Aromas de Março

Por que o marxismo é fundamental para a luta das mulheres trabalhadoras?

Coluna Aromas de Março deste mês de setembro, trás reflexões sobre feminismo e a luta de classes

Foto: Arquivo MST

Por Marina Gouvêa*

Da Página do MST

Há quem defenda que as lutas das mulheres dividem nossas filas. Que o importante é a identidade de classe e que, dentro da classe trabalhadora, “somos todos iguais”. A verdade, porém, é que não somos. Mesmo dentro de nossas organizações da esquerda, muitas vezes as mulheres são sobrecarregadas em tarefas como garantir o cafezinho, fazer a secretaria, dar conta do cuidado das crianças. Ao mesmo tempo, o poder de fala e os cargos de direção são frequentemente hegemonizados por homens.

Esse tipo de divisão do trabalho termina reproduzindo desigualdades que, em nossa sociedade, contribuem para a própria acumulação capitalista e para o aumento dos lucros da classe dominante. E é fundamental que todes es companheires entendam isso e assumam esse enfrentamento como seu.

O marxismo é fundamental para a luta das mulheres trabalhadoras em dois sentidos: 1) como ferramenta para ajudar a compreender e transformar o mundo de hoje; 2) devido aos exemplos de transformações nas quais o marxismo já serviu como ferramenta de transformação ao longo da história.

Veremos aqui alguns aspectos dessa relação

Um primeiro elemento importante de reconhecer é que nós somos animais cuja natureza é social. Criamos cultura, reproduzimos e transformamos valores. Nossa natureza biológica não pode ser separada de nossa sociabilidade e a forma como nos reproduzimos enquanto animais é sempre culturalmente determinada. Nada em nós deve ser naturalizado, ou tomado como inevitável. E a perspectiva materialista, histórica e dialética que o marxismo traz é crucial para essa desnaturalização.

Quando uma companheira é colocada para passar o cafezinho – como se essa tarefa naturalmente coubesse a ela –, ou quando é automático que fiquemos responsáveis por alguma relatoria de maneira assessória aos homens, estamos coletivamente reproduzindo a divisão social do trabalho da sociedade capitalista: racista e misógina.

Nossa sociedade naturaliza todos os dias a desumanização de mulheres, o feminicídio, a cultura do estupro, a objetificação e o silenciamento. Isso tudo se reflete inclusive na própria esquerda e são valores contra os quais devemos lutar. São estruturantes da sociabilidade capitalista.

Em termos da divisão do trabalho, a generificação binária e a desumanização do feminino traz a desvalorização também das tarefas que são vistas como “trabalho de mulher” e uma divisão binário-generificada do trabalho. A desvalorização dessas tarefas, por sua vez, traz a invisibilização das mesmas: a cada 10 horas de trabalho realizado por mulheres no mundo, 6 horas e meia são totalmente invisibilizadas e não são sequer consideradas como trabalho.

Grande parte desse trabalho reprodutivo – como o trabalho doméstico e de cuidado não assalariados – não é reconhecido como fundamental para a reprodução da vida e do mundo. No entanto, se ninguém o realizasse, seria impossível sobrevivermos! Tal trabalho não é reconhecido como necessário sequer para a reprodução da nossa própria capacidade de seguir trabalhando, isto é, de nossa força de trabalho, o que faz com que estas tarefas frequentemente não sejam remuneradas. Elas só entram na conta dos salários da parcela mais bem remunerada da classe trabalhadora, que recebe o suficiente para comer em restaurantes ou, no Brasil, como herança da escravização, para contratar os serviços de uma trabalhadora doméstica.

Quando remuneradas, por sua vez, estas tarefas seguem sendo desvalorizadas, mesmo se forem realizadas por homens. As mulheres que as realizam, por sua vez, geralmente acumulam esse trabalho tanto para fora quanto dentro de casa, de maneira invisível, com jornadas de trabalho duplas ou triplas. No mundo, 8 a cada 10 trabalhadoras domésticas, babás e cuidadoras são mulheres. No Brasil, este número sobe para 9. E, a cada 10 delas, mais de 6 são negras. Nas regiões Norte e Oeste do país, a maior parte das trabalhadoras domésticas têm origem indígena.

Nesse sentido, o marxismo nos dá ferramentas para pensar como a acumulação capitalista afeta toda a nossa subjetividade, todas as nossas relações interpessoais, de amizade, familiares, afetivossexuais. O valor de troca subordina eticamente o conjunto de valores da nossa sociedade. Por outro lado, essa percepção indica também a importância de construirmos, em nossa luta, valores relacionados ao cuidado e à comunidade, que são costumeiramente associados à natureza e ao feminino. Esta construção de novos valores é um dos pilares do Movimento das Trabalhadoras e Trabalhadores Sem Terra e é ainda mais importante nesse momento, de crise ambiental capitalista, no qual enfrentamos catástrofes climáticas, extinção de espécies e o risco da extinção da nossa própria espécie.

O marxismo é fundamental para a luta das mulheres trabalhadoras, ainda, porque nos ajuda a compreender que, apesar das relações patriarcais de gênero afetarem todas as mulheres, há mulheres que são inimigas de classe e se beneficiam dessa diferença de gêneros na divisão do trabalho: o fato de que a maior parte do trabalho reprodutivo seja desvalorizada, invisibilizada e não contabilizada na determinação dos salários da classe trabalhadora permite que a classe dominante se aproprie, sob a forma de lucro, de uma parcela maior de todo o valor que é produzido. E isso beneficia também mulheres da classe dominante.

Já desde o século XIX, o marxismo nos ajuda a ir além do feminismo liberal, que exigia apenas igualdade de salários e cargos, ou o direito ao voto feminino. Até hoje, as experiências de revoluções socialistas foram aquelas que conquistaram a maior proporção de direitos efetivos para mulheres. A União Soviética, por exemplo, não apenas foi o primeiro país a pagar salários iguais a mulheres e homens pelo mesmo trabalho, mas realizou as primeiras experiências de socialização do trabalho doméstico, com restaurantes comunitários, lavanderias públicas e creches. A URSS foi a primeira a garantir tanto o voto quanto a eleição de mulheres (1917), a regularizar o casamento civil e o divórcio por vontade também da mulher (1918) e a garantir o direito ao aborto (1920), bem como cuidados reprodutivos a gestantes e lactantes. Em Cuba, outro exemplo de socialismo, existem até hoje restaurantes públicos coletivos e mais da metade das deputadas da Assembleia Nacional são mulheres.

Também na construção de lutas que não chegaram a tomar o poder, o marxismo tem sido fundamental para a compreensão e transformação da realidade. A perspectiva de totalidade presente na contribuição de marxistas negras como Angela Davis, por exemplo, é fundamental para compreender o papel da violência e da desumanização de pessoas negras para a reprodução da força de trabalho no capitalismo, em particular o papel da violência e do estupro contra mulheres negras, confrontando perspectivas que idealizam a branquitude como sujeito universal.

O marxismo nos permite, assim, ir além também de uma naturalização essencializada do feminino que imagine que todas as mulheres “são irmãs”, muitas vezes racista e transfóbica. O feminismo marxista permite enfocar o conjunto da reprodução social e compreender a relação entre classe, raça e gênero verdadeiramente como totalidade. Não apenas como opressões diferentes que se cruzam, mas na constituição concreta da classe trabalhadora, indissociável da reprodução social capitalista.

É verdade que nem sempre, na história do marxismo, isso foi assim. E que, até hoje, há muita gente que defende uma perspectiva marxista fechando os olhos para o racismo, para a misoginia, para a transfobia e para tantas outras dimensões estruturais para a acumulação capitalista. O marxismo mais fértil como ferramenta de luta, porém, é aquele que busca entender a realidade enquanto totalidade, como ela é e, a partir do reconhecimento das contradições nas quais estamos inseridos, buscar superá-las coletivamente.

O marxismo e o feminismo também são construções históricas, e cabe a nós lutarmos pelo marxismo e pelo feminismo que queremos construir.

*Professora da UFRJ, economista e colaboradora da Escola Nacional Florestan Fernandes

Referências:

BUTT et alli. “Alternativas radicais ao PIB: a urgência de buscar alternativas feministas e decoloniais”. Londres: Oxfam, 2023.

LAWSON et alli. Tempo de cuidar. Londres: OXFAM, 2020.

Dados do Dieese. Disponíveis em https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-04/mulheres-negras-sao-65-das-trabalhadoras-domesticas-no-pais .

*Editado por Lays Furtado