Meio Ambiente
Dossiê “Os Gigantes” apresenta os cem maiores municípios do Brasil e as relações entre a destruição ambiental e as eleições
Por Bruno Stankevicius Bassi
Do De Olho nos Ruralistas
De Olho nos Ruralistas lança nesta quinta-feira (5/9) o dossiê “Os Gigantes”, que reúne informações sobre as políticas ambientais dos cem maiores municípios brasileiros em extensão territorial. A área total soma 37% do território brasileiro, equivalente ao tamanho da Índia e maior que todos os países da Europa Ocidental.
“ É uma fatia decisiva e esquecida do Brasil”, aponta o diretor do observatório, Alceu Luís Castilho. “Esses municípios costumam ficar fora da cobertura eleitoral, diante da ênfase nos grandes centros urbanos, mas a importância ambiental deles é gigantesca. O impacto deles é planetário.”
O lançamento acontece às 19h, no Armazém do Campo, no centro de São Paulo. Participam do debate a coordenadora de Políticas Públicas do Observatório do Clima, Suely Araújo; o dirigente nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Gilmar Mauro; e a repórter do Brasil de Fato, Carolina Bataier.
O dossiê é resultado de um trabalho de quatro meses de investigação e coleta de dados a partir das bases do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), das próprias prefeituras e dos tribunais de Justiça.
Entre janeiro de 2021 e julho de 2024, esses municípios perderam 22 mil km² de vegetação nativa — 38,4% do desmatamento registrado no Brasil no período, equivalente ao tamanho de El Salvador. O relatório mostra como as políticas públicas adotadas pelos prefeitos e secretários desses municípios provocam a destruição ambiental.
Além do documento, De Olho nos Ruralistas publicará uma série de quatro vídeos detalhando os principais achados do estudo. O primeiro episódio está disponível em nosso canal no YouTube. Confira abaixo:
Cem municípios compõem 37% do território brasileiro
O território brasileiro comporta quase todo o continente europeu. Um quinto das Américas. É a maior área continental do hemisfério sul. O Oiapoque, no Amapá, está mais próximo do Canadá do que em relação a Chuí, no extremo sul do país. Entre o litoral paraibano, onde se inicia a Rodovia Transamazônica, e Mâncio Lima, na divisa com o Peru, são 4.326 quilômetros — quase a mesma distância entre Lisboa e Moscou.
Entre esses extremos existem 5.568 municípios. Entre eles, desponta um time seleto cujas proporções são comparáveis a países inteiros. O maior deles, Altamira (PA), é maior que a Grécia. Bem maior que Portugal.
Os cem maiores municípios brasileiros em extensão somam 37% do território nacional. Eles se espalham por onze estados — nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste — e abrangem os biomas Amazônia, Cerrado e Pantanal, além de uma porção do Chaco confinada dentro de propriedades privadas no município de Porto Murtinho (MS), na fronteira com o Paraguai.
Os Gigantes têm 17 entre os 30 municípios que mais emitiram gases do efeito estufa (GEE) em 2023 — decorrente, em grande parte, da conversão de florestas em pastos. Conforme veremos nas próximas reportagens, que detalham alguns dos casos do relatório, eles estão na linha de frente do avanço da fronteira agropecuária e minerária e lideram os dados de desmatamento no Brasil.
Nos cem maiores municípios vivem 4.356.441 de pessoas, 2,15% da população brasileira segundo dados do último censo demográfico, de 2022. Eles são polos de diversidade étnica e linguística, abrigando 24,3% da população indígena do Brasil: são 411.730 representantes de povos originários. Eles vivem em territórios reconhecidos pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) ou em centros urbanos — muitas vezes de modo forçado, após a expulsão de suas terras.
Os indígenas compõem 9,5% da população total dos Gigantes. E 65,4% dos habitantes se identificam como pardos; 8,1% como pretos. Somado, o índice é 32% superior à média nacional. Ainda dentro desse recorte, 34,8 mil pessoas se reconhecem como quilombolas, conforme identificado de forma inédita pelo Censo 2022.
Dos desastres à política
Entre 2014 e 2023, o Brasil registrou 32.729 ocorrências ligadas a desastres naturais. Esses eventos resultaram em 1.768 óbitos e deixaram mais de 4 milhões de pessoas desabrigadas. O impacto econômico é enorme: R$ 362 bilhões em prejuízos, o equivalente ao Produto Interno Bruto (PIB) da Bahia, conforme dados da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (Sedec/MIDR). Os eventos vêm se agravando: o quinquênio 2019/2023 teve o dobro de ocorrências em relação ao período anterior e quase o triplo de mortes.
Segundo levantamento realizado pela Casa Civil, o Brasil possui, ao todo, 1.942 municípios suscetíveis à ocorrência de deslizamentos, enxurradas e inundações. Dos cem maiores municípios do Brasil, 77 estão nessa lista. Eles concentram 195 mil pessoas vivendo em áreas sujeitas a deslizamentos, enxurradas e inundações — 5% da população. Em Caracaraí (RR), na fronteira com a Venezuela, 57% dos habitantes estão sob risco. Em Eirunepé e Boca do Acre (AM), mais de 30% vivem em áreas suscetíveis a desastres.
No Acre, a ameaça se confirmou em março deste ano: 19 municípios decretaram emergência em decorrência das megaenchentes que assolaram o estado. Três deles compõem os Gigantes: Feijó, Sena Madureira e Tarauacá. Neste último, 2,5 mil pessoas ficaram desalojadas e outras 500 recorreram a abrigos. A tragédia teve pouca repercussão nacional.
Outra face do colapso climático, a seca também atinge diretamente os Gigantes. Entre os dez municípios brasileiros que mais perderam superfície de água em 2023, todos integram a lista dos cem maiores. Os dados obtidos na plataforma MapBiomas mostram que esse avanço se dá principalmente no Pantanal: Corumbá e Aquidauana (MS), Cáceres e Poconé (MT) perderam, juntos, 5.442 km² de superfície de água — 3,5 vezes o tamanho de São Paulo (SP). Na Amazônia, outros 1.194 km² perdidos, divididos entre Chaves (PA), Barcelos, Coari e Codajás (AM), Caracaraí e Rorainópolis (RR).
A seca na Amazônia e no Pantanal alimenta a atual temporada de queimadas: Porto Velho — única capital entre os cem maiores municípios do Brasil — atingiu em agosto a pior qualidade do ar em todo o país, com uma concentração de poluentes 40,8 vezes superior ao valor anual recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Estudo reforça importância planetária dos cem maiores municípios
Esses dados estão entre os destaques do relatório produzido pelo núcleo de pesquisa do observatório De Olho nos Ruralistas. Ao longo de quatro meses, nossa equipe mapeou indicadores socioambientais e analisou as políticas ambientais realizadas pelas prefeituras desses cem municípios. Os dados são alarmantes: apenas 48 municípios gigantescos possuem secretarias ou órgãos específicos para o meio ambiente, com dotação orçamentária própria.
Nos demais casos, as políticas ambientais são geridas em conjunto com outras áreas, como economia, saúde, saneamento e até mesmo defesa civil. Em 30 municípios, as políticas de meio ambiente ficam a cargo das pastas de agropecuária, mineração e turismo — justamente os setores-alvo de licenciamento ambiental. O primeiro capítulo de “Os Gigantes” traz ainda uma análise dos municípios que, administrados por prefeitos fazendeiros, voltaram à lista de ações prioritárias do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm).
A segunda parte é dedicada aos conflitos de interesses. Quem são os prefeitos que comandam os Gigantes? Quais suas conexões com o agronegócio e o garimpo? Para entender os rumos das políticas ambientais nos cem municípios é necessário saber quem as influencia: entre os prefeitos eleitos em 2020, 39 são fazendeiros ou empresários do agronegócio, conforme declaração de bens entregue ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Em outros casos, a relação é menos óbvia. Como em Cocalinho e São Félix do Araguaia (MT), onde sindicatos rurais conquistaram a revisão do zoneamento ecológico, ampliando áreas de cultivo de soja. Ou em Itaituba e Jacaraecanga (PA), cujos mandatários são investigados por facilitar licenças para garimpeiros. Ou em Ribas do Rio Pardo (MS), onde o prefeito petista governa em linha com as diretrizes da Suzano, gigante do setor de papel e celulose.
O terceiro e último capítulo situa os Gigantes no debate global sobre as mudanças climáticas. Como as políticas ambientais dialogam com a expansão da fronteira agropecuária no Brasil? É possível conciliar a defesa dos ecossistemas e das pessoas mais vulneráveis aos efeitos da crise climática com o avanço contínuo do desmatamento para abertura de pastos e lavouras? Qual o papel do governo federal nesse contexto?
Trinta entre os cem municípios analisados estão na rota direta dos grandes empreendimentos fomentados no Novo PAC. Com impactos diretos sobre o ambiente: da explosão nos índices de desmatamento ligados à consolidação logística do Amacro (a mais recente fronteira agrícola, formada por Amazonas, Acre e Rondônia) ao colapso hidrológico no Pantanal, com a extensão da hidrovia Paraná-Paraguai. É possível discutir o combate às mudanças climáticas enquanto os governos — municipal, estadual, nacional — injetam dinheiro público em favor daqueles que destroem?
| Bruno Stankevicius Bassi é coordenador de projetos do observatório. |
Imagem principal (De Olho nos Ruralistas): relatório mapeia políticas ambientais e conflitos de interesses nos cem maiores municípios do Brasil.