Grito dos Excluídos
Um grito pela terra ecoou nas ruas da zona Norte de Porto Alegre (RS)
Caminhada percorreu as ruas da vila Farrapos onde as marcas da lama ainda estão nas casas que ficaram mais de 20 dias alagadas. Foto: Jorge Leão
Por Katia Marko
Do Brasil de Fato | Porto Alegre (RS)
A concentração para o 30º Grito dos Excluídos e Excluídas iniciou cedo na manhã deste sábado, 7 de setembro, em frente à Igreja Nossa Senhora dos Navegantes, na zona Norte de Porto Alegre. O tempo nublado anunciava a chuva que alterou o trajeto da caminhada até a Praça do Sesi, onde aconteceu a partilha de 1,5 mil marmitas preparadas pela cozinha solidária do MST de Eldorado do Sul e o encerramento do ato.
Com o lema “Todas as formas de vida importam. Mas, quem se importa?” o grito deste ano trouxe muito fortemente os temas das mudanças climáticas e do combate à fome. Antes da caminhada, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Levante Popular da Juventude realizaram uma mística de entrega dos estandartes das cozinhas solidárias apoiadas pelos movimentos e que alimentaram milhares de pessoas durante as enchentes e continuam a cumprir esse papel.
Articulador das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e do Conselho Nacional de Leigos do Brasil (CNLB), e um dos organizadores do grito, Waldir José Bohn Gass lembrou que, por mais de um mês, os moradores da região precisaram deixar o local devido aos alagamentos. “E agora com muita fé, com muita força, com muita esperança estão reconstruindo as suas vidas aqui, arrumando suas casas, seus espaços de geração de renda. E tantas coisas são importantes para a gente garantir vida digna para todos.”
Antes da caminhada, movimentos realizaram uma mística de entrega de estandartes para as cozinhas solidárias / Foto: Katia Marko
Segundo ele, é justamente isso que é necessário. “Todo mundo engajado na luta pela vida digna, porque esse sistema hoje, hegemonicamente vigente, esse sistema capitalista, olha tudo com a perspectiva de exploração, de apropriação, e não com cuidado para garantir a vida digna para todos. E essa é a nossa luta, garantir que haja vida digna para todos.”
Catadores gritam por socorro
Durante a caminhada foram feitas algumas paradas. A primeira foi em frente à Cooperativa Sepé Tiarajú, para demarcar o apoio aos catadores e catadoras que também foram muito atingidos/as nas enchentes.
A coordenadora do Fórum dos Catadores e Catadoras de Porto Alegre, Nubia Vargas, denunciou a dificuldade pelas quais passam as unidades de triagem na cidade. “Os catadores estão sendo excluídos da sociedade. O nosso grito vem hoje, pedindo o apoio de todos e todas”, disse, lembrando que, como muitos do Quarto Distrito, os trabalhadores com reciclagem perderam tudo, menos a esperança.
“Onde existe um de nós lutando, a gente vai ter força. Não importa o quanto eles falem, o quanto eles nos massacram, a gente vai estar aqui firme e forte. A luta continua. Nós vamos avante e não vamos permitir essa situação dentro da cidade. Esse prefeito que não governa para nós, governa para os ricos. Chega, basta, vamos à luta, não somos excluídos, somos os principais. Nós somos muito mais do que a gente pensa.”
Grito pelo meio ambiente
A coordenadora do Movimento Laudato Si‘ no RS, Rabeca Peres da Silva, destacou o Grito pelo meio ambiente, que padece frente à ganância do atual sistema de exploração desenfreada. “Nossa água potável está contaminada com agrotóxico. Nossos rios, nossos oceanos, poluídos por plásticos e tantos venenos vindos do garimpo que vêm do capitalismo. Estamos vivendo e sentindo o planeta doente, com febre, porque nós, seres humanos, que somos parte da Terra, também estamos doente.”
Integrante da Pastoral da Ecologia Integral, Rebeca defende ser “hora de esperançar e agir com a criação”. Ela lembra que a criação é a integralidade da natureza e os seres vivos. “Somos todos nós, seres humanos, e nossos irmãos e irmãs, animais, plantas. Com força e com fé caminhamos aqui, nos somando a tantas vidas perdidas, vidas humanas perdidas nessas enchentes e tantas outras catástrofes por causa da ação humana.”
Grito por moradia adequada
A próxima parada foi em frente à sede do Movimento Desabafa. Rodrigo Schley, coordenador da Associação Desabafa, do bairro Farrapos, afirma que a região ficou mais de 20 dias alagada porque “a prefeitura não queria colocar uma bomba pra tirar a água“, mas a mobilização social garantiu que fosse colocada. Ele destaca que o Grito está na luta por moradia adequada, porque quando esse direito não está garantido, os outros direitos também não estão.
“Quando não tem uma moradia adequada, não há saúde, não há cultura, não há educação e não há direito ao trabalho respeitado. Nós precisamos fazer a luta da moradia aqui na região do bairro Farrapos.”
Schley ressaltou que o projeto que a elite da cidade tem para a região é um projeto de exclusão. “É um projeto de retirar os pobres daqui pra construir grandes empreendimentos, pra construir prédios pra especulação imobiliária. Eles não querem que os pobres fiquem aqui, porque os pobres não dão lucro para eles. Eles querem apenas um bairro de ricos. E nós precisamos garantir a permanência dessas comunidades, famílias humildes, pobres, dos catadores, dos trabalhadores que estão aqui, para que eles mantenham os seus vínculos com as suas famílias, com o posto de saúde, com a escola do filho.”
Na última parada, em frente à Unidade da Saúde Fradique Vizeu, foi destacada a luta da comunidade por saúde pública.
Reconhecimento pelo trabalho das cozinhas solidárias
Ato de encerramento e a partilha das marmitas preparadas pelo MST foi na Praça do Sesi / Foto: Jorge Leão
Já na Praça do Sesi, numa grande roda foi realizado o ato de encerramento. A integrante da coordenação do Levante Popular da Juventude no RS, Mariana Dambroz, saudou o trabalho das cozinhas solidárias da Região Metropolitana de Porto Alegre e as pessoas e entidades que fizeram acontecer.
“As cozinhas solidárias foram construídas pela CUT na Comunidade, pelo MST, pelo Levante Popular da Juventude, pela Movimento Nacional de Luta por Moradia (MNLM), pelas diversas organizações que estão aqui hoje”, lembrou em reconhecimento.
“Foram produzidas muitas marmitas, muita comida para as pessoas atingidas, para as pessoas que estavam nos abrigos, para as pessoas que estavam nas casas dos familiares. Então é muito simbólico que a gente consiga olhar quem são essas pessoas que constroem todo dia, lá no seu território, cozinhas que produzem comida para as pessoas”, disse.
O presidente da Central Única dos Trabalhadores do RS (CUT-RS), Amarildo Cenci, também saudou quem fez as cozinhas solidárias acontecerem. Homenageou a Tia Lúcia, que é presidenta da Associação de Reciclagem e da Cozinha Solidária Força e Coragem, e “expressão desse esforço coletivo e comunitário” que apareceu “nesse momento tão dramático da vida das pessoas”.
Foto: Jorge Leão
Uma experiência, segundo Cenci, que defende não só o alimento saudável, mas a organização popular. “Defende que a gente construa um mundo sustentável, um mundo mais justo, um mundo inclusivo, que respeite as mulheres, os negros, os indígenas, os LGBTQIA+, e que faça desse mundo um mundo melhor para todos, para a maioria das pessoas que somos nós, o povo que sofre.”
O sindicalista reforçou que o 30º Grito dos Excluídos e Excluídas reafirma uma vez mais a nossa unidade na construção desse mundo. “Nós temos que sair daqui com o compromisso, engajamento, para que o próximo Grito seja bem maior, bem melhor, faça chuva, faça sol, porque nós precisamos, com esse compromisso, não deixar as ruas, não abandonar as pessoas que precisam, mas ao mesmo tempo nos construir melhor como pessoas, como humanidade e como povo.”
Lara Rodrigues, da direção estadual do MST, lembrou do processo “que foi esse crime ambiental que ocorreu aqui no Rio Grande do Sul”. Num primeiro momento, “foi de salvar vidas, de localizar as pessoas que estavam em perigo, de tentar fazer um contato, e a gente tem que relembrar isso porque talvez tenha sido o momento mais desesperador que a gente passou coletivamente aqui no Rio Grande do Sul”.
“A gente trouxe ali aquela nossa bandeira, suja de barro, pra lembrar que nós também, nossos territórios, nossos assentamentos foram atingidos“, disse. Quando as águas baixaram, veio então o período de ajudar com mutirões de limpeza, e depois as cozinhas solidárias. “Quem estava na linha de frente são essas companheiras, esses companheiros, que não hesitaram em dar o alimento para as pessoas. As comidas às vezes iam sem saber qual era o fim dela, para onde que elas iam. Mas foi essa solidariedade, nós compartilhamos o que nós temos.”
Agora, defende Lara, é tempo de uma nova fase na luta, da reconstrução. “Mas nós não vamos reconstruir em cima das ruínas desse projeto fracassado de sociedade, que coloca as comunidades em vulnerabilidade. E aqui nós denunciamos também os governos municipais, de Porto Alegre, principalmente, que colocou o povo em risco, mas também o agronegócio, que é um projeto que está destruindo o nosso sistema, que está destruindo a natureza. Nós precisamos fazer um pacto que nós vamos seguir na luta daqui pra frente e que nós vamos lutar por um Brasil sem fome, por uma nova sociedade.”
“Nós todos somos filhos da terra”
Cacica Iracema Gah Té Nascimento pediu licença e perdão à mãe terra por ainda a machucarmos / Foto: Jorge Leão
Na língua do seu povo Kaingang, e ao lado de uma grande árvore, a Cacica Iracema Gah Té Nascimento pediu licença e perdão à mãe terra por ainda a machucarmos. “Pedi perdão à terra por todos nós. Eu peço a vocês que segurem a mão de quem está ao lado, olhem pra quem está do lado e digam: eu te amo hoje e pra toda vida.”
*Editado por Marcelo Ferreira