Violência no Campo
Da pistolagem ao Invasão Zero: a evolução das milícias rurais no sudeste do Pará
Por Daniel Camargos
Do Repórter Brasil/ IHU
A bolsa de Raimunda fica pendurada em um prego ao lado da cama. Quando escuta um latido alto de cachorro ou o barulho de uma caminhonete na madrugada, ela se senta, abraça a bolsa com força e prende a respiração: “Todo dia eu durmo com medo”.
Tem sido assim nos últimos três anos. Desde que foi expulsa por um grupo de homens armados do acampamento São Vinícius, em Nova Ipixuna, no sudeste do Pará, Raimunda Silva Gomes, de 66 anos, se prepara para fugir a qualquer sinal, temendo um novo ataque. “Eu não posso ficar sem meus documentos. São tudo que tenho”, desabafa, apontando para a bolsa.
Ela e os outros acampados foram vítimas de um despejo ilegal, feito por homens encapuzados que dispararam, fizeram reféns e queimaram os barracos e motocicletas. As famílias ocupavam uma fazenda que, segundo o Ministério Público Federal (MPF), está sobreposta a uma área da União. Agora, estão acampadas de forma improvisada em um pequeno lote.
O barraco de Raimunda é de madeira, com um único cômodo. O piso é de terra batida e o telhado, de palha de coco, assim como as outras 20 casas dos acampados. O espaço entre elas é mínimo. Não há banheiros, nem água encanada, muito menos energia elétrica. Estão amontoados ali na esperança de que o governo destine para eles um sítio para viver e plantar.
Ações ilegais de despejo se tornaram comuns no sul e sudeste do Pará e refletem uma evolução nos métodos usados por latifundiários para enfrentar quem luta pela reforma agrária, analisa o advogado José Batista Afonso, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade ligada à Igreja Católica.
Batista explica que, apesar de a região ter uma tradição de pistolagem, o trabalho de organizações como a CPT para responsabilizar os mandantes desses ataques – e não somente quem aperta o gatilho – forçou uma mudança de estratégia dos mentores dos crimes.
Antes, a opção preferencial era matar as lideranças dos trabalhadores rurais sem terra com a contratação de pistoleiros. Agora, a estratégia é outra: continua violenta, mas sem deixar mártires. Os próprios fazendeiros vêm agindo à luz do dia para expulsar os trabalhadores, muitas vezes ao lado de forças policiais, quando as ocupações estão no início.
“Houve uma mudança que passou a ser a articulação através de grupos de Whatsapp. Quando acontece uma ocupação, os fazendeiros se organizam e chegam rapidamente aos locais, em grandes grupos. Queimam tudo: barracas, documentos, carros, motos, mas não matam mais”, afirma Batista.
Exatamente como ocorreu com Raimunda no acampamento São Vinícius, em Nova Ipixuna.
Discursos inflamados e liberação de armas alimentam violência
A nova estratégia foi inaugurada no acampamento Hugo Chávez, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Marabá.
Cerca de 1.200 famílias ocuparam a fazenda Santa Tereza, em 2014, alegando que a propriedade era improdutiva e estava em uma terra pública. As famílias viveram na área por três anos, mas deixaram o local após o fazendeiro obter uma liminar judicial de reintegração de posse.
Uma nova ocupação foi realizada em julho de 2018, mas o desfecho foi outro. Ela ocorreu duas semanas após o então candidato à presidência Jair Bolsonaro subir em um caminhão, a poucos quilômetros dali, na chamada Curva do S, trecho da BR-155 no Sul do Pará. Bolsonaro defendeu os policiais condenados pela morte de 19 membros do MST em abril de 1996, ocorrida exatamente naquela parte da rodovia, no episódio que ficou conhecido como o Massacre de Eldorado dos Carajás (PA).
“Quem tinha que estar preso era o pessoal do MST, gente canalha e vagabunda. Os policiais reagiram para não morrer”, bradou Bolsonaro.
Antes do presidenciável, o então dirigente da União Democrática Ruralista (UDR), Luiz Antonio Nabhan Garcia, já tinha usado a palavra. “Aqui o recado da classe produtora é direto: procuramos um presidente que não nos atrapalhe e não nos persiga”, disse Nabhan, que viria a se tornar secretário de assuntos fundiários no governo Bolsonaro.
“Quando o senhor se tornar presidente, vê o que fará com essa gente da Funai, do Ibama, do Ministério Público, que não respeita a propriedade privada”, emendou o homem de confiança do ex-presidente e principal interlocutor com setores do agro na região.
Na avaliação de Manoel da Silva Souza, liderança do MST que participou da reocupação da Santa Tereza, a passagem de Bolsonaro pela Curva do S funcionou como gatilho para a violência dos fazendeiros. Horas depois de ocuparem a fazenda pela segunda vez, as famílias foram atacadas. “A milícia chegou. Todos encapuzados, dando tiros para o alto, batendo nos acampados e mantendo alguns como reféns”, descreve Souza.
Naquele momento, as pesquisas indicavam que Bolsonaro só perderia a eleição para o então ex-presidente Lula (PT), que estava preso e impedido de disputar o pleito. “Os fazendeiros já contavam com a vitória de Bolsonaro”, lembra Souza.
A ação foi a primeira de várias com o mesmo modus operandi: rápida articulação de fazendeiros por WhatsApp para mobilizar patrulhas rurais armadas e expulsar os acampados.
Além dos discursos inflamados de Bolsonaro e de seus auxiliares incentivando a violência rural, o governo do ex-presidente também facilitou o porte e a posse de armas. Apenas no Pará, o registro de armas de fogo teve um crescimento de 212% entre 2017 e 2022, segundo dados da Polícia Federal compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, passando de 13,9 mil para 43,5 mil armas por ano.
“Praticamente estamos vivendo um período de invasão zero nesses dois anos de governo”, disse Nabhan, durante uma live com o ex-presidente, em dezembro de 2020.
Mesmo com a derrota do líder de extrema-direita nas eleições de 2022, os fazendeiros da região mantêm a estratégia. “Quando acontece uma ocupação, eles se juntam rapidamente, contratam pistoleiros e formam uma milícia para retirar as famílias”, afirma Souza.
A prática se disseminou pelo Brasil. Na Bahia, despertou a atenção em 2023 com o nome “Invasão Zero”, a mesma expressão usada por Nabhan Garcia. Em um ano de atuação, foram ao menos sete ações, uma delas levando ao assassinato da indígena Nega Pataxó, com o mesmo modus operandi iniciado em Marabá, em 2018, e com a suspeita de participação de policiais – o caso está sob investigação da Polícia Federal.
Essas ações inspiraram também a criação de uma nova frente parlamentar no Congresso, a “Invasão Zero”, assinada por 204 deputados após o fracasso da CPI do MST, concluída no ano passado sem a apresentação de um relatório final.
Envolvimento de policiais
Entre a pistolagem das décadas de 1980 e 1990 e o modelo “invasão zero” que vigora atualmente, outra estratégia usada pelos fazendeiros passou a ser a contratação de empresas de segurança privada, muitas vezes com policiais aposentados e até da ativa em seus quadros, afirma o advogado da CPT.
Com CNPJ constituído e armamento legalizado, a investigação dos crimes cometidos por essas empresas fica mais difícil, explica Batista, por serem frequentes as tentativas de forjar confrontos para descaracterizar o que, na maioria das vezes, é um ataque.
Para o advogado, esse tipo de ação acaba facilitada pela estrutura da segurança pública na região. Ele cita o exemplo das delegacias de conflitos agrários (Deca). Criadas no Pará para investigar assassinatos e conflitos, elas teriam se tornado um espaço de defesa de latifundiários, analisa Batista.
Um caso emblemático foi a atuação do delegado da Deca Ivan Pinto da Silva, alvo de investigações do Ministério Público, da Corregedoria da Polícia Civil e da Secretaria de Segurança Pública do Pará por promover desocupações violentas, sem ordem judicial, em Marabá, São Félix do Xingu e Anapu, conforme mostrou a Repórter Brasil em 2022.
A reportagem solicitou uma entrevista com o delegado e enviou perguntas sobre os casos relatados, mas o pedido não foi atendido. Em nota, a Polícia Civil do Pará afirmou, na época, que “não tolera desvios de conduta e que casos como esse são devidamente investigados e, se comprovados, os autores são punidos conforme é previsto em lei”.
No Pará, outros episódios violentos contra trabalhadores rurais sem terra foram realizados com participação de policiais, como os massacres de Eldorado dos Carajás, em 1996, e o de Pau D’Arco, em 2017. Este último ocorreu em uma operação liderada pela Deca que tinha o propósito de cumprir mandados de prisão contra acampados, mas terminou com dez trabalhadores assassinados. Os mandantes da chacina não foram identificados.
Sem a terra e com pouca esperança
Após serem expulsos da fazenda Santa Tereza, em Marabá, as cerca de 1.200 famílias sem terra do acampamento Hugo Chávez vivem agora em uma pequena área cedida por um assentamento. Porém, têm pouca esperança de que terão um lugar para viver e trabalhar.
Antes da expulsão, Matias Gomes de Souza conta que chegou a encher 32 sacos de farinha com a mandioca que plantou. “Passaram com trator em cima de todas as plantações e destruíram tudo”, lamenta.
A desolação se vê também no acampamento São Vinícius, em Nova Ipixuna. “A necessidade faz a gente entrar em cada buraco que não deveria”, diz Josimar Ferreira, de 58 anos. Ele saiu de Imperatriz (MA) aos 15 anos e passou a vida trabalhando para fazendeiros em Xinguara e São Félix do Xingu, no Pará.
Se depender do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), as famílias de trabalhadores vítimas da violência rural terão que esperar mais tempo. Em entrevista à Repórter Brasil em 2023, o então superintendente do Incra na região disse que o órgão estava “sucateado” e sem verbas para desapropriação de terras. Declarou ainda que o número de servidores na regional caiu de 250 para 50. Procurada pela reportagem, a sede do Incra em Brasília não se manifestou até a publicação deste texto.
A reportagem questionou Nabhan Garcia sobre o legado de sua gestão para o Incra e o discurso de violência, mas ele não respondeu (veja as perguntas).
Sem terra para plantar, os agricultores trabalham para fazendeiros da região. “Arrumo cerca, corto juquira (mato que cresce nos pastos) e bato veneno (pulverizar agrotóxico). Mas pagam muito pouco e do jeito que querem, quando querem”, diz Souza, do Hugo Chávez. Ao recordar do dia da expulsão, ele sente revolta: “É polícia, é pistoleiro, é fazendeiro tudo misturado. Você não sabe dizer quem é pior”.
Esta reportagem teve apoio da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center. Saiba mais.