constituição de 88, são mais um capítulo do saqueio em curso que reflete a crise global em que o capital se encontra atualmente. 

Os limites do Estado e da administração do conflito 

No dia 17 de julho, os fazendeiros locais entraram com ação judicial de reintegração de posse ajuizada na 1ª Vara Federal de Dourados, com pedido de antecipação de tutela para o despejo da comunidade Guarani e Kaiowá. O pedido dos ruralistas foi aceito e legitimado pelo juiz, que deu cinco dias para que a comunidade saia do seu legítimo território tradicional, já identificado a partir do processo demarcatório. O juiz, sem fazer referência expressa, se utiliza justamente da tese do Marco Temporal para descaracterizar o Território Indígena e tratar os Guarani Kaiowá como invasores da propriedade privada rural. Ao deferir a antecipação de tutela, o juízo ignora a existência do processo demarcatório impedindo a defesa do povo do seu território.

Desde a ordem de reintegração de posse, um helicóptero sobrevoa a área da retomada impondo o terror e trazendo lembranças do Massacre de Guapo´y em 2022, quando um helicóptero da Polícia Militar literalmente caçou os indígenas deixando dezenas de feridos e 1 morto, no Mato Grosso do Sul. Os fatos mostram como o Estado democrático de direito é funcional aos interesses do grande capital, dando ares de legalidade e legitimidade à concentração da riqueza social e da terra enquanto recorre à violência direta quando lhe escapa das mãos o controle social. O “desforço imediato” acionado pelos próprios fazendeiros e o uso de segurança pública para “apaziguar o conflito” e “oferecer segurança aos indígenas” são lados da mesma moeda do espólio de terras. Com efeito, de acordo com os próprios Guarani Kaiowá, a Força Nacional, acionada pelo Ministério dos Povos Indígenas (MPI), tem feito vistas grossas às ameaças dos ruralistas ou mesmo agravado o tensionamento local. 

A ampla gama de instituições criadas para resguardar os direitos territoriais dos povos originários: Gabinete de Crise do MPI, Grupo de Trabalho Povos Indígenas (GTPI), Defensoria Pública da União (DPU), Departamento de Mediação de Conflitos do MPI, Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) – se mostra inofensiva e inoperante diante do jogo de forças com que os fazendeiros contam na hora de perpetrar um despejo que anuncia mais um derramamento de sangue.

Na prática, um MPI desfinanciado e despido de suas atribuições de demarcação territorial tem sido instrumentalizado pelo Governo Federal para tentar conciliar o inconciliável e adiar a concretização de um direito inegociável: os interesses radicalmente antagônicos de fazendeiros e povos originários. Ao fechar os olhos para a reintegração de posse e insistir que um diálogo está sendo travado com os fazendeiros, o Governo Federal, na figura de seus ministérios, aceita rifar os direitos originários ao mercado cumprindo o papel subordinado aos interesses do grande capital financeiro internacional. 

A política de apaziguamento das lutas já foi percebida pelos povos indígenas que resistem e se recusam a abandonar seus territórios secularmente usurpados. A poucos dias de execução do despejo e de um iminente massacre, o povo Guarani Kaiowá mantém a sua resistência e mostra que a única reconciliação possível se encontra na demarcação das terras indígenas.

Referências:

1. O Leilão da Resistência foi iniciado nas campanhas que levaram posteriormente à eleição do governo Bolsonaro e foi promovido pela Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul (Acrissul), com apoio e presença de parlamentares vinculados à bancada ruralista no Congresso Nacional. Riedel, enquanto ruralista, empresário e governador, foi presidente do Sindicato de Maracaju, vice-presidente na Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul e diretor da Confederação Nacional da Agricultura (CNA).

*Editado por Solange Engelmann