Ogronegócio
Condenado por morte de sem-terra vira sojeiro festejado por políticos no Pará
Por Daniel Camargos
Do Repórter Brasil
De Vitória do Xingu (PA) – Para marcar a primeira colheita de soja da fazenda Talismã, no ano passado, Debs Antônio Rosa contratou a dupla sertaneja Bruno e Barreto e promoveu uma apresentação gratuita para milhares de pessoas. Às margens da Transamazônica e vizinha à hidrelétrica de Belo Monte, é difícil ignorar a propriedade, anunciada por um imenso outdoor na estrada.
Antes do show, Debs promoveu a fazenda ao lado de prefeitos e deputados da região durante o chamado “Dia de Campo”. “Vai marcar uma nova era na agricultura regional”, narrava o locutor em um vídeo promocional no site da prefeitura de Vitória do Xingu (PA), que transmitiu o evento pelas redes sociais.
Menos de dez anos antes, a fama de Debs era outra. Em 2015, em vez de ser reconhecido como empresário do agronegócio no Vale do Xingu, ele era acusado de sequestro, formação de quadrilha e assassinato, com passagens pela prisão.
O ano de 2015 foi especialmente violento na região, com seis agricultores sem terra assassinados e 79 ameaças registradas. Uma das mortes implica diretamente Debs Antônio Rosa, condenado em primeira instância e preso pelo crime. Hoje, ele recorre em liberdade, criando gado e plantando soja.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) o apontava como um dos responsáveis pela violência em Anapu (PA). O município entrou para o noticiário nacional em 2005, quando a missionária católica Dorothy Stang foi executada. Desde então, outros 19 trabalhadores rurais também foram mortos.
A Repórter Brasil entrou em contato com um advogado de Debs. Ele afirmou que seu cliente está aguardando o julgamento da apelação e que “não tem nada a declarar”.
A trajetória de Debs é um retrato de como parte da elite do agronegócio enriqueceu na Amazônia, mas guarda esqueletos no armário, como suspeitas de crimes ambientais, grilagem de terras e assassinatos.
A Repórter Brasil teve conhecimento da fazenda de Debs ao mapear a agenda pública do ex-secretário de política fundiária, Luiz Antonio Nabhan Garcia. Presença frequente nos municípios do rio Xingu, Nabhan foi o principal interlocutor do governo Jair Bolsonaro com o agronegócio da região.
Lote 83
Desde o assassinato de Dorothy Stang, os nomes de todas as vítimas dos conflitos por terra em Anapu estão escritos em uma cruz vermelha cravada na sepultura da missionária. Um deles é José Nunes da Cruz e Silva, conhecido como Zé da Lapada.
Segundo ação movida pelo Ministério Público Federal (MPF), ele teria sido ameaçado por Debs menos de um mês antes de ser morto. No dia da sua execução, Zé da Lapada foi primeiro atingido na perna por dois homens em uma moto. Logo depois, os assassinos retornaram para atirar em sua cabeça.
À época, Debs afirmava ser um dos donos do lote 83, palco de históricos conflitos fundiários em Anapu. A área foi licenciada para colonos de outras partes do país pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) na década de 1970, durante a ditadura militar. Muitos dos beneficiários, porém, não cumpriram com as atividades econômicas acordadas com o regime, como exploração de madeira e pecuária.
Uma vistoria nos anos 1980 encontrou grandes áreas abandonadas. Com isso, os contratos foram cancelados e as terras, devolvidas ao governo, cabendo ao Incra destiná-las para a reforma agrária. Entretanto, antigos ocupantes venderam os terrenos para terceiros, sem a anuência do órgão federal, resultando num caos fundiário.
Em 2015, a família de Zé da Lapada era uma das 46 que acampavam nas imediações do lote 83, pleiteando que as terras devolutas fossem integradas ao programa de reforma agrária. Desde então, aqueles trabalhadores sem terra viveriam uma rotina de ameaças e mortes.
O primeiro assassinato ocorreu em julho daquele ano, logo após as barracas de lona preta serem levantadas. A matança seguiu até o final de 2015, totalizando seis vítimas – Zé da Lapada foi uma delas.
Dias antes de ser executado, Zé da Lapada foi visitado por Debs e capangas armados em uma caminhonete, de acordo com as investigações do MPF. “Quem mais sofre são as mulheres. Fique certa que nada acontece com a senhora”, teria dito Debs à esposa da vítima.
O fazendeiro foi preso preventivamente em 2016, acusado de ser o mandante do assassinato. A condenação pelo Tribunal do Júri ocorreu dois anos depois: pena de dez anos, em regime fechado.
Hoje, Debs está em liberdade graças a um alvará de soltura assinado em 2023 pelo juiz Bruno Felippe Spada, da comarca de Anapu. “Até que haja eventual confirmação do decreto condenatório em segunda instância, não mais observo a ocorrência dos motivos ensejadores de sua prisão preventiva”, decidiu o juiz.
Além do 83, outros lotes são alvo de disputa na região de Anapu. De um lado, pequenos agricultores solicitando que essas terras da União sejam destinadas à reforma agrária. De outro, grandes fazendeiros dizendo que compraram os terrenos de boa fé. O conflito se arrasta na Justiça, mas se reflete também no dia a dia dos trabalhadores sem terra.
Além de Debs, outras duas pessoas afirmavam ser proprietários das terras do lote 83: Regivaldo Pereira Galvão, conhecido como Taradão, condenado como um dos mandantes do assassinato de Dorotthy Stang, e José Iran dos Santos Lucena, preso em 2019, acusado de liderar uma milícia armada de fazendeiros no sudeste do Pará.
Segundo relatos dos moradores ao MPF, Debs e José Iran teriam se aliado a Taradão, para expulsar os trabalhadores sem terra do local.
Debs foi preso pela primeira vez em 2004, denunciado por formação de quadrilha e sequestro. Depois de sair da cadeia em Redenção, no sul do Pará, voltou ao presídio em 2006, após ser flagrado por porte ilegal de arma de fogo.
Em 2012, conseguiu um habeas corpus e, no ano seguinte, foi preso novamente, desta vez suspeito de participar do assassinato de um comerciante em Araguaína (TO), acusação da qual seria posteriormente absolvido. Na época, seu irmão, Fraudneis Fiomare Rosa, era o vice-prefeito da cidade. Atualmente, ele é secretário-executivo de Esportes e Juventude do governo de Tocantins.
O advogado de Debs afirmou que seu cliente não se manifestaria sobre essas prisões e acusações.
Fazendeiro badalado
Hoje em liberdade, Debs circula pela região do rio Xingu gerenciando suas fazendas localizadas em Anapu, Senador José Porfírio, Portel, Altamira e Vitória do Xingu. Constantemente publica vídeos e fotos nas redes sociais da Fazenda Talismã.
Em uma das festas de abertura da colheita de soja ocorrida em abril de 2022, também patrocinada por Debs, ele fez questão de mencionar ao microfone que havia se encontrado com o governador Helder Barbalho (MDB), dias antes.
Na ocasião, Debs estava ao lado dos prefeitos de Portel e Senador José Porfírio. Outras importantes lideranças ruralistas, como os presidentes dos sindicatos dos produtores rurais de Altamira e de Sorriso, em Mato Grosso, também participaram.
Em outras fotos postadas no Instagram, Debs posa ao lado do prefeito de Altamira discutindo um projeto de confinamento de bois e a construção de um frigorífico; chama os secretários municipais de “amigos pessoais” e agradece a amizade do vice-prefeito de Vitória do Xingu.
Mas nem só políticos povoam as redes do fazendeiro. Em um dos vídeos em seu Instagram, ele aparece abraçado a Laudelino Délio Fernandes. Na época do assassinato de Dorothy Stang, Fernandes chegou a ser investigado como um dos mandantes da execução da missionária, sob alegações de ter escondido em uma de suas fazendas um dos criminosos posteriormente preso pelo crime.
Fernandes não foi indiciado, nem julgado por participação na morte da religiosa. No entanto, já foi condenado por crimes ambientais e sentenciado ao pagamento de R$ 5 milhões por envolvimento em fraudes da antiga Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, a Sudam, criada pelo governo militar para desenvolver a região.
“Um grande homem no qual tenho [sic] uma enorme consideração pela pessoa que é”, escreveu Debs sobre Fernandes em seu Instagram. No vídeo, imagens de pastagens e dos dois amigos abraçados são editadas com a trilha sonora de Tião Carreiro e Pardinho, cantando “Rei do Gado”.
Nas entranhas do ‘ogronegócio’
Fernandes e outros fazendeiros e empresários da região do rio Xingu tiveram portas abertas em Brasília durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Em 10 de outubro de 2019, Nabhan Garcia, então secretário de políticas fundiárias, atendeu o ruralista e outros produtores rurais da região que foram à capital fazer lobby contrário à criação de um território para comunidades tradicionais ribeirinhas.
A proposta era reassentar 307 famílias expulsas pela construção da hidrelétrica de Belo Monte. Os produtores rurais, no entanto, eram contra por se dizerem legítimos proprietários da área.
Duas semanas após a reunião no gabinete de Nabhan, uma audiência no Senado debateu o tema. “O governo tem a obrigação de manter a segurança jurídica. E o que vemos é que ela se perdeu neste caso, em relação aos produtores rurais. A propriedade necessita ser respeitada. Não podemos cometer injustiças com famílias que estão lá há 30, 40, 50 anos”, disse o auxiliar de Bolsonaro, ecoando o discurso de Fernandes e dos fazendeiros.
No mês seguinte, o Ibama aprovou o projeto de criação do território para os ribeirinhos. Porém, passados cinco anos, as famílias não foram reassentadas. Perguntado sobre a reunião, Nabhan não respondeu. Fernandes também não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem.
O irmão de Laudelino Délio Fernandes, Silvério Fernandes, é outro velho conhecido de Nabhan. Estiveram juntos em cima de um caminhão em 2018, ao lado do então candidato a presidente Jair Bolsonaro, na Curva do S. Esse é o trecho da BR-155 onde 19 trabalhadores rurais sem terra foram mortos por policiais militares em 1996, no chamado Massacre de Eldorado dos Carajás.
No discurso, Bolsonaro defendeu os policiais e chamou os integrantes do MST de “gente canalha e vagabunda”. Nabhan também discursou: “Bolsonaro, aqui o recado da classe produtora é direto: procuramos um presidente que não nos atrapalhe e não nos persiga”.
Seis anos atrás, Silvério se envolveu em uma campanha contra o Padre Amaro José Lopes. Considerado o sucessor de Dorothy Stang por seu trabalho missionário com famílias sem-terra, ele chegou a ser preso por 92 dias, como mostrou a Repórter Brasil, acusado de liderar uma “organização criminosa” que promovia “invasões de propriedades” na região.
Um dos depoimentos considerados pela Polícia Civil para prender o padre foi justamente o de Debs Antônio Rosa. No inquérito policial, o fazendeiro afirma ter sido chantageado por Padre Amaro, dizendo que o religioso teria cobrado dinheiro para não entrar em suas terras. Debs, no entanto, não apresentou provas.
Durante o depoimento, Debs confirmou ao delegado de Polícia Civil de Anapu que era então investigado pelo assassinato de Zé da Lapada e que já havia sido preso por acusações como estelionato, formação de quadrilha e danos ao patrimônio de terceiros. Apesar desse histórico, a acusação feita por Debs foi considerada para levar o Padre Amaro para a cadeia.
Esta reportagem teve apoio da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.
Edição: Diego Junqueira