Povos Indígenas
Fazendeiro que abriga jagunços contra Guarani Kaiowá tem filha indiciada por ligação com PCC
Por Bruno Stankevicius Bassi e Tonsk Fialho
Do De Olho nos Ruralistas
Os Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul vivem há quase um mês a expectativa de um novo massacre. Os ataques começaram em 14 de julho, após os indígenas iniciarem a retomada de uma área de 150 hectares da Terra Indígena (TI) Panambi-Lagoa Rica, no município de Douradina, sul do estado. Horas depois da retomada, jagunços armados avançaram sobre um dos acampamentos, batizado de Yvy Ajere — “terra redonda” em Guarani. A ação deixou dois indígenas feridos: Paulo Aquino, de 56 anos, foi baleado na perna e Sheila Kaiowá, de 63 anos, sofreu escoriações no braço e no pé.
Dois dias depois, em 16 de julho, a Força Nacional foi acionada para deter a escalada do conflito. Os agentes federais permaneceram no local por duas semanas, sem dissolver o cerco montado pelos fazendeiros. No dia 1º de agosto, um casal foi preso transportando armas de fogo para o acampamento ruralista. Apesar da tensão crescente, a Força Nacional se retirou do local no dia 3. Poucas horas depois, pistoleiros invadiram a retomada Pikyxyin, deixando dez Guarani Kaiowá feridos. Um jovem de 20 anos foi internado em estado grave, com um projétil alojado no crânio.
A estrutura — que conta com tendas, gerador, caminhonetes e drones — foi montada na Fazenda Irmãos Spessatto, um imóvel de 310 hectares, totalmente sobreposto à TI Panambi-Lagoa Rica. Seu dono, Cleto Spessatto, 74 anos, assina uma das ações de reintegração de posse contra a comunidade, expedida no dia 26 de julho. O processo tramita em caráter de urgência devido ao requerente ser idoso. Cleto é um fazendeiro conhecido na região e um dos principais atores no conflito, que já dura mais de uma década. Fato menos conhecido: ele é também pai de uma das principais operadoras do Primeiro Comando da Capital (PCC) no Mato Grosso do Sul.
Sua filha, Jacqueline Michelle Spessatto, foi denunciada em 2019 pelo Grupo de Atuação Especial e Combate ao Crime Organizado (Gaeco) após conversas telefônicas interceptadas confirmarem o envolvimento dela no roubo de uma caminhonete e na divisão dos lucros dos crimes cometidos pela facção no estado. Segundo o relatório da Operação Yin Yang, a filha de Cleto Spessatto era conhecida como “Loira do PCC” ou “Jack Madrinha” e respondia diretamente a Edson Chaves de Brito, o Malboro, chefe do grupo criminoso.
O caso é tema de vídeo-reportagem publicada ontem (8) no canal do observatório no YouTube. O vídeo inaugura uma playlist específica, sobre as assinaturas políticas e econômicas presentes nas emergências socioambientais.
Confira abaixo:
Filha de fazendeiro repassava lucro de roubos
Quando a Operação Yin Yang revelou a ligação de Jacqueline Spessatto com o PCC, ela já se encontrava presa no Estabelecimento Penal Feminino Irmã Irma Zorzi, em Campo Grande, após confessar ter participado de dois roubos, sendo um deles seguido de sequestro. Os crimes ocorreram em janeiro de 2018. A filha de Cleto foi sentenciada a sete anos de reclusão em regime fechado.
O caso entrou na investigação do Gaeco e baseou a denúncia oferecida pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul contra Jacqueline, Malboro e outras oito pessoas. Segundo o processo, o chefe do PCC acionou a “Loira” para resolver a divisão dos lucros da venda de um dos itens roubados — uma caminhonete VW Amarok. Um dos criminosos, membro da facção, não teria aceitado dividir o dinheiro da venda.
Jacqueline foi até Pedro Juan Caballero, na fronteira do Paraguai com Ponta Porã (MS), para solucionar a questão. De lá, ela participou em uma teleconferência com Malboro, que se referia a ela como “companheira”, o termo usado entre membros da facção. Na mesma chamada, Jacqueline pergunta se seria recebida por uma “cunhada” — isto é, uma das mulheres do PCC.
De Olho nos Ruralistas não identificou se as denúncias contra Jacqueline foram aceitas até o momento. A reportagem buscou contato com o advogado da família Spessatto, que também representa Cleto na ação de reintegração contra os Guarani Kaiowá. Não houve retorno até o fechamento.
Família foi denunciada por crimes ambientais e por desvio de verbas
Pai da “Loira do PCC”, Cleto Spessatto é um dos principais fazendeiros da região de Dourados. Ao todo, ele e os irmãos são donos de treze imóveis, que totalizam 800,61 hectares. Três deles estão totalmente sobrepostos à Terra Indígena Panambi-Lagoa Rica, palco do conflito do último domingo (04).
O histórico do fazendeiro — exceto a última revelação sobre o envolvimento de sua filha com o PCC — foi contado pelo De Olho nos Ruralistas em 2023, no relatório “Os Invasores: quem são os empresários brasileiros e estrangeiros com mais sobreposições em terras indígenas“, que detalhou os mais relevantes dentre 1.692 casos de sobreposição identificados a partir das bases de dados fundiários do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Em 2016, o Ministério Público Federal (MPF) moveu um pedido de indenização contra Cleto Spessatto e a empresa Dimensão Aviação Agrícola, na qual fora sócio. Motivo: a pulverização de agrotóxicos sobre a comunidade indígena Guyra Kambi’y, localizada ao lado da Fazenda Irmãos Spessatto. A mesma que foi atacada no dia 14 de julho, após o avanço das retomadas.
A ação pedia uma indenização de R$ 286 mil, porém a 1ª Vara da Justiça Federal de Dourados julgou o pedido improcedente. Na decisão, o magistrado comparou o despejo de venenos agrícolas em idosos e crianças Guarani Kaiowá à exposição nas cidades ao “fumacê” contra o mosquito da dengue:
— Há atividades que não podem ser suprimidas sem grave prejuízo à coletividade. O próprio combate à dengue, por exemplo, exige, muitas vezes, aplicação por pulverização de inseticida pelas ruas da cidade, para matar o mosquito.
Seis anos antes, em 2010, Cleto foi multado em R$ 16.500 pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Os fiscais constataram o represamento irregular de um rio para encher tanques de lavoura de arroz, provocando falta d’água para os vizinhos. O fazendeiro recorreu da decisão, mas teve sua condenação mantida em 2019, em decisão de 2ª instância.
A família de Cleto é dona de empresas de aviação agrícola, combustíveis e de gestão empresarial, além de manter fazendas em Sorriso e Campo Novo dos Parecis, no Mato Grosso. Uma dessas empresas, a Spessatto Diesel, hoje inativa, chegou a ser denunciada pelo MPF por participação no desvio de R$ 14 milhões do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), em Dourados. Segundo a investigação, a distribuidora de combustível controlada pelo irmão de Cleto, Dori Spessatto, atuava indiretamente em contratos públicos fraudados.
Guarani Kaiowá demandam apenas 3% de área delimitada em 2011
A Terra Indígena Panambi-Lagoa Seca é reconhecida pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) desde 2005, quando saíram os primeiros estudos demarcatórios. O território chegou a ser delimitado via decreto em 2011, mas o processo foi anulado em 2016 pela 1ª Vara Federal de Dourados, pouco mais de um ano após a retomada Guyra Kambi’y sofrer uma série de ataques bastante similar à essa última, iniciada em 14 de julho.
A ação movida pelo fazendeiro Leonino Custódio Pereira usava como base legal o Marco Temporal, que considera válidas apenas as demarcações de terras indígenas ocupadas continuamente desde 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a tese está novamente em discussão após a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) aprovar uma lei que estabelece o Marco Temporal como critério para demarcação de novos territórios.
Um dos líderes da frente ruralista, o deputado Marcos Pollon (PL-MS), foi até a região de Douradina, onde gravou um vídeo, publicado em 19 de julho, insuflando os fazendeiros com notícias falsas. Segundo ele, os Guarani Kaiowá seriam paraguaios que cruzaram a fronteira. Coordenador de Segurança no Campo da FPA, Pollon também é presidente do Pró-Armas e um dos articuladores do Movimento Invasão Zero, duas organizações que estimulam proprietários de terras a se armarem para expulsar indígenas e camponeses, sem mandado judicial: “Líder do Invasão Zero na Bahia é ré por tentativa de homicídio“.
Esse modus operandi é o mesmo adotado no ataque às retomadas Guarani Kaiowá. A tentativa de despejo forçado pelos jagunços instalados na Fazenda Irmãos Spessatto ocorreu apenas um dia depois da Justiça conceder uma liminar, em 2 de agosto, autorizando a reintegração de posse. Mas, devido à ação violenta dos fazendeiros, a liminar foi suspensa pelo Tribunal Regional Federal da 3a Região (TRF-3), na segunda-feira (05).
A beneficiária do despejo, Lana Ferreira Lins Lima, é uma das 34 proprietárias de imóveis em sobreposição à área pretendida para criação da TI Panambi-Lagoa Rica. Embora a área total designada ultrapasse os 12 mil hectares — metade do município de Douradina — os Guarani Kaiowá demandam um território muito menor: cerca de 3% desse total.
Segundo relatos dos advogados indígenas, Lana Lima seria uma das proprietárias dispostas a negociar, porém o diálogo foi interrompido após intervenção de sindicatos rurais e da Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul).